Análise dos discursos de Jair Bolsonaro

Análise dos discursos de Jair Bolsonaro

 

Por Alexadre Valadares

Faz dias que venho assistindo aos vídeos de bolsonaro no youtube, à procura daquilo que pode ser entendido como sua proposta de política para a segurança pública. Não é uma distração edificante, mas pode ser algo mais que um passatempo masoquista. A julgar pelo que vi, a retórica de bolsonaro nas entrevistas parece caracterizar-se pelo uso de frases feitas, pela repetição de respostas que “dão certo” e pela impostação imperativa da voz. Ele reage às perguntas com o tom hostil de uma autoridade que se mostra surpresa ao ser abordada por um cidadão comum que abusa da liberdade de se dirigir a ela. Funciona: os repórteres raramente conseguem emplacar uma segunda questão e, se sim, nunca obtêm uma resposta diferente da primeira. Assim que começa a falar, bolsonaro logo adota um tom irascível e simula aquela indignação espumosa, quase teatral, de homem que “não aguenta mais”. Suas explosões nervosas são parte do show. É seu personagem.

Quando não concorda com os pressupostos de uma pergunta, uma de suas estratégias recorrentes é desqualificá-la como algo procedente de um campo político que ele considera ilegítimo em si mesmo: para ele, é suficiente enquadrar uma questão como “esquerdismo”, “direitos humanos” ou “ideologia de gênero” para não tomá-la a sério. Esse ponto é importante: se, antes de ser ungido como justiceiro dos homens bons, bolsonaro recusava-se a debater com a “pauta da esquerda” porque seu posicionamento ideológico era de confrontação total e irreconciliável com esse campo (como, aliás, o da esquerda em relação a ele), agora essa recusa implica a deslegitimação da esquerda como interlocutora política em qualquer sentido. Isto tem sido fortemente incorporado ao discurso dos jovens que se politizam à direita.

Quanto à segurança pública especificamente, as falas de bolsonaro caracterizam-se pela negação reiterada de qualquer determinação social da criminalidade. A violência, para ele, não é uma questão social. Seu refrão preferido, nesse caso, é dizer que, para a esquerda, o “bandido é vítima da sociedade”, uma redução desonesta e distorcida da perspectiva segundo a qual a violência tem causas sociais (que, aliás, não exclui a responsabilização individual). Não importa que indicadores de criminalidade, citados em estudos de segurança pública, reafirmem padrões e tendências estatisticamente correlacionados a variáveis socioeconômicas: para bolsonaro, o crime se explica somente pela pessoa do criminoso, sua índole ou caráter. De fato, recusada qualquer consideração das condições sociais da violência, o que resta é uma concepção “biológica” e “moral” da figura do criminoso. Bandido nasce bandido, assim como mulher nasce mulher, homem nasce homem e bolsonaro nasce bolsonaro (seus filhos estão aí para prová-lo).

É obvio que, defendendo tal ponto de vista, bolsonaro se exime alegremente de fingir qualquer preocupação com as condições dos presídios do país. Ele afirma que as cadeias não servem para regenerar ninguém, mas apenas para retirar os maus elementos da sociedade dos cidadãos de bem. Por isso, as prisões podem ser superlotadas, encobrir práticas cotidianas de maltrato e tortura e funcionar como depósitos de carne humana; por isso, bolsonaro festeja os massacres ocorridos nos presídios (como o de Pedrinhas), uma vez que, para ele, os condenados não são sujeitos de direitos, não deveriam merecer sequer um processo penal justo e conforme a lei. Para ser mais exato, bolsonaro mal reconhece os presos como pessoas, e os termos desumanizadores que ele emprega ao referir-se a eles revelam o fundo de seu desprezo pelos direitos humanos, não porque estes, de sua perspectiva, servem exclusivamente aos “bandidos”, mas porque constituem um obstáculo ao exercício irrestrito da autoridade, que é o seu ponto.

A polícia, portanto, deveria ter licença para matar “criminosos” e ser juridicamente protegida ao cumprir essa espécie de mandato tácito que a “sociedade” lhe outorga. A indistinta sobreposição, nas falas de bolsonaro, dos termos “criminosos” e “vagabundos” denota que sua concepção de combate à violência tem por alvo não atos, mas pessoas: não se trata de coibir a ocorrência de crimes, e sim de perseguir indivíduos, uma visão que chancela e reforça o modus operandi dominante das polícias hoje em dia e se alinha à proposta de redução da maioridade penal, da qual o deputado é um árduo defensor.

