O agro, a ciência e as queimadas

Por

Ângela Camana*

Rodolfo Lobato**

Chega a ser, no mínimo, curioso assistir às incansáveis propagandas do “Agro é Tech”, enquanto a fuligem das queimadas toma forma de chuva negra e temos dificuldades para respirar nas grandes cidades brasileiras. Venderam-nos a ideia de que o “agro é tudo”, mas se esqueceram de mencionar como somos dependentes de tecnologias que ignoraram saberes e técnicas tradicionais. Tentaremos mostrar como o investimento em produção de conhecimento nos ajudou na travessia de diferentes crises, apesar dos silenciamentos e paradoxos.

Nosso primeiro ciclo econômico, a plantation de cana-de-açúcar (baseada na monocultura e no trabalho escravo), utilizou-se de conhecimentos experimentados pelos europeus nos arquipélagos do Atlântico (Crosby, 2011). Até o século XVIII, era proibido nas colônias portuguesas bibliotecas públicas, universidades, gráficas e organizações científicas.  Para estudar era necessário enviar os jovens para a Europa.

A crise desse ciclo econômico coincidiu com as derrotas portuguesas em suas colônias asiáticas. Em resposta, houve um investimento em ciência, tentando introduzir espécies “exóticas”, que culminou nas nossas primeiras instituições de pesquisa, como o Jardim Botânico (1808) e o Museu Nacional (1818). Nos séculos XIX e XX, assistimos à transição para um novo ciclo econômico, dependente da exploração extensiva do café (Delgado, 2022).

Com o fim da escravidão, temos os exemplos que permaneceram como apostas emancipatórias na educação, que hoje são universidades públicas: UFBA (1877); UFPEL (1891); ESALQ/USP (1901); UFRGS (1910); UFRRJ (1913); UFRPE (1914); UFPR (1918); UFCE (1918); e a UFV (1928). Podemos citar também a criação do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) (1887), a Fundação Oswaldo Cruz (1900), o Instituto Butantan (1901) e o Instituto Vital Brazil (1919). Infelizmente, mais da metade dos projetos para a construção de institutos de pesquisa e cursos de agronomia foram abandonados ou extintos (Molina, 2012). Os títulos de agronomia, cientista ou de técnico eram desvalorizados em relação às demais carreiras de Estado.

A sobrevalorização do conhecimento de “fora” permitiu que nos ludibriássemos com as fantasias de uma ciência que mantinha sua base no velho mundo. Acreditamos nas falácias de superioridade racial, e ignoramos novamente o conhecimento que sobrevivia em populações pobres, tradicionais ou originárias, tratadas como inferiores.

Praticamente todos os alertas de pesquisadores sobre a degradação do solo foram ignorados. Perdemos nossa biodiversidade – em grande parte da Mata Atlântica – a vida nos centros urbanos passou por momentos de escassez hídrica, energética e alimentar (Dean, 1996). A crise do café foi contemporânea à industrialização do país, à grande Guerra Mundial, e às mudanças demográficas mais radicais que vivemos. Passamos a ser um país que se forjava como “urbanizado”.

Com o crescimento das cidades e com o aumento da população reproduzia-se um contexto de escassez de alimentos e inflação. Reformas estruturais foram demandadas, que indicavam a importância do fortalecimento do mercado interno, da reforma agrária e da educação. Na década de 60, antes e durante a ditadura militar, houve um investimento em órgãos de pesquisa, ciência e tecnologia voltados para a construção de um modelo de desenvolvimento nacional, organizada em torno de universidades públicas e empresas de pesquisa agropecuária, como a Embrapa (1973).

Iniciava-se o ciclo do agronegócio, baseado num pacote tecnológico da “revolução verde”, com subsídios do crédito rural, que estimulava a produção de fertilizantes, agrotóxicos e de máquinas. Para esse modelo se erguer muitas vozes foram silenciadas. Depois de mais de seis décadas, hoje o Brasil está entre as dez maiores economias do planeta, em PIB e desigualdades.

A perda de cientistas para o exterior, o baixo nível de investimento em educação não é mais um luxo que podemos contar. Sem a produção de conhecimento crítico, não teremos ferramentas mínimas para pensar o que será do Brasil após o ciclo de um modelo de agronegócio, dependente de combustíveis fósseis. Em vez do mito de um país gigante, que não parará nunca de crescer, sejamos humildes de reconhecer os limites físicos e naturais da nossa economia.

Num futuro bem próximo, seremos cobrados pelas nossas capacidades de resposta às mudanças climáticas, que significa a conservação das florestas, a produção de conhecimento e, principalmente, pela produção de alimentos saudáveis, com águas limpas, sem veneno, mercúrio, desmatamento e queimadas. Em resumo, nenhum ciclo econômico é eterno.

Referências:

Crosby, A. W. Imperialismo ecológico. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Dean, Warren. A ferro e fogo: a história da Mata Atlântica. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Delgado, G. Mudanças cíclicas do espaço rural brasileiro e perspectivas de futuro. In A. K. Homma et al. (Eds.), O Brasil rural contemporâneo: interpretações. Editora Baraúna, 2022.

Molina, Rodrigo S. Primeiras Escolas Agrícolas no Brasil: limites e falências (1877 a 1936). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.46, p. 309-324, jun, 2012

*Ângela Camana Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contribui com os grupos de pesquisa Observatório dos Conflitos Socioambientais (UFPR); Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS/UFRGS); Jornalismo Ambiental (GPJA/UFRGS).

**Rodolfo Lobato é docente do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e vinculado aos Programas de Pós-graduação em Sociologia (PPGSOCIO) e em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE). Pesquisador Centro de Estudos Rurais do Paraná (CERU), do Observatório Fundiário Fluminense (UFF) e do GT Ecosocial (UFF). Mestre e doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF), atualmente coordena estudos e pesquisas através do Núcleo Fundiário e Ambiental do Paraná (NUFAP)

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

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