Consumo, imaginário e “rolezinho”

rolezinho é um fenômeno social que surgiu no Brasil no final de 2013, quando grupos de jovens, em sua maioria da periferia, começaram a se organizar para se encontrar em shoppings centers, geralmente em grandes grupos, com o objetivo de se divertir, socializar e aproveitar as atrações disponíveis.

Os rolezinhos surgiram como uma forma de ocupação pacífica de espaços públicos que historicamente foram negados a esses jovens, devido a barreiras econômicas e sociais. Os shoppings centers são espaços de consumo, mas também são lugares de convivência, e os rolezinhos permitiram que esses jovens ocupassem esses espaços e tivessem acesso a essas experiências.

No entanto, o fenômeno dos rolezinhos também gerou polêmica e controvérsia. Alguns shoppings centers proibiram a entrada de grupos de jovens em suas dependências, alegando razões de segurança e ordem pública. Houve também relatos de conflitos entre os jovens e a polícia, que muitas vezes utilizou a força para dispersar os grupos.

Parte da polêmica em torno dos rolezinhos se deve ao fato de que eles são vistos como um desafio à ordem estabelecida, e como uma ameaça ao status quo. Os jovens que participam desses encontros são em sua maioria negros e de classes populares, e muitas vezes são estigmatizados pela sociedade como delinquentes ou marginais. O fato de ocuparem espaços que historicamente lhes foram negados é visto como uma forma de reivindicação de direitos e de inclusão social.

Por outro lado, há também críticas aos rolezinhos por parte de setores conservadores da sociedade, que veem esses encontros como uma forma de vandalismo e desrespeito às normas e valores sociais. Para esses setores, os rolezinhos representam uma ameaça à segurança pública e à ordem social, e devem ser combatidos com rigor.

O debate em torno dos rolezinhos envolve questões complexas de exclusão social, racismo, criminalização da pobreza e da juventude, entre outras. É importante que sejam criados espaços de diálogo entre os diferentes setores da sociedade para se discutir essas questões e buscar soluções para as desigualdades e injustiças que levaram à criação do rolezinho.

Um ponto positivo dos rolezinhos é que eles mostram a força e a criatividade da juventude brasileira, que luta por seus direitos e por uma sociedade mais inclusiva e justa. Os rolezinhos também são uma forma de resistência cultural, que valoriza a diversidade e a pluralidade cultural do país.

Para garantir o direito dos jovens de participar dos rolezinhos e de ocupar os espaços públicos, é preciso que haja um diálogo entre os jovens, as autoridades e os empresários que administram os shoppings centers. É preciso criar mecanismos de segurança que garantam a integridade física dos participantes dos rolezinhos, mas que não os criminalizem ou os impeçam de se divertir e de se socializar

Por Lisandro Lucas de Lima Moura[1]
Foto: Notícias Terra.

Por trás das ações espontâneas ou organizadas denominadas de “rolezinhos”, tais como passear, curtir, zoar, conhecer gente nova, beijar, “vestir roupas de marca”, “subir a escada rolante que desce” ou “entrar no cinema pela saída”, está uma nova maneira de encarar o consumo na sociedade contemporânea, que tem os shopping centers como lugar sagrado. No centro desse fenômeno social está a população oriunda das periferias das grandes cidades, que vem ganhando poder de consumo, e que hoje está no centro de uma nova onda cultural marcada pelo Funk Ostentação. Não foi assim que aprendemos, que o consumo define o nosso caráter? Que você é aquilo que você tem? Que para pertencer à sociedade, ser um cidadão, você precisa ser antes um consumidor? Pois então, o que acontece quando os jovens decidem seguir essas recomendações?

Sociologicamente, no contexto dessa nova perspectiva acenada pelos jovens indesejados, o consumo não é tanto o resultado de uma estrutura material de mercadorias com valor de uso, mas uma forma simbólica e emocional de expressão que pode ganhar ares de contestação. O filósofo Alain de Botton é preciso nas palavras: “De certa forma, estamos todos participando deste sistema, onde bens materiais carregam valores. Quem diz que estamos nos tornando cada vez mais materialistas e gananciosos está perdendo o ponto: não estamos interessados na matéria, somos uma sociedade que investiu significado emocional em objetos.”

 

Seguindo o raciocínio do Botton, quando os valores humanos e emocionais se sobressaem em relação à materialidade dos bens, ao valor de uso e ao valor de troca das mercadorias, tornando-se uma forma de “protesto”, o consumo passa a representar o poder do feitiço no sentido original do termo. Não mais o feitiço como “fetichismo da mercadoria” ou como “falsa consciência”. A fantasia deixa de ser sinônimo de alienação, na qual a mercadoria exerceria controle sobre o indivíduo. E a aquisição de bens de consumo passa a representar algo a mais do que um simples desejo de ascensão social. O que se observa agora é uma nova prática que se utiliza da sedução do consumo como exercício de crítica, consciente ou inconsciente.
Eis o depoimento de um jovem participante do rolezinho: “Queremos apenas o direito de zoar e nos divertir, de desfrutar das mesmas opções de lazer e entretenimento das elites. Queremos ter acesso a bens de consumo das mesmas marcas e qualidade dos que a burguesia usa. Nossa ostentação e barulho é um grito contra a verdadeira ostentação e violências que os poderosos jogam na nossa cara todo dia.”
Tudo indica que o rolezinho é sintoma de um mundo neotribal imerso num duelo de imaginários, em que o consumo passa a ser a figura emblemática, o totem do combate simbólico contra o preconceito e as desigualdades sociais. As marcas funcionam como arquétipos da conquista do direito a ser visto e a fazer parte da sociedade-ostentação, sociedade até então restrita à classe média branca consumista. O rolezinho, nesse caso, é uma espécie de rito orgiástico que carrega consigo a força (socialmente mal-interpretada) do anti-herói.
É cômico observar as críticas generalizadas por parte da classe média consumista ao consumo da população mais pobre. Apesar de contraditório, isso não é nenhuma novidade. Quando os jovens negros da periferia decidem reivindicar o shopping como espaço de direito de todos e não de privilégio de poucos, numa espécie de transe coletivo, a classe média branca reage porque sempre atuou consciente ou inconscientemente pela lógica da distinção, como já demonstrou o sociólogo Pierre Bourdieu. Para uma parcela da população brasileira, soa irritante ver os meninos do funk desfilando num Citroën, carregado de mulheres e “plaques de 100”, como nos clipes musicais do Mc Guimê. Até então, algo indiscutivelmente restrito ao universo vip dos camarotes da elite.
A ocupação dos shopping representa, portanto, uma forma de participação mágica no estranho, no universo urbano, seguro e familiar do branco. Essa participação é vista como invasão de espaço pela população preconceituosa. E é também por isso que uma prática aparentemente trivial transformou-se numa manifestação política ao revelar um Brasil segregacionista, que tem dificuldades de dividir espaço com quem é diferente. Quem poderia imaginar que um rolezinho no shopping pudesse revelar nossas próprias contradições? Quem desconfiava que o ato de consumir pudesse nos dizer algo sobre uma possível contestação à própria sociedade do consumo? Eis a força do feitiço da mercadoria que se volta contra ela própria. Estaria o capitalismo sendo derrotado pelo próprio imaginário que tentou engendrar?
[1] Professor de Sociologia do IFSul Câmpus Bagé. Graduado em Ciências Sociais pela UFRGS e Mestre em Educação pela UFPel.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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