HOMENS NOVOS PARA UM MUNDO NOVO

Texto de Fábio Konder Comparato Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Trata-se de um texto bem elaborado, que perpassa por questões ligadas a participação cívica, a consciencia política, a cultura de massa, a democracia moderna, entre outros temas interligados.
É um texto um pouco longo (dentro do que costumamos postar), mas vale a pena sua leitura atenta.
Segue abaixo o texto:

HOMENS NOVOS PARA UM MUNDO NOVO
Fábio Konder Comparato*
A legitimidade do poder
Toda sociedade ou associação estável organiza-se em função do poder, que é a capacidade atribuida aos dirigentes de impor suas decisões, com base em princípios fundamentais, consensualmente aceitos.
Na sociedade política, que engloba todas as demais, essa aptidão a impor decisões funda-se, em última instância, na disponibilidade da força pública, isto é, da organização dos meios de coerção, postos oficialmente à disposição dos governantes. Mas ela supõe, normalmente, uma obediência voluntária dos governados, obediência essa que se apoia, em última análise, no reconhecimento da legitimidade do poder; ou seja, na convicção geral de que ele é justo e necessário.
Com efeito, em uma sociedade cujo poder organizador é tido como injusto pela maioria dos sujeitos, os dirigentes são obrigados, para se fazerem obedecer, a recorrer sistematicamente à força. É uma situação anormal, que não pode subsistir por muito tempo.
Para manter inabalada a obediência voluntária dos governados, por conseguinte, importa sempre zelar pelo reconhecimento geral da legitimidade, quer do sistema de poder em geral, quer da pessoa de seus detentores em particular.
Ora, esse juizo de legitimidade do poder nunca é feito intelectualmente, de modo abstrato, mas sempre concretamente, em função das preferências valorativas, dos sentimentos, das crenças e opiniões, que formam o que hoje se denomina a mentalidade social.
O advento da sociedade de massas
As sociedades do passado eram compostas de grupos sociais distintos e heterogêneos, até mesmo quanto ao seu estatuto jurídico. Em toda a Idade Média européia, por exemplo, as pessoas distinguiam-se pelo fato de pertencerem a um dos três estamentos distintos em que se dividia a sociedade: o clero (“os que rogam a Deus”), a nobreza (“os que portam armas”) e o povo.
A partir das Revoluções do século XVIII – a industrial e as duas políticas, a norte-americana e a francesa – bem como da expansão mundial do capitalismo, esse panorama mudou radicalmente. Surgiu algo sem precedentes na História, qual seja a formação das primeiras sociedades de massas. Nelas, as diferenças estamentais foram suprimidas, e as classes sociais, embora afastadas entre si pela crescente desigualdade de níveis de vida, tenderam a fundir-se em uma massa homogênea sob o aspecto cultural, com o abandono dos costumes tradicionais e o enfraquecimento da fé religiosa.
Assentou-se aos poucos um modo de vida voltado para o progresso material, com a inoculação daquilo que Max Weber, em ensaio célebre, denominou o “espírito do capitalismo”. Ele se funda na preocupação exclusiva com os interesses próprios e no descaso com a coisa pública, isto é, o bem comum do povo. Segundo a justificativa apresentada por Adam Smith1, até hoje largamente utilizada pelos próceres do capitalismo, a busca racional do próprio interesse acaba por realizar, involuntária mas necessariamente, o interesse coletivo.
Os forjadores dessa mentalidade de egoismo racional – repito, sem precedentes na História – foram os empresários industriais modernos. Eles atuaram com um objetivo bem definido: legitimar a instauração do capitalismo, não apenas como sistema econômico, mas também como modo global de vida em sociedade, no qual tudo – a política, a religião, a família, a escola, as forças armadas – deve subordinar-se ao princípio da utilidade econômica.
