As cotas de vagas em universidades federais e a verdade adjetivada da Revista Veja

 

Por Cristiano Bodart

 

A Revista Veja trouxe uma reportagem marcada por falácias que objetivam claramente atacar os programas de cotas em universidades federais para alunos de escolas públicas. Os argumentos utilizados são repletos de contradições.

A referida revista, em seu site, trouxe a manchete “O drama de estudantes – e famílias – afetados pelas cotas”. O título traz uma verdade, o problema está na forma como buscam “pintar” essa verdade. Abaixo da manchete continuou a expor outras verdades: “Reserva de vagas a alunos da rede pública não afeta só a vida de beneficiados: altera também planos e sonhos de jovens – ricos e pobres – que disputam um lugar nas universidades federais, mas estudam em escolas privadas”.

Tanto o título como a parte destacada pela referida revista são verdades. O problema está na qualificação dessas verdades. Que as cotas para alunos de origens de escolas públicas afetam os demais isso é óbvio; é justamente para isso que foi criado: afetar o status quo, mudar a estrutura desigual da sociedade brasileira.

Dentre os afetados há pobres? Claro. Em uma população tão grande de jovens, há pobres que tiveram acesso a boas escolas particulares – geralmente por meio de programas sociais privados ou públicos, ou ainda por iniciativa de alguns indivíduos que se compadecem de suas condições educacionais. Mas isso ocorre em um volume significante? Não, mas é possível a referida revista encontrar pelo menos um cidadão para expor como exemplo (prática comum no jornalismo brasileiro). Não conheço políticas públicas nacionais que não tenham alguns efeitos pequenos colaterais. Faz parte, infelizmente.

Vamos a um trecho da reportagem: “A família de Monique Silveira, de 15 anos, tem uma renda mensal de 3.000 reais. Graças a uma bolsa de estudos, a jovem cursa o 1º ano do ensino médio em uma escola privada no município de Formiga (MG), onde vive a família. Luciana, mãe de Monique, sempre viu a bolsa como uma chance de a filha escapar da má formação oferecida pelo sistema público e, assim, chegar a uma universidade federal”. Nota-se claramente que a intenção da Veja é tentar induzir o entendimento de que a referida família é podre. Ou o jornalista não sabe o que é ser pobre (prezado, com renda mensal de 3 mil reais, tal família enquadra-se na “Nova Classe Média”) ou está de má fé. Como efeito colateral da intenção da revista, fica claro, no trecho destacado, que quem estuda em escola pública dificilmente entra na universidade federal. A mãe da jovem ainda emendou: “foi a má qualidade da rede pública que me obrigou a buscar uma alternativa”. Nota-se que, para a mãe quem estuda em escola pública não possui alternativa.

Em outro trecho da reportagem, a Veja afirma que “[…] há famílias de parcos recursos que usam tudo o que têm para manter os filhos em uma escola privada, numa tentativa de escapar do desastre do ensino público”. Se por um lado é verdade que alguns (poucos) pobres são afetados negativamente com o programa de contas, o trecho deixa evidente (a contra gosto da revista) uma verdade: os que estão na rede pública de ensino médio vivem um desastre! (Claro que há algumas poucas exceções de jovens que conseguem se livrar dele).

Reporto para cá mais um caso contraditório da reportagem: “Investir na educação dos filhos sempre foi prioridade para a funcionária pública Vivian Seabra, de 48 anos, e ela não poupou esforços nesse projeto. Colocou os gêmeos Lucas e Felipe, ambos de 20 anos, em um conceituado colégio de São Paulo. Em valores atuais, os doze anos do ensino básico saem por cerca de 250.000 reais por aluno. Lucas, disputa pela terceira vez uma vaga no curso de medicina. Ele já chegou a ser aprovado em uma faculdade particular, mas recusou-se a ingressar na instituição porque preferiu realizar novo vestibular para a faculdade federal, sinônimo de qualidade”.

Nota-se que: 1. Quem estuda em um conceituado colégio de São Paulo não é pobre (nem mesmo da “Nova Classe Média”); 2. Quem pode pagar, em 12 anos, 250 mil reais em estudo não tem os mesmos problemas com educação básica precária; 3. Quem me dera se a população pobre de nosso país pudesse ter o capricho de escolher a partir do critério “qualidade”.

O Lucas, aluno de colégio conceituado, com investimento de 250 mil reais em sua formação básica, ainda completou: “Empenhei anos da minha formação estudando duro. A lei desequilibra a competição”.

Fica claro que embora a revista apresente uma verdade, nota-se a pretensão de adjetivar essa verdade como depreciativa, o que não procede. Ao Lucas deixo uma pergunta: antes da lei havia equilíbrio na competição? Já à Veja, apenas… (re)Veja. A final, o que mais esperar da Veja?

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

5 Comments

  1. Aliás concordo com o texto da veja, 3k de salário hj em dia é pouco, basicamente isso é o salário mínimo do DIEESE e as cotas são basicamente uma camuflagem e engodo para péssima educação brasileira e a falta de investimento e sucateamento do ensino público, nivelando a todos por baixo.

  2. Fico muitissimo feliz pelo conteudo dessa reportagem o grande problema do debate e esse tudo que o PT fez e ruim Não tem coisas boas como tem os guerrilheiros ladrões e tudo mais o sistema de cotas e sim um grande caminho de construção de uma sociedade mais justa

  3. Uma sociedade justa é quando todos tem chances iguais de conseguir seus objetivos, claramente nosso país não dá chance para a maioria da população ter acesso ao ensino superior, algo que deveria ser mudado com um melhor ensino público mas criaram cotas que fomentam o preconceito e solucionam o problema da má formação básica…
    O ideal é esquecer favorecimentos e politicagem e pensarmos em prol do Brasil com uma visão macro e de longo prazo.

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