Dilemas da sociedade brasileira

Dilemas do Brasil

Por Weslei Pauli*
Francis Fukuyama, importante e celebrado cientista político americano, concedeu uma entrevista a Revista Veja (ed. 2344 de 23 out. 2013) e afirmou que “o Brasil ainda não possui as bases de uma sociedade avançada” e diz ainda que “a manutenção da desigualdade pode levar ao radicalismo”. Sem a pretensão de esgotar o assunto, mas com a finalidade de explorar esta questão tão importante para a sociedade brasileira, este artigo busca compreender e analisar de uma forma crítica às afirmações citadas acima. Em um dos seus mais céleres livros As origens da ordem política, Fukuyama argumenta que existem três elementos indispensáveis para a construção de uma sociedade virtuosa e desenvolvida. São eles: Estado forte, Estado de direito e governo responsável perante a sociedade.
Maluf (2009) mostra que o Estado é constituído de três elementos, quais sejam, população, território e governo. Portanto, Estado forte é a expressão maior do poder sendo este o de aplicar as leis e de oferecer serviços exclusivos para a população num dado território. Um Estado moderno é aquele capaz de cumprir essas funções de maneira impessoal. Isso significa um Estado que trate todos os seus cidadãos de maneira indistinta, independente de eles possuírem conexões com autoridades. Para Fukuyama o significado de Estado de direito é a limitação do poder, ou seja, o poder do Estado forte deve ser exercido unicamente dentro da lei. Em certo sentido, Estado forte e Estado de direito são forças que empurram para lados opostos, assim evitando que haja abusos de poder. Estado forte diz respeito a concentrar e exercer o poder, e Estado de direito diz respeito a limitar este poder através de dispositivos legais. E governo responsável significa um Estado que trabalha para o interesse comum.
No Brasil, a respeito da aplicação de leis para a punição de delitos, a parcela da população que possui alto poder aquisitivo e influência no meio político tem de certa forma vantagens. Essas vantagens se dão na contratação dos melhores advogados do país, de poder usufruir os incontáveis recursos disponíveis para adiar ou anular o cumprimento de sentenças e assim estendê-las “ad aeternum”. Isso mostra que existe ainda uma enorme disparidade na aplicação de leis no país e que fica evidente nas palavras do Ministro do STF Luis Barroso, que afirma: “temos milhares de condenados por pequenas quantidades de maconha e pouquíssimos condenados por golpes imensos na praça. Para ir preso no Brasil, é preciso ser muito pobre e muito mal defendido. O sistema é seletivo. É um sistema de classes”. Se levarmos em consideração a postura do governo na prestação de seus serviços à população, temos vários exemplos de cidades do interior do Brasil, onde o que é oferecido à população é de péssima qualidade, como por exemplo, a saúde, onde a falta de diversos equipamentos e materiais básicos no tratamento de pacientes impede o bom atendimento. Muitas vezes essa falta de equipamentos e materiais é em decorrência de processos licitatórios falhos, onde a empresa ganhadora não entrega o que lhe foi previsto. Porém, se houvesse a devida fiscalização e punição desta prática perante estas empresas, dificilmente este problema se repetiria. Esses dois breves exemplos mostram que, apesar de as instituições brasileiras terem feito progressos significativos, principalmente em áreas de excelência dentro da burocracia federal, quando se observa abaixo da superfície, principalmente no nível de estados e municípios, vê-se uma queda na qualidade de serviços, sobretudo em educação, saúde e segurança pública e na aplicação e fiscalização das leis. Assim como em outros países da América Latina, a principal falha está na capacidade de oferecer os serviços básicos de maneira satisfatória e combater as injustiças sociais.
Para Fukuyama a maneira mais usual de avaliar se o governo cumpre seus objetivos é por meio de eleições livres e multipartidárias, porém para o autor, somente eleições não bastam. Explica o autor que existem países aonde a população vai às urnas, mas nem por isso podem dizer que se trata de governos responsáveis. Podemos estar diante de governos corruptos, que manipulam os resultados das votações, ou de situações em que os eleitores não possuem as informações necessárias para fazer as escolhas corretas. Nestas situações, principalmente em áreas mais pobres do Brasil, a falta de escolaridade e de discernimento na escolha do político a ser votado leva a uma situação de manipulação e aproveitamento da situação. A chamada compra de votos, infelizmente uma prática comum no país, é uma das formas mais visíveis que se tem em relação a fraudes nas eleições. Muitos são os exemplos de políticos que, nas três esferas de governo, utiliza desta prática para iludir e persuadir o voto dos menos escolarizados e de certa parte da população considerada analfabeta política. Francis Fukuyama vai nos mostrar que uma ordem política moderna, portanto, dependem de um Estado que exerça o poder, de leis que sejam respeitadas e limitem efetivamente o poder e de um sistema que avalie se o governo atua em benéfico efetivo da população. Este efetivo benefício para a população não se dá somente através da transferência de renda, com o programa Bolsa Família, mas sim em criar e disponibilizar serviços de qualidade e que atendam a maioria da população de forma equânime. Porém, para o autor é muito difícil, para qualquer sociedade, possuir esses três valores simultaneamente: Estado forte, Estado de direito e governo responsável perante a sociedade. Mencione-se o exemplo da China, onde o país possui um Estado forte e competente, mas não dispõe de eleições livres, e fazendo um paralelo com o Brasil, onde se têm eleições livres, mas muitas vezes o Estado de direito não existe para a maior parte da sociedade.