Com a instauração mundial do sistema de produção em série e de padronização do consumo, criaram-se rapidamente (ou seja, em menos de dois séculos) modos de vida homogêneos em todos os quadrantes da Terra. Em obra publicada em 2004,2 C. A. Baily traça um panorama impressionante da uniformidade mundial de vestuário, alimentação, registros horários, estrutura linguística, atribuição de prenomes às pessoas, práticas de esporte e lazer, a partir do século XIX, como efeito da expansão sem fronteiras do sistema capitalista. Toda essa camada cultural uniforme, contudo, passou a recobrir, ainda por efeito da expansão mundial do capitalismo, uma desigualdade cada vez mais pronunciada de níveis de vida, não apenas dentro do mesmo país, mas também entre paises desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Os mal chamados meios de comunicação de massa
Nas sociedades de massas assim criadas, além do contato tradicional de pessoa a pessoa, criou-se um relacionamento impessoal e coletivo, mediante o envio de mensagens homogêneas a destinatários anônimos, para consumo em bloco e sem possibilidade de diálogo. É o que se denominou, segundo a expressão de origem anglo-saxônica, mass media communication; ou seja, um sistema englobando a grande imprensa, o cinema, o rádio e a televisão.
Acontece que o vocábulo comunicação sofre, no caso, notável variação semântica. Na lingua matriz, communicatio e o verbo cognato communico, -are, significam pôr ou ter em comum, receber em comum, ou entrar em relações pessoais com alguém.
Ora, no campo da mass media communication, a verdadeira comunicação foi excluida. A partir de determinados centros emitentes, cada vez menos numerosos, mensagens coletivas são enviadas impessoalmente a consumidores, que se comportam como recipientes puramente passivos.
Em suma, instaurou-se nesse campo o mesmo sistema aplicado pelo capitalismo industrial com pleno êxito, no mundo todo: produção em série e consumo padronizado.
Sem dúvida, a invenção da internet, agora interligada aos meios de comunicação móveis, como telefones celulares, i-pods e MP3, veio alterar o esquema original de comunicação de massa, ao criar um ambiente de diálogo coletivo a envolver um número crescente de pessoas, no mundo todo. Mas não extrapolemos inconsideradamente os efeitos de democratização que esse avanço tecnológico irá produzir. Lembremo-nos de que o público usuário desses engenhos eletrônicos pertence à minoria do estrato econômico superior da sociedade.
Para que se compreenda bem a notável transformação social ocorrida com a introdução dos meios de comunicação de massa, é importante verificar a evolução da imprensa periódica a partir do início do século XIX. A esse respeito, o testemunho de Alexis de Tocqueville, que morou nove meses nos Estados Unidos na primeira metade daquele século, merece ser lembrado.
Ao comparar as características fundamentais da sociedade norte-americana em relação à sociedade européia, ele apontou a multiplicidade de jornais locais, então existentes nos Estados Unidos. “Não há quase nenhuma aldeia que não tenha o seu jornal”, observou ele.3 Contrariamente ao que ocorria nos paises europeus, na América do Norte não se exigia nenhuma licença oficial para a criação de um periódico; e bastava reunir um pequeno número de assinantes, para que um só jornalista editasse o seu próprio jornal.
Tocqueville acrescentou que, para os americanos mais esclarecidos, a razão da fraqueza da imprensa, nos Estados Unidos, residia exatamente nessa incrível disseminação dos jornais. “Constitui um axioma da ciência política, nos Estados Unidos,” observou ele, “que a única maneira de neutralizar os efeitos dos jornais é multiplicar o seu número.”
Já no segundo volume dessa mesma obra,4 publicado dez anos depois do primeiro, Tocqueville não hesitou em dizer que a liberdade de imprensa constitui o modo mais seguro de se garantirem os direitos individuais, nas sociedades democráticas. “Nos nossos dias,” afirmou ele segundo o estilo grandiloquente da época, “o cidadão oprimido possui um só meio de defesa: dirigir-se a toda a nação e, se esta não o ouve, ao gênero humano”. E isto, concluiu, só pode ser feito por meio da imprensa livre.
Menos de um século depois que essas linhas foram escritas, porém, operava-se nesse setor uma revolução de 180º. Percebeu-se simultaneamente, em todos os quadrantes do globo, que a junção da imprensa com o cinema, e em seguida com o rádio e a televisão, constituia o meio mais eficaz de se forjarem mentalidades novas e de se modificarem os costumes ancestrais, no sentido de levar as multidões a obedecer cegamente, senão de modo entusiástico, às orientações veiculadas por esses canais de difusão unilateral de mensagens.
