O Projeto de Vida como componente curricular do ensino médio: aprofundamento da irresponsabilidade do Estado e os danos ao ensino médio

Projeto de Vida em pauta

Cristiano das Neves Bodart[1]

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Pretendo neste breve texto apresentar alguns dos aspectos problemáticos presentes no componente Projeto de Vida proposto pelo Ministério da Educação. Este traz mais problemas do que soluções para a formação dos estudantes secundaristas e, consequentemente, para maior parte da sociedade brasileira. Tentarei fazer isso por seção, de modo a tornar mais compreensível e organizado o que busco destacar.

Inicio inferindo que há, na proposta desse componente curricular, erros que irão prejudicar ainda mais o ensino médio brasileiro. Erros de falta de definições; de cunho teórico-metodológico, pedagógicos, de gestão de pessoas e erros de matriz curricular. Além de trazer uma perspectiva danosa para um país marcado por grandes desigualdades de acesso às condições de realizações de projetos pessoais.

O Projeto de Vida

Primeiro aspecto a ser considerado é que o Projeto de Vida não é uma disciplina como as demais que estão presentes no ensino médio. Não é resultado de um campo disciplinar ou área de conhecimento científico, como são a Sociologia, a Filosofia e a História. Trata-se de uma proposta temática pouco clara e sem bases teóricas e epistemológicas definidas. Isso abre caminho para que seja apresentada aos estudantes de duas formas: a) uma espécie de autoajuda e; b) um retalho de abordagens derivadas de quaisquer tipos de conhecimento, inclusive do senso comum.

Não podemos olvidar que escola deve ser espaço de transmissão de conhecimentos científicos sólidos. Uma ciência torna-se, em geral, uma disciplina escolar após passar por sua institucionalização no campo acadêmico. Ainda que os temas juventude, trabalho e escola estejam presentes nas Ciências Humanas, são ainda temas e objetos de estudos e não áreas de conhecimentos. Importa destacar que a Projeto de Vida, como proposto pelo Ministério da Educação (MEC), não é uma transposição da Sociologia da Juventude, do Trabalho ou da Educação. Muito longe disso; suas raízes estão nos “ventos do mercado”, esses carregados da crença na meritocracia, no individualismo e no empreendedorismo. O componente, como proposto pelo MEC, é uma aula de coach.

Ou seja, a proposta do MEC não traz bases teórico-metodológicas e pedagógicas sólidas. Trata-se de um experimento advindo do mercado e seu interesse em mão de obra semiqualificada – basta observar seus principais defensores para entender suas intenções.

Os impactos sobre a carga horária das disciplinas

O MEC vem, por meio da (De)Reforma do Ensino Médio, orientando os estados para que tenham em seus currículos estaduais o Projetos de Vida nos três anos do ensino médio. A criação de mais um componente curricular tem impacto sobre a distribuição de carga horária das demais disciplinas, levando a redução de oferta de disciplinas consolidadas, tais como História, Geografia, Sociologia e Filosofia.

É sabido que os docentes que lecionam Sociologia e Filosofia já possuíam, em geral, uma carga horária semanal reduzida nas séries de ensino médio, o que os levam a ter que lecionar para um grande número de turmas e de escolas (isso significa mais atividades, menos tempo para planejamentos e menor contato com os estudantes), situação que gera condições precárias de trabalho e de ensino-aprendizagem (PEREIRA; CAES, 2019). Com a introdução do Projeto de Vida essa condição torna-se ainda mais precarizada, já que há uma tendência de reduzir ainda mais a carga horária dessas disciplinas. Ou seja, temos a introdução de um componente curricular não sistematizado cientificamente e a precarização da oferta de outros que já estão consolidados no campo científico. Aqui o mais é menos.

É falso que Projeto de Vida atrairá a atenção dos estudantes

O principal argumento de quem acredita que Projeto de Vida atrairá a atenção dos estudantes está na falácia de que sendo tal componente voltado à suas vidas práticas a torna mais interessante. Tal argumento ignora que disciplinas como Filosofia e Sociologia já fazem diálogos diretos como a vida dos estudantes. O mais recorrente nas aulas de Sociologia, por exemplo, é o docente partir da realidade concreta sentido às contribuições dessa Ciência (BODART, 2021a).

No estado do Espírito Santo tive a experiência de lecionar, entre 2010 a 2012, um componente curricular com a mesma proposta, porém intitulada Juventude, Educação e Trabalho (JET). Pelos resultados ruins alcançados e pela ampla reclamação dos docentes foi abandonado pela Secretaria de Educação daquele Estado. Na ocasião tentei fazer do limão uma limonada, mas o resultado era infinitamente inferior quando esses temas eram apresentados como conteúdos de Sociologia, já que esta proporciona maior solidez nas abordagens, distanciando as fantasias que podem rondar os temas das aulas. Tal como o Projeto de Vida, JET poderia ser lecionado por qualquer docente, o que maximizava seus problemas. O discurso era semelhante, despertar nos jovens as competências básicas necessárias para o ingresso e a permanência no mercado de trabalho, estimulando habilidades empreendedoras que os ajudem a efetivar seus projetos pessoais e coletivos.

