Mulheres islâmicas: Olhar da mídia do mundo ocidental*

Muitos de nós quando pensa em mulheres islâmicas a primeira coisa que vem em mente é a imagem do véu. Com o fim dos regimes socialistas do leste europeu, o discurso político-econômico do neoliberalismo tornou-se dominante. Podemos dizer que na era pós União Soviética os princípios do liberalismo econômico clássico gradativamente foram sendo associados a modernidade, a ideia de democracia e aos direitos humanos. O liberalismo passou a reivindicar para si a democracia e os direitos humanos. Podemos dizer que agora ele não encontra concorrente. Mas, esta é uma associação que não resiste a uma verificação empírica. Afinal, a modernidade e a valorização da racionalidade ocidental e do empirismo geraram intolerância e estereótipos sobre outros saberes, povos e grupos étnicos. Segundo Morin (2009) a barbárie é um componente próprio das sociedades modernas ocidentais e da valorização que elas desencadearam acerca da racionalidade.

Podemos dizer que a tese dos direitos do homem e do cidadão que nasce na era moderna, comporta contradições. Entre os direitos do homem e do cidadão esta o pressuposto daautodeterminação dos povos, portanto, o direito a liberdade religiosa, o direito a liberdade de expressão e o direito ao exercício de práticas culturais. Embora nos discursos do neoliberalismo a autodeterminação esteja presente, na prática da mídia ocidental ela é constantemente negada.

Quem assiste à CNN e possuí saber histórico não esquece a técnica, usada por Bismarck, de falsificar fatos e documentos, tendo em vista fins estratégicos. “Falsificar” é a palavra. Não se trata de pura mentira: quando “jornalistas” censuram imagens, dados, história, até mesmo a geografia e a cultura, em particular no que se refere a religião, eles usam o método de propaganda batizado por E. Auerbach como “a técnica do holofote”. A retórica propagandística age como se o mundo fosse um palco. O jornalista ilumina alguns cantos do cenário, deixando os demais na sombra. O fato que recebe luz exclusiva pode ser verdadeiro, mas não é toda a verdade (Romano, 2004, p.32)

 

O alvo da mídia pode ser informar o espectador, mas devemos reconhecer que ela tem o poder de doutrinar corações e mentes. E, devemos perceber que “desde longa data a guerra contra o Islã tem sido o mote das falas cristãs piedosas” (Romano, 2004, p.33).

A política econômica pregada pelo discurso neoliberal afetar não apenas a economia dos estados nacionais, mas, também, afeta o ethos de inúmeras nações. Os partidários das teses neoliberais e os organismos internacionais, porta vozes do neoliberalismo, como o FMI e o Banco Mundial impõe uma política econômica para todos os estados sem levar em conta as diversidades étnico-religiosas de regiões e países. Diversidade que pode ser um entrave aos interesses do neoliberalismo.

Esta política econômica imposta a todos e que recebeu o nome de globalização econômica, esta pautada na supremacia do mercado sobre as instituições políticas, religiosas e culturais.

A mitologia criada pela direita radical apresenta o mercado como um mecanismo racional e objetivo, baseado em princípios da liberdade e igualdade econômicas tanto entre compradores e vendedores como entre proprietários e trabalhadores, em que todos tendem a beneficiar-se do intercâmbio, troca e competitividade ( Mészáros, 1997, p.143)

A crítica que se faz a este modelo econômico é que ele não deixa aos estados nacionais espaços de atuação ao mesmo tempo em que faz uso da mídia global para manipular e modificar elementos que definem as identidades nacionais e étnicas. Certos elementos étnicos e religiosos passaram a ser apresentados pela mídia como símbolos de desrespeito aos direitos humanos. É o caso do véu islâmico.

O véu esta em todos os lugares, em todas as imagens, em todas as reportagens que nos chegam dos países muçulmanos. Xador, Jihab, Burca, Niqab, Jilhab, enfim, o véu é islâmico. São muitas as vestimentas que cobrem o corpo, o rosto e os cabelos da mulher muçulmana, mas para compreendermos este poderoso símbolo, precisaremos recuar no tempo, no tempo de Maomé, mais ou menos pelo ano de 622 ( Collares, 2011, p.1)

Existem versões sobre os usos do véu no tempo de Maomé. Mas o véu é anterior ao profeta e o corão não faz menção a ele. Os diversos tipos de véus eram usados para identificar o clã ao qual a mulher pertenceria. Era um meio de proteção no mundo pré-islâmico. Não encontramos referências diretas ao véu no texto sagrado. “O alcorão não ordena explicitamente, apenas sugere que todas as mulheres cubram a cabeça…” (Collares, 2011, p.3).