Na União Soviética e seus satélites, assim como na Alemanha nazista e demais Estados fascistas, todos os meios de comunicação de massa foram concentrados em mãos das autoridades políticas, para atuar na propaganda do regime. Essa organização autoritária persiste ainda hoje em alguns paises autoritários, como a China, o Irã e Cuba.
Ao mesmo tempo, nas nações do chamado “mundo livre”, sob a batuta de grandes empresários capitalistas, iniciou-se um vigoroso movimento de rápida concentração do controle privado de jornais, emissoras de rádio e canais de televisão. Nos Estados Unidos, a pressão neoliberal logrou revogar em 1996 a lei de 1934, que estabelecia limites na concentração de controle empresarial desses veículos. No mesmo sentido, em 2003 a Federal Communications Commission eliminou as proibições então existentes para a participação cruzada no capital das empresas do setor. O resultado não se fez esperar: enquanto em 1983 havia no mercado de comunicação de massa 50 empresas de médio porte, hoje este é dominado por apenas cinco macroempresas.5
No Brasil, assistimos ao mesmo fenômeno. Quatro grandes redes dominam todo o mercado nacional de televisão: a Globo controla 342 empresas; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142.
Com essa formidável concentração de controle empresarial, operou-se uma modificação de monta no grau de influência dos meios de comunicação de massa, sobre a sociedade em seu conjunto.
Como salientei, quando Tocqueville visitou a América do Norte na primeira metade do século XIX, quase todos os municípios americanos tinham o seu periódico local, e cada um desses pequenos jornais divulgava notícias e comentários à sua maneira. Hoje, a grande maioria dos periódicos locais desapareceu, e os poucos jornais restantes de ampla difusão quase não se distinguem entre si quanto à sua orientação editorial.
Por outro lado, as emissões de televisão e de rádio são hoje captadas nos Estados Unidos, respectivamente, por 98,3% e 99% das moradias. Tirante algumas diferenças de estilo sem maior importância, a escolha das notícias e o teor dos comentários difundidos por essas emissoras obedecem ao mesmo denominador comum: a defesa dos valores tradicionais da sociedade norte-americana, como a garantia das liberdades individuais, a intangibilidade da propriedade privada, a redução das atividades do Estado ao mínimo indispensável e o nacionalismo dominador nas relações internacionais.
Quem quiser se manifestar contra essas posições dogmáticas, ao contrário do que sucedia no tempo de Tocqueville, encontrará fechadas todas as portas dos mass media communication.
Pode-se dizer que um cenário análogo existe no Brasil há pelo menos meio século.
Em pesquisa realizada em 2008, verificou-se que o consumo médio diário da televisão aberta, entre nós, é de quatro horas e quarenta e dois minutos por pessoa. Observou-se, aliás, que nos últimos 7 anos o brasileiro tem passado quase 30 minutos a mais por dia em frente ao aparelho de televisão. Quanto ao rádio, estima-se que 80% da nossa população ouvem as suas emissões pelo menos 15 minutos por dia.
Na verdade, o nosso oligopólio privado de meios de comunicação de massa não surgiu espontaneamente, mas foi montado com o apoio direto das autoridades políticas, durante o regime militar. Tratava-se, de um lado, de demonstrar que o Estado autoritário, instaurado com o golpe de 1964, garantia a democracia, salvando-nos do terror comunista. Cuidava-se, de outro lado, de difundir em todas as programações o consumismo de massa, em benefício da expansão capitalista.
Com isto, reforçou-se sobremaneira, no seio do povo, a tradicional mentalidade passiva e conformista, indiferente à política, considerada pelo vulgo como um jogo reservado exclusivamente àqueles que, na linguagem saborosa de Camões, nasceram não para mandados, mas para mandar.
Como se percebe, o que Tocqueville estimara ser o melhor, senão o único meio de garantia dos direitos individuais contra o Estado, transformou-se, nos dias atuais, em novo poder político de natureza privada, capaz de ombrear-se com os órgãos públicos, ou de servir de principal instrumento de propaganda de regimes autoritários. Nos paises que se declaram paladinos da liberdade de expressão, estabeleceu-se, a esse respeito, uma partilha de competências: enquanto as autoridades estatais subjugam os corpos, os patrões da comunicação social, à semelhança dos chefes religiosos, dominam as almas.