O Projeto de Vida não foi pensado para o sucesso dos pobres

É certo que todos nós precisamos ter projetos pessoais e usar nossa capacidade limitada de agenciamento para alcançá-los. Contudo, ignorar que há uma estrutura material que limita nossas escolhas e capacidades de agir em certas direções é equivocado. A consciência das limitações estruturais é o primeiro passo para pensar estratégias de superação, embora nem sempre essas são alcançadas.

Quando maior a privação material e cultural dos estudantes, menor é sua capacidade de escolha. Só há escolha dentro do horizonte disponível: um estudante que nunca ouviu falar de gemologia, por exemplo, não terá oportunidade de ter no “legue” de escolhas se especializar em pedras preciosas. Uma estudante negra que mora na periferia do Rio de Janeiro não terá as mesmas condições e oportunidades de ser uma apresentadora de TV do que uma estudante enquadrada nos “padrões europeus de beleza”, cujos pais são donos dessa emissora. Dizer para a estudante negra e periférica que se ela fizer um “bom projeto de vida” alcançará seu objetivo, é o mesmo que lhe imputar a responsabilidade de “seu fracasso”.

Projeto de Vida pode fazer sentido para os abastados que têm como obstáculo apenas o desinteresse. Para a população pobre, o desinteresse é resultado da falta de oportunidade, do excesso de restrições estruturais ao acesso às coisas básicas, como emprego, alimentação e moradia.

Há na proposta o empenho em ignorar intencionalmente que somos seres históricos, inseridos em estruturas sociais pré-estabelecidas e o desenvolvimento de cada um, e de cada uma, depende do desenvolvimento coletivo da sociedade.

O Projeto de Vida como projeto de desresponsabilização do Estado

O discurso presente no Projeto de Vida, como proposto pelo MEC, busca transferir a responsabilidade do insucesso aos indivíduos. Os discursos da meritocracia, do empreendedorismo e da autodeterminação visa apagar a responsabilidade do Estado sobre o desenvolvimento da sociedade como um coletivo. Sob esses discursos o fracasso ou o sucesso são frutos exclusivos dos indivíduos. Como a contribuição do componente curricular em questão para mudar o status quo é inexistente, servirá apenas para desresponsabilizar o Estado da exclusão social que historicamente e estruturalmente aniquila maior parte da sociedade brasileira, especialmente aquela que depende da escola pública para tentar mudar em alguma medida suas condições de vida.

Projeto de Vida é a transposição dos discursos mercadológicos para as escolas: reduzir o papel do Estado e deixar os indivíduos se digladiarem entre si para ter um lugar à sombra. As crises do mercado de trabalho geradas pelo Neoliberalismo passam a entrar na conta dos esforços individuais. O desemprego, a pobreza e a falta de acesso aos bens de consumo são convertidos em falta de interesse, de planos e de vontade de cada um e cada uma.

O Projeto de Vida e a instabilidade docente

Aqui há outra falácia. Na verdade, a ampliação da carga horária do ensino médio poderia ser aproveitada para ampliar as aulas das disciplinas com carga horária reduzida, dando melhores condições para os(as) professores(as) de ministrarem suas disciplinas, inclusive podendo trabalhar temáticas ligadas aos temas juventude, trabalho e escola.

Por não haver definições de quem estaria habilitado a lecionar[2], Projeto de Vida se tornará um “puxadinho” para qualquer docente que tiver a “benção” do(a) gestor(a) da escola, abrindo espaço para a perda de autonomia docente e práticas clientelísticas.

Sendo um componente experiemental e sem tradição, o Projeto de Vida não proporcionará abertura de vagas para novas concursos públicos. Pelo contrário, ao diminuir as aulas semanais das demais disciplinas, essas acabam tendo suas vagas reduzidas em contratações de docentes efetivos. Essa situação tenderá a maximizar a rotatividade dos(as) professores(as), ampliando sua instabilidade no trabalho, impactando sobre suas vidas profissionais (e pessoais), dificultando uma oferta sistemática e contínua dos conteúdos definidos pela os componentes curriculares ao longo dos três anos.

Há saída?

A saída é a revogação da (De)Reforma do Ensino Médio e a convocação da sociedade e das entidades científicas para discutir um projeto educacional humanizado. A reforma que temos desumaniza a educação e seus efeitos são nocivos (BODART, 2021b) e, por isso, precisa ser abortada juntamente com o atual governo.

