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A universidade é um espaço de doutrinação ideológica?

Por Pablo Ortellado*
Alguns comentários sobre a campanha “Escola sem partido“. Sempre fico na dúvida se a postura correta é não alimentar esse tipo de polêmica ou se a ampla repercussão nos obriga a levar esse tipo de coisa a sério, antes que seja tarde demais. Achei que era o caso de falar, depois que uma querida amiga foi alvo dessa campanha infame. Meus dois centavos:
Só uma pessoa que esteja fora da universidade há pelo menos vinte anos ou nunca esteve nela pode achar que o ensino universitário é dominado pelo marxismo ou mesmo pela esquerda. Em São Paulo, por exemplo, onde a Faculdade de Filosofia da USP é insistentemente invocada para comprovar a difusão de um ensino doutrinador “marxista”, não creio que existam, entre os seus mais de 400 professores, mais do que quinze marxistas, no sentido estrito do termo. Quem
acompanha a vida universitária de perto sabe que há pelo menos duas décadas a esquerda é minoritária na universidade (não apenas na USP) e que nos últimos tempos o marxismo é uma corrente teórica com pouca difusão nas ciências humanas.
Acho que não exagero ao dizer que há um consenso no mundo acadêmico de que o ensino deve ser plural e que a formação em apenas uma corrente de pensamento, seja ela política ou teórica, é nociva ao estudante. Em geral, acredita-se que há duas maneiras de se alcançar isso: ou bem se acredita que cada disciplina deve apresentar internamente os valores e argumentos da corrente a que se vincula o docente e por meio da exposição a disciplinas diferentes o estudante forme um repertório plural ou se acredita que cada disciplina deve apresentar a pluralidade de
pensamento nela mesmo, isto é, cada disciplina deve discutir objetos ou problemas apresentando a pluralidade das abordagens teóricas e políticas. Ainda que na universidade discutamos muito qual dos dois modelos é o mais apropriado, não me vem a mente um único colega que acredite que uma boa formação é unitária, baseada apenas na sua corrente de pensamento.
No caso específico das Ciências Humanas, isso significa que uma formação séria passa, necessariamente, pelo estudo de Marx e Adorno num curso de filosofia (assim como pelo estudo de Hegel e Nietzsche) e pelo estudo de Marx e Bourdieu num curso de sociologia (assim como pelo estudo de Weber e Parsons). Isso, obviamente, não se confunde
com pregação ideológica ou doutrinação — que quando é feita, é considerada por todos como vulgar e anti-acadêmica, seja num curso sobre Marx ou num curso sobre Ricardo.
Como apenas um fanático acharia que não se deve ensinar Marx e Weber num curso de sociologia ou Adam Smith e Keynes num curso de economia, resta portanto a questão se essa pluralidade universitária estaria comprometida por algum desequilíbrio na oferta de linhas de pensamento nas disciplinas que compõem os cursos. E aí, sem a menor sombra de dúvida, se formos encontrar algum desequilíbrio, será a subrepresentação das abordagens críticas: hoje, há muito pouco marxismo nas escolas de economia e mesmo nas de sociologia. Não me lembro de ver esses fiscais do pensamento se incomodarem com os inúmeros cursos de economia baseados apenas em manuais neoclássicos ou em formações inteiras em Relações Internacionais baseadas na doutrina neorealista.
Não posso falar com segurança do que acontece no ensino médio, mas meus colegas que ensinam lá dizem que a coisa não é diferente – e é razoável que seja parecida, já que muitos dos professores do ensino básico foram formados por nossas universidades.
Assim, campanhas como essa que ficam caçando “evidências” de que se está ensinando Marx em cursos de filosofia e concluem daí que o ensino é dogmático e busca formar “comunistas” são de uma ignorância tão profunda que não mereceriam comentário se não estivéssemos em tempos tão obscuros.
Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1998) e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2003). É professor doutor do curso de Gestão de Políticas Públicas e orientador no programa de pós-graduação em Estudos Culturais da Universidade de São Paulo. É coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre direitos autorais e políticas culturais.

 

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

1 Comment

  1. Sua ideia sobre se de fato ocorre doutrinação no ensino médio é totalmente anedótica. Recomendo-lhe olhar o livro “Oficina de história 2”, amplamente distribuído em várias escolas de ensino médio. O livro se introduz explicando sobre o Egito Antigo, e como essa civilização era composta de negros. O ponto nevrálgico é: em todo meio acadêmico, inclusive internacional, tem-se o consenso, há muito tempo, de que essa teoria é inválida — onde o mais provável é que essa população era mais heterogênea, sendo assim de extrema dificuldade classificar com precisão a racialidade dela. Para piorar a situação, posteriormente no livro, nas atividades, uma das primeiras questões inquere sobre a racialidade dessa civilização, pedindo ao aluno para descrever as características físicas dos habitantes dali, implicando com veemência que essa civilização era, de fato, negra. Se isso não é uma tentativa conspícua de tentar implantar na cabeça do estudante de ensino médio que africanos também têm plena capacidade de erguer civilizações tão bem quanto o resto do mundo (o que evidentemente, é falacioso, dado toda a história), sinceramente, o que é doutrinação? Obrigado por ler até aqui, e se o fez, recomendo em próximas ocasiões de fato estudar e verificar sobre o que falas, ao invés de se sustentar em conjecturas e no que fulano disse ou não disse.

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