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Nota da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais em relação à BNCC

Base Nacional Comum Curricular

O MEC encaminhou ao Conselho Nacional de Educação (CNE), no dia 3 de abril, a terceira e pretensamente última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. Só então professores, estudantes, pesquisadores e a sociedade em geral tiveram acesso ao documento que propõe especificar as “aprendizagens essenciais e indispensáveis” para os estudantes do ensino médio em todo o país. A falta de transparência no processo de elaboração do documento, por si, torna questionável sua legitimidade.

Desde 2015 a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) acompanha com preocupação as mudanças propostas pelo governo federal para a última etapa da educação básica. A Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio são dois elementos estreitamente ligados a um projeto de educação para a juventude que está na contramão do que vem sendo proposto pelas organizações de professores, pesquisadores e estudantes interessados nos rumos das mudanças. Assim como outras entidades e setores da sociedade, a ABECS reivindica o direito de participar da discussão sobre a BNCC do Ensino Médio e conclama o Conselho Nacional de Educação a exercer o seu papel de promover o debate verdadeiramente público sobre a proposta e não apenas referendar a proposição recebida do Ministério da Educação. A Reforma do Ensino Médio e a BNCC apresentada pelo MEC descaracterizam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96) e inviabilizam a execução do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024).

Cabe lembrar que a Reforma do Ensino Médio foi apresentada de modo aligeirado e de cima para baixo através de medida provisória nº746/2016, desrespeitando os debates já realizados entre governo federal e sociedade civil. Convertida posteriormente em Lei 13.415/17, ela propõe a flexibilização dos currículos e a autonomia dos sistemas de ensino quanto aos chamados “itinerários formativos” que seriam oferecidos. Esses documentos deixaram em aberto quais seriam os componentes curriculares e objetivos de seu ensino, aguardando tais definições da BNCC. No entanto, a proposta apresentada nessa semana ao CNE, detalha apenas os conteúdos para o ensino de Língua Portuguesa e Matemática, únicas disciplinas consideradas obrigatórias pela Lei 13.415/17.

A prioridade dada à Língua Portuguesa e Matemática parece desconsiderar que a leitura, a escrita e o cálculo tem desdobramentos específicos nas diferentes disciplinas e, ainda, que as diferentes áreas de conhecimentos reúnem disciplinas bastante distintas entre si. Os conhecimentos curriculares das demais disciplinas não podem ser aglutinados em conteúdos gerais de uma área sem incorrer em generalização e pasteurização grosseira e incompatível com uma formação de qualidade para os estudantes, sobretudo quando se considera a possível redução da carga horária dedicada a esses estudos. Nessa concepção genérica dos conhecimentos, eles não aparecem como resultado de métodos e processos de trabalho específicos que diferenciam a abordagem de cada uma das diferentes ciências e campos de produção de conhecimento. A História, a Geografia, a Filosofia e Sociologia (que enquanto disciplina escolar englobatambémos conhecimentos da Antropologia e da Ciência Política), mesmo quando se dedicam ao estudo dos mesmos objetos, o fazem com diferentes objetivos, métodos e perspectivas interpretativas. É de extrema importância que as pessoas responsáveis por seu ensino sejam formadas naquelas disciplinas, compreendam e possam praticar seus métodos, para assim construir conhecimento com estudantes na escola básica.

Contrariando sua ideia fundamental de Base Comum, essa proposta provoca a descontinuidade entre Ensino Fundamental e Médio e deixa totalmente a cargo dos estados, municípios e setor privado a oferta de itinerários formativos. Sua organização por meio de áreas de conhecimento torna indefinido o aporte teórico-epistemológico que caracterizará cada uma dessas grandes áreas. Qual será a formação necessária para dar conta dos conteúdos e “competências” das Ciências Humanas? Quem fará as escolhas? Sabemos que a maioria das escolas não teria condições de ofertar todos os itinerários. Quem selecionaria os itinerários oferecidos e com quais critérios?

A fragmentação dos currículos proposta na Reforma do Ensino Médio desconsidera também a importância das diferentes áreas de conhecimento na formação plena da população. A BNCC reforça tal fragmentação. No que toca às Ciências Sociais, ressaltamos seu papel em diversos cursos de ensino superior, nas áreas deeconomia, da saúde, da educação, do direto, do serviço social, entre outros, o que atesta sua importância tanto para que o estudante compreenda o papel social de sua profissão e área de atuação quanto para compreender as dinâmicas da vida social e das relações entre os diferentes grupos que compõem a sociedade.