Contudo, enquanto isso não acontece é necessário pensarmos como minimizar os impactos do Projeto de Vida, o que passa necessariamente pela desvirtuação de seus propósitos ao fecharmos as portas da sala de aula. É necessário questionar a meritocracia e o empreendedorismo a partir das muitas contribuições dos campos científicos. Antes de levar os estudantes a pensar na vida que pretendem ter, dar-lhes condições de entender suas vidas atuais a partir de uma visão figuracional da realidade social (BODART, 2021a) parece ser o caminho mais sensato e justo; para isso, a Sociologia é uma importante ferramenta teórico-metodológica. Tentar atuar por dentro parece ser o caminho viável no momento, o que demanda que o(a) professor(a) busque tornar o componente curricular Projeto de Vida algo distante da prática de coach. Somado a isso, precisamos denunciar e evidenciar os erros presentes na (De)Reforma do Ensino Médio.

Referências bibliográficas

BODART, Cristiano das Neves. Usos de canções no ensino de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021a.

BODART, Cristiano das Neves. O erro de desumanizar a Educação: o desastroso projeto da Reforma do Ensino Médio. Blog Café com Sociologia. dez. 2021b. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/desumanizar-reforma-do-ensino-medio/

PEREIRA, Alysson Cipriano; CAES, Valdinei. A Sociologia no ensino médio: a diferença da carga horária semanal no Paraná e no Mato Grosso. In: BODART, Cristiano das Neves; SAMPAIO-SILVA, Roniel. O ensino de Sociologia no Brasil, vol.2. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2019.

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. O Projeto de Vida como componente curricular do ensino médio: aprofundamento da irresponsabilidade do Estado e os danos ao ensino médio. Blog Café com Sociologia. jan. 2022.

 

Notas

[1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: cristianobodart@gmail.com

[2] Na verdade, não há habilitação nas universidades para Projeto de Vida por não ser derivado de uma área de conhecimento. Criação de uma licenciatura com esse fim seria desastroso pela falta de institucionalização. É sabido que em Minas Gerais algumas instituições vêm tentando incluir no Plano Político Pedagógico de Curso de Ciências Sociais disciplinas voltadas ao Projeto de Vida; nos resta saber quais serão os aportes teóricos e se o MEC permitirá abordagens que fogem do empreendedorismo.

 

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

7 Comments

  1. Perfeito! O projeto de vida como um “puxadinho” é uma verdade que a maioria vai fazer questão de ignorar. Colocam professores que não fecharam carga horária ou puxa sacos da direção (não haverá seleção do mais apto). Além disso, não farão nenhum tipo de acompanhamento, será um faz de conta, e o pior, prejudica outros componentes com competência para abordar a vida dos estudantes.

  2. Excelente texto! Estava ontem (15/01/2022) pensando sobre esse “novo” Ensino Médio e seu Projeto de Vida, imaginando como jovens carentes podem fazer um projeto em uma realidade onde não há perspectiva. Não há como “projetar”, se lançar para um futuro com ferramentas de fantasia. No papel é bonitinha, mas ordinária.

  3. Não resta nenhuma dúvida. O texto é cirúrgico. O que está por trás do Projeto de Vida é uma racionalidade fortemente neoliberal . A comparação do Projeto de Vida com a ideologia empreendedora propagada pelos Coaches foi excelente. Embora toda essa abordagem se apresente como uma inovação aos olhos de muitos, no seu curso no College de France, Foucault (1978-79), já chamava a atenção para essa racionalidade empreendedora, a partir do que ele chamou de empresários de si. Parabéns, professor Bodart! Excelente texto 🙂

  4. Perfeito. E pior ainda que o dito “componente curricular” é a tal Tutoria, na qual o professor que vem de uma formação/graduação, uma licenciatura, deixa de ser professor e passa a ser tutor. Tutor de quem? Da coordenação escolar, da direção, dos alunos? Na verdade, muito proximamente de uma tutoria da coordenação da escola, inclusive com prerrogativas de auxiliar burocraticamente, com o baixo desempenho dos alunos, etc, a par com o projeto de vida e com as famosas “eletivas”, que em algumas escolas, por falta de diversos tipos de suporte têm sido um verdadeiro fracasso. Enfim, é um verdadeiro disparate esse Novo Ensino Médio, com seu discurso de bom-moço, suas mutilações e imposições,

  5. Realmente é preocupante o ensino desta disciplina, como ensinar e avaliar os projetos de vida dos alunos? como psicanalista e trabalhando psicanalise e educação, fiquei surpresa e chocada ao mesmo tempo quando vi alunos em recuperação na disciplina Projeto de Vida, alunos com 1,5- 2,2 na prova ou avaliação como chamam. Como foi e esta sendo ministrada esta disciplina? como um professor pode avaliar a ideia de projeto de vida de um aluno e dar 2,2???? Quais as consequências que a nota poderá ter na vida deste aluno???

    • suely é uma disciplina frágil e incipiente. Dependendo da condução pode até piorar bastante a trajetória acadêmica do estudante.

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