A nossa Constituição, em seu art. 220, proclama livres “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo”. Mas no campo da grande imprensa, dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, essa liberdade só existe para os controladores das respectivas empresas.
Curiosamente, ao final do segundo volume de Da Democracia na América,6 Tocqueville conjecturou sobre a possibilidade de surgir um novo despotismo nos tempos modernos, diverso daquele que se impôs nas sociedades antigas. “Ao que parece,” escreveu ele, “se o despotismo vier a se instalar nas nações democráticas dos nossos dias, ele apresentaria outras características: seria mais extenso e mais ameno, e degradaria os homens sem os atormentar.” Acrescentou que ele assemelhar-se-ia ao pátrio poder, se tivesse por objeto preparar os homens para a vida adulta. Mas o que ele busca, na verdade, é fixá-los irrevogavelmente em um estado de perpétua menoridade, de modo que os atos mais importantes da vida de cada um devam ser praticados sob a supervisão dessa autoridade tutelar.
Não tenho dúvidas em afirmar que esse regime de despotismo aprazível existe entre nós, e se apresenta como um sistema de dupla face: sob a moderna fachada democrática, exposta na Constituição e louvada na imprensa, no rádio e na televisão, continua a vigorar a oligarquia tradicional. O povo somente é admitido à cena política no momento das eleições. Mas estas, em lugar de representarem o exercício normal da soberania popular, ocultam na verdade a sua alienação.
Dois exemplos bastam para ilustrar a estrutura dúplice do nosso regime político.
Ao forjar no século XVI o conceito moderno de soberania como poder absoluto e perpétuo, Jean Bodin enfatizou que “o ponto principal da majestade soberana e do poder absoluto consiste em dar lei aos súditos em geral, sem o seu consentimento”.7 Pois bem, é esse o privilégio reconhecido, entre nós, aos mal chamados representantes do povo: além de fazerem as leis, eles se atribuem a competência exclusiva para reformar a Constituição.
Como se isso não bastasse, a nossa inventividade jurídica chegou ao extremo de exigir a prévia autorização do Congresso Nacional para a realização de plebiscitos e referendos, que a Constituição reconhece expressamente como expressões da soberania popular (Constituição, art. 14). Ou seja, o mandante precisa da permissão do mandatário para manifestar sua vontade soberana!
Ora, no desenvolvimento desse enredo caviloso, a colaboração do oligopólio privado dos chamados meios de comunicação de massa não pode ser desprezada. O seu poder de pressão sobre o Congresso Nacional e os políticos em geral tem sido irresistível nos últimos decênios. A própria Constituição Federal de 1988 foi elaborada sob a influência dominante dos empresários do setor.
Um programa republicano e democrático para os meios de comunicação de massa
A magna tarefa que se impõe hoje, por conseguinte, no mundo inteiro, consiste em elaborar e instituir outra forma de relacionamento coletivo, pela qual os homens possam verdadeiramente se comunicar; isto é, pôr em comum suas ideias, sentimentos e opiniões. Sem isto, é inútil pretender ensaiar um verdadeiro regime democrático, pois ele pressupõe a capacidade do povo soberano de discutir entre si as grandes questões, de âmbito nacional ou internacional, sobre as quais deve decidir, e de interpelar constantemente os agentes estatais sobre as justificativas de sua conduta.
Algumas diretrizes impõem-se, para tanto.
Em primeiro lugar, é indispensável contar com uma alternativa fiável aos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, deve-se estimular a criação de blogs autônomos e das chamadas redes sociais na internet. Muito embora até o momento restritas à minoria rica, é incontestável que elas restabelecem um relacionamento pessoal e direto entre os homens, agora no plano macrossocial. Não se deve, aliás, esquecer que a eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos, deveu-se em boa parte à ação dessas redes sociais.
No terreno próprio das comunicações de massa, duas grandes diretrizes de reforma devem ser seguidas.
A primeira delas consiste em superar a carência legislativa.
Nunca é demais relembrar que a supressão das liberdades fundamentais pode ocorrer, tanto pelo excesso, quanto pela ausência de leis.