Além de não especificar os componentes curriculares a que os jovens terão direito, tornando arbitrária a interpretação e adequação à BNCC e dando liberdade ampla paraorganizar os 40% do currículo do Ensino Médio correspondentes aos itinerários formativos, a reforma proposta cria um fosso entre as ofertas nas escolas das diferentes regiões do país e entre o ensino público e privado. Esta autonomia não seria um problema se houvesse alguma garantia de participação das comunidades escolares e dos principais atores envolvidos na construção de currículos. Ao contrário, vemos que a iniciativa privada ocupa um espaço cada vez maior na discussão dos rumos da educação pública e no direcionamento das políticas públicas de educação para atender às necessidades do mercado de trabalho. Os setores privados não se compreendem responsáveis pela formação de trabalhadores para o mercado e desejam transferir ao Estado essa atribuição, ou também vender ao Estado, por meio das ditas parcerias, a formação técnica profissional que lhes pareça conveniente para demarcar as diferenças entre elite e trabalhadores.

A organização curricular por competências, que ignora as especificidades de cada ciência, sem construir uma interdisciplinaridade efetiva, define este modelo de ensino assentado na noção de eficiência no contexto de trabalho e provoca um retrocesso em relação aos conhecimentos já desenvolvidos no país a respeito dos processos educativos. Não deixamos de notar a contradição implicada em um documento que, por um lado, afirma como competências essenciais a promoção do respeito ao outro e dos direitos humanos, a valorização da diversidade e ausência de preconceitos e a colaboração na construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva e, por outro, exclui a obrigatoriedade de uma disciplina que é, no currículo do Ensino Médio, responsável por trazer aos estudantes ferramentas essenciais à compreensão objetiva e cientificamente embasada dessas questões, tais como os conceitos de alteridade, identidade, raça, etnia, diversidade cultural, gênero, estratificação social, desigualdade social, classe social, cidadania, participação política, poder, dominação, entre outros.

A Sociologia possibilita uma ampliação da leitura de mundo dos estudantes, oferece à juventude a possibilidade de localizar-se na estrutura social e assim reconhecer-se como parte de um todo muito mais amplo pelo qual cada um é responsável. O espaço de reflexão e interpretação da realidade, proporcionado pela disciplina, contribui de maneira significativa para que estudantes possam identificar processos e relações sociais dos quais fazem parte, e para interpretar as mudanças e os desafios colocados à sociedade contemporânea. Da mesma forma, cada uma das demais disciplinas que deixam de ser obrigatórias com a reforma proposta tem uma contribuição e um papel específico na formação dos estudantes, que não podem ser considerados dispensáveis, nem intercambiáveis.

A BNCC não corrige os problemas que já foram amplamente identificados no debate público acerca da Reforma do Ensino Médio. A não-obrigatoriedade da oferta de todos os itinerários formativos amplia as desigualdades entre ensino privado e público e sinaliza para a mercantilização da produção de indicadores da qualidade da educação. As possibilidades abertas pela Lei 13.415/17, de ofertar parte da carga horária obrigatória em “parcerias” com o setor privado e por meio do ensino à distância, atenderão a um grande nicho de mercado que aguarda para absorver as demandas das escolas de ensino público no país que não terão condições de se adequar às imposições do mercado, configurando-se como um modelo excludente.

O conjunto das reformas educacionais, com mudanças acentuadas no Ensino Médio, aprofunda as já tão graves desigualdades educacionais do nosso país, pois fere o próprio significado do que seria uma base comum e fundamental a todos e limita o acesso dos jovens a conhecimentos importantes para que realizem as mediações necessárias diante das situações mais complexas da vida cotidiana. Melhorias na educação pública e no Ensino Médio dependem de investimentos, valorização dos professores, participação das comunidades escolares na elaboração dos currículos, garantias de aprendizagens e respeito aos estudantes como sujeitos críticos, criativos e responsáveis pela construção dos seus direitos, saberes, sonhos e potencialidades.  Não é um ensino que reproduz a exclusão, a fragmentação, o tecnicismo e os valores do mercado que irá contemplar as necessidades e expectativas de formação da juventude brasileira. Estamos certos que as proposições da BNCC precisam ser amplamente discutidas e publicizadas e a ABECS solicita urgente inclusão nesse debate e torna pública, por meio desta nota, sua contrariedade ao conteúdo e a forma do documento elaborado, bem como à Reforma do Ensino Médio em curso.

Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS)

Abril de 2018.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

1 Comment

  1. Perfeito!
    Contudo, o modelo excludente em marcha é proposital, bem projetado.
    E lamento a omissão, pior ainda, a anuência de tantos quanto se dizem lutar porbuma educação “pública de qualidade”, como é o caso de muitos membros do Ministério Público.

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