A recomendação corânica de que as mulheres islâmicas devem se vestir modestamente e cobrir seus encantos, a não ser para seus maridos e homens de sua família nuclear, foi compreendida e apropriada de diferentes formas na história das sociedades muçulmanas. Assim, na Arábia Saudita e em boa parte da península arábica, as mulheres usam o niqab, que cobre todo o corpo da mulher com exceção das mãos e dos olhos; no Irã, a forma tradicional do véu consiste em um longo pano, o chador, que envolve o corpo da mulher, mas deixa o rosto a mostra; no Paquistão, o véu é um echarpe usada para cobrir os cabelos, mas permite a visão do rosto feminino. Se no Afeganistão a burqa impede totalmente a visão das formas do corpo feminino, ocultando até mesmo os olhos com uma gaze de tecido, entre as jovens de classe média da Síria, Líbano e Turquia, o hijab (lenço usado para ocultar os cabelos) é frequentemente combinado com calças jeans justas que realçam as formas do corpo (Pinto, 2010, p. 27-28)

As mulheres islâmicas que fazem uso do véu são apresentadas pela mídia como despossuídas de liberdade, submetidas a preceitos religiosos e a dominação masculina. Mas a mídia se esquece que na Turquia o Estado, no início do século XX, promoveu uma forte campanha pela abolição do véu e, assim mesmo, uma parcela significativa de mulheres turcas continuam usando esta indumentária. Podemos nos indagar se estariam estas mulheres islâmicas submetidas a leis religiosas ou simplesmente querem expressar sua fé e respeito ao que o alcorão diz sobre cobrir seus encantos.

Portanto, devemos tomar certo cuidado com generalizações impostas por uma parcela da mídia. O véu é uma indumentária pré islâmica e esteve associado a proteção e ao pertencimento a determinado clã. Usá-lo, correspondia identificar o clã ao qual a mulher pertenceria. Portanto, devemos nos preocupar com os discursos presentes numa parcela da mídia ocidental que dizem respeito a mulher islâmica e o uso do véu. Discursos que devem ser objetos de nossas reflexões, pois indicam um olhar preconceituoso sobre a mulher islâmica e sua estética. Um olhar que esta se tornando cada vez mais pejorativo e preconceituoso sobre o próprio islã. Reside ai uma das dificuldades do diálogo entre o Ocidente cristão e o mundo islâmico

Discursos que relacionam o véu com a ideia da falta de liberdade do sujeito buscam associar a sociedades islâmicas ao atraso e a falta de liberdade. O islã é frequentemente construído pelo imaginário cultural e discurso político das sociedades euro-americanas como uma alteridade radical. Segundo essas visões, o islã seria dotado de qualidades negativas – irracionalidade, fanatismo, autoritarismo, opressão às mulheres, violência e tradicionalismo – contrastadas às que definiriam o “mundo ocidental” – razão, tolerância, liberdade, igualdade e modernidade (Pinto, 2010, p. 21)

Liberdade que é apresentada como cerne da modernidade e dos direitos humanos no mundo ocidental. O olhar triunfalista do eurocentrismo, de Platão a OTAN, não reconhece que a própria Europa é na verdade uma síntese de diversas culturas, ocidentais e não ocidentais, como a cultura islâmica e judaica segundo Shohat e Stam (2006). Isto significa que a Europa deve muito as culturas não européias.

Mas, se os direitos humanos, também, comportam o direito a autodeterminação dos povos, então eles nos dizem que devemos reconhecer as identidades nacionais e religiosas. Devemos, principalmente, refletir sobre as práticas e discursos que uma parcela da mídia do mundo ocidental tece sobre o mundo muçulmano e, reconhecer que para muitas mulheres islâmicas o véu, também, é um símbolo de sua identidade religiosa.

Bibliografia: COLLARES, Valdeli Coelho. O Véu depois do 11 de Setembro. Revista Aurora, Marília, ano V, Nº 9, Dezembro de 2011. MÉSZÁROS, István. Ir Além do Capital. In: Coggiola, Osvaldo (org.) Globalização e Socialismo. São Paulo: Xamâ, 1997. MORIN, Edgar. Cultura e Barbárie Européias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização. Uma abordagem Antropológica. São Paulo: Santuário, 2010. ROMANO, Roberto. O Desafio do Islã e outros desafios. São Paulo: Perspectiva, 2004. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Nayf, 2006.

 

*”Texto Livre” originalmente publicado na Revista Café com Sociologia  

Antonio Carlos Lopes Petean[1]

Thais Karwowski[2]

Resumo Este ensaio tem como ponto central uma pequena reflexão sobre as relações entre a mídia do mundo ocidental e o direito a autodeterminação dos povos, entre eles o direito a liberdade religiosa. Para este exercício o tema abordado é o uso do véu no mundo islâmico.

Palavras-Chave: Modernidade. Islamismo. Liberdade Religiosa.

 

[1] Doutor em sociologia pela UNESP/Araraquara e Prof. Adjunto do Instituto de Ciências Sociais da UFU. [2] Graduanda em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia.

 

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Referências

PETEAN, Antonio Carlos Lopes; KARWOWSKI, Thais. A idéia de modernidade e o olhar da mídia ocidental sobre as mulheres islâmicas. Revista Café com Sociologia, v. 2, n. 3, p. 05-08, 2013.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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