Nos regimes totalitários ou autoritários, as prescrições normativas são abundantes e minuciosas, e muitas delas vigoram secretamente, ao arbítrio dos que comandam. De modo que os cidadãos jamais sabem, ao certo, o que podem fazer sem sofrer sanções repressivas.
Mas o vácuo legislativo, tão louvado pelo liberalismo hodierno, provoca a mesma supressão das liberdades, porque o terreno social se abre então, amplamente, à dominação sem limites dos ricos e poderosos.
Ora, em nosso País o setor de comunicação social encontra-se, há vários decênios, largamente desprovido de leis. Até hoje, permanece em vigor o Código de Telecomunicações de 1962, cujas disposições já foram em grande parte revogadas, e as que ainda se encontram formalmente em vigor são descumpridas. É o que ocorre, por exemplo, com as normas constantes de seus artigos 38, alínea h, e 124, que fixam em 5% e 25%, respectivamente, o tempo mínimo para a transmissão de informações e o tempo máximo para a publicidade comercial.
Por outro lado, posto que promulgada a Constituição há mais de duas décadas, continuam sem regulamentação quase todas as suas disposições sobre a comunicação social; notadamente as que estabelecem as diretrizes gerais sobre a programação das emissões de rádio e televisão, e a proibição do estabelecimento em todo o setor, direta ou indiretamente, de monopólio ou oligopólio (artigos 220 e 221).
Para completar esse quadro em branco, o Supremo Tribunal Federal, em lamentável decisão de 30 de abril de 2009, jubilosamente acolhida pelos patrões das grandes empresas do setor, julgou implicitamente revogada pela Constituição a lei de imprensa de 1967. Somos, assim, um caso raro no mundo, de país que se dá ao luxo de viver sem lei de imprensa.
Diante dessa grave indigência legislativa, impõe-se a propositura, perante o Supremo Tribunal Federal, de uma ação de inconstitucionalidade por omissão, relativamente às disposições constitucionais pertinentes à comunicação social.
A segunda diretriz geral a ser seguida para a reformulação do setor de comunicação de massa em nosso País diz respeito, especificamente, ao rádio e à televisão.
Ambos utilizam-se, para as suas emissões, de um espaço público, ou seja, em boa etimologia e melhor doutrina, um espaço pertencente ao povo. Tratando-se de bem público, comum a todos, escusa lembrar que ele não pode ser apropriado por ninguém, nem pelo Estado nem pelos particulares. A função do Estado é simplesmente a de administrar a sua utilização em benefício do povo.
É exatamente por isso que, tanto aqui como alhures, a prestação do serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens depende de autorização, concessão ou permissão da autoridade administrativa competente (Constituição Federal, art. 21, XII, alínea a).
Acontece que, entre nós, o decantado oligopólio empresarial que domina o setor atua na prática, e se considera em teoria, como proprietário desses canais de comunicação pertencentes ao povo. Chega-se até ao cúmulo do arrendamento de canais pelo seu concessionário. Ou seja, analogamente ao que ocorre com o soberano no campo político, aqui o legítimo dono é substituido por um usurpador que, a todo momento, alardeia seus pretensos direitos adquiridos e denuncia a censura estatal quando os Poderes Públicos procuram regulamentar o funcionamento desse serviço público.
A gestão do espaço público de comunicação deve, por conseguinte, competir a um órgão igualmente público, isto é, não subordinado a nenhum Poder estatal e muito menos a particulares. O Conselho de Comunicação Social, criado por força do art. 224 da Constituição Federal, não preenche tais requisitos. De um lado, porque foi declarado órgão auxiliar do Congresso Nacional; de outro, porque a Lei nº 8.389, de 1991, que o regulamentou, dele fez uma entidade solenemente inútil.
Importa assim criar, em todas as unidades da federação, um órgão regulador das atividades de comunicação social, que não seja mera agência estatal nem mandatário do oligopólio empresarial que domina o setor.
Da mesma forma, a utilização do espaço público de comunicação há de ser reservado preferencialmente a entidades públicas, vale repetir, não estatais nem privadas.
Sugiro, assim, que se crie, em todas as unidades da federação, sob a forma de fundação pública, um organismo de rádio e televisão, cujos administradores sejam designados pelo competente Conselho de Comunicação Social.