A maior parte dos projetos de lei patrocinados pelo deputado nos três anos aponta nessa direção. Neles, há coisas razoáveis, como a proposta de impedir a oferta de pacotes de internet com limitação de dados e a de garantir o acesso de doentes terminais de câncer a tratamentos experimentais testados fora do país; há também um pouco de anedotário ideológico, como o pedido de inscrição de enéas carneiro no livro dos heróis da pátria ou a ideia de batizar a Amazônia Azul (a faixa de mar territorial do Brasil) de “mar presidente médici”; contudo, dois temas despontam com mais frequência nos PLs recentes: o agravamento da qualificação penal de crimes contra a propriedade (roubos de cargas, receptação, roubos com uso de motocicleta etc.) e a ampliação do direito de portar armas para determinadas categorias profissionais, reiterando, ao mesmo tempo, as ressalvas legais aos atos praticados “em legítima defesa”.

Um dos projetos de lei de autoria de bolsonaro, aprovado dois anos atrás – o que transforma em homicídio qualificado e crime hediondo o assassinato de policiais, militares e seus familiares – demonstra sua preocupação em resguardar a vida dos trabalhadores que atuam no campo da segurança pública, mas dentro da perspectiva repressiva de que o endurecimento penal é a melhor estratégia de redução da criminalidade. Como, para bolsonaro, a criminalidade é o resultado agregado de milhares de decisões particulares de indivíduos propensos a delinquir, ele não propõe nem pode propor uma política preventiva à violência (exceto, claro, uma política que identifique indivíduos “suscetíveis” a cometer crimes e os persiga “preventivamente”). Uma política preventiva à violência abrange instrumentos e ações não violentos. A ênfase de bolsonaro em políticas repressivas à criminalidade resume-se numa só de suas declarações conhecidas: “violência se combate com violência”. Não há lugar no seu horizonte mental, portanto, para uma sociedade com menos violência: o que importa é canalizar a violência para que esta faça apenas vítimas “desejáveis”.

A rigor, bolsonaro não tem um projeto de segurança pública. Em primeiro lugar, porque seu foco restringe-se à repressão dos crimes cometidos e, em segundo lugar, porque não faz qualquer sentido sustentar um projeto de segurança pública cuja proposta mais emblemática é armar os cidadãos particulares. Ao afirmar que a autodefesa de “cidadãos de bem” é o melhor antídoto contra a violência, bolsonaro não faz mais que agir como lobista da indústria bélica, projetando uma ampliação do mercado de consumo de armas que fará um número muito maior delas entrar em circulação na sociedade, a ponto de ser impossível estabelecer uma “regulação” que impeça o acesso indiscriminado a pistolas, revólveres e outros instrumentos portáteis de morte por qualquer pessoa. Nas boates, no trânsito, nas saídas dos estádios, nos “mal-entendidos” domésticos, cidadãos de bem matarão uns aos outros reivindicando o direito à legítima defesa.

[Um último adendo. A recente mobilização da direita ultraliberal (dória, mbl e porta-vozes midiáticos do setor financeiro) contra a candidatura de bolsonaro à presidência não se deve à preocupação em demarcar uma diferença qualitativa entre os novos heróis do liberalismo e o mito reacionário com quem posavam para fotos no pré-golpe: a questão, para os ultraliberais, é apenas impedir que os votos da direita se dividam em 2018, e que a candidatura de bolsonaro seja, para alckmin ou dória, o que foi a candidatura de Marina Silva para Dilma nas últimas eleições. O projeto ultraliberal só se sustenta em uma sociedade esmagada pelo Estado policial]

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

2 Comments

  1. Enfim…
    Tem mais estratégias de se chegar ao poder e agir ao seu bel prazer do que reais intenções de se fazer um país melhor?

  2. muito bom o texto, sempre frisando os reais motivos ou os porens. em alguns pontos acho q a analise foi um pouco rasa como na dureza de coibir o crime com leis mais rígidas, mais autonomia para agir , ok mas qdo diz que nao tem um plano preventivo aí entra a educação onde ele sempre enfatiza que o cidadão tem q ter disciplina na escola onde entra: cabelo cortado, uniforme, pontualidade, cantar o hino nacional pelo menos 1 x na semana e aprender matérias como quimica, fisica, geografia, port. , mat., ingles e mais algumas onde com ctz “dá” ou inicia uma boa pessoa para a sociedade.

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