Partidos Políticos e Movimentos Sociais

Navegando pela internet em busca de bons texto para leitura, me deparei com uma relíquia, um texto da Doutora Ruth Cardoso, de 1979, publicado na Folha de São Paulo. Segue o texto:

 

 

São Paulo, 23 de outubro de 1979.
Partidos Políticos e movimentos sociais.
Ruth C. L. Cardoso
Há longos anos que não discutimos a organização de partidos. Tanto a inexperiência gerada neste jejum de participação política quanto à desconfiança com relação aos modelos partidários do passado tornam difícil o estabelecimento de parâmetros para a definição das novas identidades partidárias.
Declarações e programas se fazem sempre em nome da busca de atualidade e da adequação à nova conjuntura. Neste ímpeto modernizador, uma das preocupações mais constantes é equacionar corretamente as relações entre os partidos e os movimentos sociais que expressam as reivindicações de uma população sem canais políticos e são um sinal de vitalidade e de inconformismo neste aparente marasmo.
Os que falam a

linguagem dos partidos renovados e democráticos citam sempre os negros, as mulheres e algumas vezes os jovens como os grupos que devem ser incorporados à política partidária. Curiosamente, e por razões várias, estes não foram, em nosso País, os movimentos sociais mais vivos nos últimos anos. Apesar disto, têm um estatuto político reconhecido porque sua função reivindicativa e inovadora é inegável quando se pensa na experiência internacional recente. Dirige-se a eles significa aceitar que também no Brasil tem-se que considerar os problemas que afetam as sociedades plenamente desenvolvidas e que, portanto, não cabem propostas políticas conservadoras. Falta, entretanto, uma análise do significado destas reivindicações, dentro do contexto brasileiro, que lhes dê o peso correto e que defina um engajamento real. Reconhecer que a política passa, atualmente, pelos negros, pelas mulheres, pelos grupos de homossexuais ou pela luta ecológica é, sem dúvida, um bom começo, mas para que não seja apenas uma reverência simbólica à modernidade é preciso que o lugar de cada demanda seja marcado mais claramente.

Tomemos como exemplo as reivindicações das mulheres que, de modo abstrato, são incorporadas por quase todos os agrupamentos políticos, salvo os excessivamente conservadores. Como estabelecer distinções entre elas? Para as mulheres engajadas, não cabem mais dúvidas: estas vagas deferências discursivas não convencem! E aquelas que não participam das lutas feministas continuam neutras diante de menções genéricas a problemas ainda indefinidos para elas.
Um partido político precisa criar uma identidade própria para ser capaz de mobilizar. Deve permitir que os grupos militantes se reconheçam em suas propostas e em sua atuação concreta. Não basta nomear os problemas das mulheres para que elas se sintam motivadas.
As lutas feministas vêm já de longa data e, em nenhum lugar, contaram com um real apoio de organizações partidárias. Desconfianças de parte a parte marcaram a convivência dos grêmios de esquerda com os movimentos de mulheres, enquanto os partidos mais conservadores costumam manifestar seu desacordo com as propostas feministas, seja de modo claro, seja pela reafirmação da nobreza dos papéis que tradicionalmente cabem às mulheres.
No “Programa comum das mulheres”, editado por Gisele Halimi pouco antes das eleições de 1978 na França, podemos sentir as reticências e as críticas abertas que o Grupo Choisie dirige aos partidos franceses: “As lutas feministas mostram que as mulheres foram as artesãs de sua própria libertação e que os partidos que hoje se pretendem favoráveis aos direitos por elas conseguidos foram, muitas vezes, seus mais rudes opositores. Uma das razões que levam a isto diz respeito à estrutura e aos objetivos dos partidos que datam do século 19. Organizações arcaicas são impermeáveis aos grandes problemas deste fim do século 20”.
Nos Estados Unidos ou na Inglaterra reencontramos esta mesma descrença na instituição partidária que não é capaz de efetivamente representar os grupos sociais mais atuantes. Entretanto, do lado de cá do Equador a situação é diferente. Para começar, não temos ainda as instituições políticas cristalizadas que nos transformariam em respeitadores dos modelos do século 19. Estamos vivendo um momento bastante fecundo no qual os improvisos são necessários para que se possa arquitetar um jogo político atento às peculiaridades de nossa sociedade. É, pois a hora oportuna para promover a discussão sobre o contorno e a atuação dos partidos políticos no mundo moderno, retomando por aí a reflexão sobre o modo de articular politicamente os vários movimentos sociais que parecem atrair cada vez mais militantes.
Apesar deste poder mobilizador, tais movimentos se caracterizam por uma certa fluidez, por uma prática política fragmentada e por uma relativa espontaneidade em seu desenvolvimento. Nestas condições, proliferam grupos paralelos. Para voltar ao exemplo das lutas feministas, elas são o resultado da ação de uma constelação de grupos de mulheres com interesses implícita ou explicitamente diferentes e que, no seu conjunto, expressam o empenho na construção de um mundo diferente.
Para quem, neste amplo espectro, deverão falar os propositores de novos partidos? Certamente, a seleção de interlocutores não deve ser feita apenas a partir do número de militantes ou do maior poder de convencimento que possam ter alguns destes grupos. Se existe um espaço que os partidos democráticos podem ocupar é o do livre diálogo. Para isto, as propostas que vêm das bases, sem se descaracterizarem, devem encontrar interlocutores interessados em construir um caminho político que poderá não ser ortodoxo, mas que deverá ser eficaz.
O desafio lançado aos partidos que se querem renovados é o de encontrar o modo de realizar a passagem entre a expressão quase rude das pretensões populares e os canais através dos quais estas denúncias se transformam em ameaça real ao sistema de dominação existente.
Esse é o ponto crítico. Nem o jogo partidário isoladamente e nem as explosões populares parecem ameaçar o equilíbrio (ou desequilíbrio) do poder. Na sociedade industrial moderna as funções do Estado são fundamentais e múltiplas e os mecanismos de dominação ganham sutileza e eficácia graças à impersonalidade dos controles. O Parlamento tem pouco a fazer quando já não detém instrumentos de fiscalização das burocracias que controlam a sociedade. Por isso mesmo, a importância dos partidos diminui. Os movimentos de protesto teriam sua força de acusação e usam suas armas até onde podem, sem, entretanto, conseguir somar forças, um partido estará conseguindo somá-las quando delineia uma visão nova da transformação da sociedade.
Não basta ouvir os grupos que se manifestam. Ouvir é o primeiro passo, mas é preciso pontuar estes discursos, ouvir também o que foi silenciado e pôr a nu o significado político das carências denunciadas. Este tipo de analise, que não é acadêmica, cabe de fato e de direito aos políticos e tem por função transformar um difuso inconformismo em uma real estratégia alternativa. Quando isto for feito, o discurso será mobilizador porque aqueles que contestam se reconhecerão nesta linguagem política e encontrão legitimidade para sua ação.
Falar às mulheres é mostrar-lhes que as suas lutas se completam em outras que se travam ou que deveriam travar aqui e agora e que, no seu conjunto, podem apontar os caminhos que levarão à construção de uma nova sociedade.

 

Ruth C. L. Cardoso é doutora em Antropologia e professora da área de Ciências Políticas da
USP .
(Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 23 de outubro de 1979. Opinião, Tendências/Debates, p.3).
Texto extraído de:
https://www.centroruthcardoso.org.br/_shared/files/all_acervo/anx/20110912105701_CRC0147.pdf

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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