Para entender os motivos de tanta ineficiência, Fukuyama vai buscar fatos históricos que poderiam ter influenciado a cultura brasileira neste sentido. Tendo em vista que a dominação e colonização da América do Sul e Central se deu efetivamente por espanhóis e portugueses, estes por sua vez vieram e implantaram na região instituições pré-modernas. Este fato acarretou na sociedade que estava se formando na região desconfianças quanto às próprias instituições do Estado. O sociólogo inglês Anthony Giddens, cita em suas obras que, esta desconfiança sentida pelas sociedades é características de culturas pré-modernas e advém da falta da chamada “segurança ontológica”. Para Giddens, segurança ontológica é a crença que a maioria dos seres humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e material em que vivem. Uma sensação de confiança inquestionável nas pessoas e coisas ao redor. Levando em consideração a forma como se deu o processo de colonização no Brasil, nada mais comum que ainda, até os tempos de hoje, a sociedade brasileira tenha em sua cultura essa desconfiança para com as instituições do país como o poder judiciário, e principalmente com os poderes executivo e legislativo. Além disso, Fukuyama levanta a questão de que a sociedade formada no Brasil não se deu de forma heterogênea (eu diria “relativamente homogênea”), compostas inteiramente de colonos europeus como no caso dos Estados Unidos, mas sobrepostas, de maneira desigual, a uma vasta população de indígenas, tratados como escravos. Cabe destacar aqui que, assim como no Brasil, nos Estados Unidos também houve trabalho escravo, mas que a sua sociedade foi formada principalmente por uma leva de imigrantes mais homogêneas, composta por irlandeses e britânicos (mas também de alemães, eslavos e escandinavos). Outro ponto importante para entendermos o porquê de o Estado brasileiro e de a sociedade brasileira não poder ser considerada avançada é pelo fato de que no Brasil, assim como no Caribe, a economia foi moldada ao redor do açúcar, uma agricultura baseada em grandes propriedades e mão de obra escravizada. Para Francis Fukuyama, trata-se de um modelo econômico cujo resultado é a desigualdade. Como a forma de colonização se deu através da retirada da riqueza nativa e o envio desta para a coroa portuguesa, não haveria os incentivos para construir uma burocracia administrativa de qualidade nas colônias. Portanto o autor é bem claro em dizer que em razão deste estágio inicial de profunda desigualdade, as instituições foram se moldando para servi as elites. Para Fukuyama nunca houve o princípio de oferecer educação de qualidade para toda a população. Desde que a elite estivesse atendida, bastava.
Em contraponto, outros países se desenvolveram mais rapidamente que o Brasil como, por exemplo, os casos de Japão, Coréia do Sul, Taiwan e os demais Tigres Asiáticos (com exceção do primeiro, isso ocorreu nos últimos 50 anos). Para esse fato Fukuyama argumenta que estes países possuíram e ainda possuem uma população relativamente pequena, muito mais homogênea, o que favorece o fortalecimento do senso de identidade nacional. Outra diferença que ajudou no desenvolvimento desses países foi o forte investimento em formação de uma elite burocrática altamente capacitada e na educação de suas populações. Na América Latina, especificamente no Brasil, a formação da população se deu de forma mais desigual e numa trajetória mais lenta. Apesar de a desigualdade na sociedade brasileira ter diminuído, o principal problema persiste no desnível da qualidade da educação, sobretudo aquela oferecida aos mais pobres. Os países asiáticos foram capazes de resolver essa questão mais rapidamente. Fukuyama argumenta que, diante destes problemas identificados no Brasil, o país possa ter retrocessos institucionais, principalmente se a economia continuar estagnada.
Diante do que foi exposto. Dos grandes dilemas apresentados por Francis Fukuyama, deve-se ter em mente que as sociedades não são estáticas e que estas muitas vezes não ficam esperando o governo resolver seus problemas. Boa parte da população, principalmente as mais instruídas, cobra de seus governantes atitudes e ações positivas através de protestos, greves e atos públicos, como os acontecidos nos meses de junho e julho no Brasil. Para Fukuyama são protestos tipicamente originários de uma classe média descontente originada da desigualdade, de ações populistas e de políticas radicais. Por isso, afirma o autor, que “todas as sociedades avançadas programaram algum grau de Estado de bem-estar social. Essa seja talvez a grande falha da América Latina. Os países da região nunca fizeram o suficiente para promover uma redistribuição da riqueza capaz de dissipar a radicalização política e o populismo”. Portanto, a sempre precária ordem pública e o desenvolvimento dependem da intensificação dos direitos sociais, sobretudo da educação, e de uma prestação de serviços com qualidade, cabendo aos segmentos mais instruídos da nação a devida consciência disso, através da afirmação do tripé de Fukuyama, qual seja, Estado forte, Estado de direito e governo responsável.
Referências

FUKUYAMA, Francis . Entrevista a Revista Veja. ed. 2344 de 23 out. 2013.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Trad. Raul Fiker. 1° ed. Unesp, 1991.

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2009.

*Weslei Pauli e graduando em Curso de Ciências Sociais – Universidade do Contestado – Mafra.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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