Por outro lado, vale a pena repetir que, se as emissões de rádio e televisão constituem um serviço público, as empresas privadas somente podem ser admitidas a prestá-lo mediante regular contrato de concessão, com a observância das exigências normais, como a licitação prévia (Constituição Federal, art. 175), inclusive para a renovação do contrato.
Escandalosamente, porém, não é o que ocorre no Brasil. Sob a pressão dos grandes empresários do setor, o Congresso Nacional inseriu na Constituição (artigos 223 e parágrafos) que as concessões de exploração de rádios e televisões sejam submetidas, em última instância, à decisão do próprio Congresso (Constituição, artigos 223 e parágrafos), o qual se revelou, nessa matéria, bem mais flexível que o Poder Executivo. Impõe-se, pois, a revogação dessas disposições aberrantes do sistema administrativo comum.
Na concessão do serviço público de comunicação social, preferência deve ser dada às rádios comunitárias, que têm sofrido toda sorte de preterições e constrangimentos, inclusive sanções penais, por iniciativa das macroempresas do setor.
É mister, além disso, suprimir o poder autocrático no seio das empresas privadas de imprensa, rádio e televisão, em razão do qual os patrões dispõem do privilégio de difundir suas opiniões pessoais na massa do público sobre todos os assuntos, e gozam até mesmo da prerrogativa de insultar impunemente seus desafetos! Em tais empresas, portanto, a partir de certa dimensão, a orientação editorial deveria competir a um conselho de administração composto, por metade, de representantes dos jornalistas que nela trabalham.
Tudo isso, contudo, seria vão, se não se garantisse efetivamente, a todos, o direito fundamental de expressão nessa área.
Proponho, com esse objetivo, duas medidas principais.
A primeira delas consiste na criação, a par do direito tradicional de resposta, destinado a garantir o respeito à verdade e à honra individual, um direito de defesa de interesses coletivos ou difusos, a ser exercido por associações ou fundações, cujos estatutos contenham essa previsão.
A segunda medida de reforço ao direito fundamental de expressão é a adoção do chamado direito de antena, já criado nas Constituições de Portugal (art. 40º) e Espanha (art. 20, alínea 3, in fine). Ele consiste na prerrogativa – a ser reconhecida, de preferência, a entidades representativas de setores dignos de proteção especial, como os grupos sociais vulneráveis – da livre utilização do rádio e da televisão, em tempo e horário fixados pela autoridade administrativa reguladora. Atualmente, esse direito existe no Brasil tão-só para os partidos políticos, por ocasião das campanhas eleitorais. Importa estendê-lo, permanentemente, aos grupos sociais relevantes da nossa sociedade civil.
Conclusão
Como arremate, permito-me voltar os olhos ao berço do regime democrático, a Atenas do século V a.C. Segundo o testemunho unânime dos grandes autores da antiguidade clássica, o traço fundamental da democracia ateniense era a liberdade de palavra, reconhecida indistintamente a todos os cidadãos (isegoria). Sócrates, por exemplo, um de seus críticos mais acerbos, queixou-se, no diálogo Protágoras de Platão, de que nas reuniões da Ekklésia, a assembléia do povo que decidia sobre as questões mais importantes da pólis, qualquer cidadão – carpinteiro, ferreiro, sapateiro, comerciante, armador – rico ou pobre, aristocrata ou plebeu, instruido ou ignorante, tinha o direito de usar da palavra e exprimir sua opinião. Na visão socrática, essa prerrogativa deveria ser reservada exclusivamente aos melhores cidadãos (aristoi).
Ao reinventarmos a democracia nos tempos modernos, o pretexto ridículo da impossibilidade de se reunir o povo em uma só praça fez com que a liberdade de expressão passasse a ser garantida, doravante, tão-só aos governantes e controladores dos meios de comunicação de massa.
Para abolir essa farsa, não basta, na verdade, criar as instituições adequadas, como sugeri nesta exposição. Elas são necessárias, mas não suficientes. É preciso também formar a consciência cívica do povo, segundo o princípio republicano e o ideal democrático.
Eis a grande missão pedagógica, destinada a formar uma nova humanidade para um mundo sem precedentes na História.
* Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Texto recebido por e-mail. Colaboração de Matheus Gomes M. Ferreira, aluno do curso de Ciências Sociais da UFJF

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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