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Racismo como habitus: antirracismo como autoenfrentamento

Racismo

Cristiano das Neves Bodart[1]

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Diversos incidentes ilustram de maneira inequívoca a presença do racismo intersubjetivo no contexto brasileiro. A concepção do racismo como habitus pode proporcionar uma abordagem mais eficaz para enfrentá-lo.

Embora não haja regulamentações que permitam tratamentos distintos entre brancos e negros por parte de policiais, e de fato existam leis que buscam condenar tais atitudes, é frequente testemunharmos policiais agindo de maneira preconceituosa. Esse comportamento é resultado da internalização do racismo em suas mentes e, consequentemente, em seus corpos. Essa internalização se manifesta como uma espécie de “habitus racista”, moldando a maneira como percebem, pensam, sentem, creem e agem.

O habitus racista

Compreende-se que o “habitus” não está limitado apenas aos policiais, mas é uma característica presente em todos os brasileiros, incluindo nós mesmos. É crucial reconhecer que a sociabilidade no Brasil tem o potencial de reproduzir atitudes racistas, visto que o racismo presente na vida cotidiana é internalizado por nós como uma disposição, um “habitus. Sendo o Habitus entendido aqui como

[…] sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicita que funciona como um sistema de esquemas geradores, e gerador de estratégias que podem ser objetivamente conformes aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para esse fim (BOURDIEU, 2019, p.115).

Ao longo de nossas vidas e em contato com o racismo, tendemos a incorporar disposições duradouras que guiam nossas ações, resultando em comportamentos preconceituosos sem necessariamente uma reflexão racional. Reproduzimos o que aprendemos, consciente ou inconscientemente, independentemente de nossas escolhas. No entanto, se estivermos conscientes dos impactos de nossa socialização, podemos encarar as experiências racistas de diversas maneiras, inclusive como um estímulo para promover o antirracismo. Contudo, o risco de internalização do racismo permanece presente. Neste contexto, o “habitus” é compreendido como uma predisposição e não necessariamente como uma prática. Assim, podemos estar predispostos ao racismo sem nunca termos praticado atos racistas.

É inegável que vivemos em um país marcado pelo racismo, e desde a infância somos expostos a práticas racistas em nossas brincadeiras. Essa “iniciação” pode variar entre famílias e comunidades, mas é uma presença constante em nossa sociedade. Podemos citar uma variedade de brincadeiras infantis que aprendemos e que têm bases racistas, assim como expressões prontas, ditados populares, termos, músicas, novelas, filmes, entre outros exemplos. Ao longo de nosso processo de socialização, estivemos imersos nessas práticas e cercados de signos racistas. Assim, como brasileiros, temos uma predisposição ao racismo (um habitus racista), resultado de nossa socialização nesse ambiente sociocultural.

Antirracismo como autoenfrentamento

Visitando a conceituação de Silvio Almeida (2019) sobre “racismo estrutural”, observamos que ele define o racismo como parte intrínseca da estrutura social, não se resumindo a um ato, mas sendo todo um processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem as subalternidades de um determinado grupo (ALMEIDA, 2019). Por sua vez, em Djamila Ribeiro (2019), encontramos a afirmação de que o racismo estrutural consiste em um conjunto de práticas, hábitos, situações e discursos presentes no cotidiano da população, os quais, mesmo sem uma intenção racial explícita, perpetuam o racismo. De fato, o racismo está presente para fora das pessoas, estando em leis, políticas públicas, práticas culturais. Mas também está em nós, em nossa subjetividade.

Não há dúvidas de que o racismo era estrutural durante a época da escravidão, uma vez que existiam normativas legais que sistematizavam as condutas racistas e tais práticas eram amplamente e legalmente aceitas. Após a abolição, várias mudanças foram realizadas na estrutura da sociedade e do Estado, incluindo aquelas destinadas a combater o racismo e outros tipos de preconceitos. No entanto, essas mudanças não foram suficientes para alterar a maneira racista de perceber, pensar, sentir e agir. Os aspectos culturais de sociabilidade que moldam nossas intersubjetividades não foram modificados.

Pode parecer trivial combater, por exemplo, o uso de termos preconceituosos, mas não é. O mesmo se aplica às piadas. A sociabilidade é o meio pelo qual construímos nossas subjetividades, inclusive de forma racista. São incorporações que geram disposições para atos e falas racistas. Não estou aqui reduzindo o problema do racismo ao essencialismo. É verdade que a estrutura econômica capitalista é fundamental para a sua (re)produção, mas também não podemos ignorar que essa mesma estrutura promove uma cultura específica, que é racista. Como destacaram Sousa Neto e Pessoa (2021), o racismo no Brasil é velado, é privado e invisível, o que faz com que ele seja aceito em conversas entre amigos, namorados e dentro de casa, mesmo que publicamente seja condenado.

Embora o termo “racismo estrutural” seja amplamente utilizado por sua carga política, é necessário reconhecer que pode obscurecer a natureza intrínseca do racismo brasileiro, especificamente sua dimensão intersubjetiva. Além de sua manifestação em estruturas sociais externas aos indivíduos, o racismo está internalizado em nossa consciência, levando-nos a reconhecer que todos somos suscetíveis a comportamentos racistas. Aceitar essa realidade é fundamental para o enfrentamento pessoal do problema. Tornar-se antirracista exige um compromisso ativo de combater o racismo presente em nosso próprio eu, uma jornada que demanda autoconsciência e autorreflexão.

Atualmente, não lidamos apenas com uma estrutura legal-racional racista, mas constantemente enfrentamos um racismo intersubjetivo, o que torna o problema muito mais complexo de combater. No caso dos policiais, observamos que a estrutura policial oficialmente condena práticas racistas, porém seus agentes, influenciados por suas subjetividades, continuam a praticá-las quase que diariamente. Quando isso ocorre, os policiais muitas vezes são protegidos, não necessariamente pela estrutura do Estado, mas frequentemente pelo racismo intersubjetivo de seus comandantes.

Não há dúvidas de que precisamos combater políticas que produzem a vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais vitimados pelo racismo e criam condições para que práticas racistas sejam cotidianas. Mas também precisamos reconhecer que o racismo não é algo distante, que está nos outros ou na estrutura burocrática do Estado. Abordar o racismo através do conceito de habitus nos permite reconhecer o quão próximo ele está de nós e perceber que o antirracismo começa com o autoenfrentamento.

 

Referência

ALMEIDA, Silvio Luis de. Racismo estrutural. São Paulo: Polén Livros, 2019.

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2019.

RIBEIRO. Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo. Companhia das letras. 2019.

SOUSA NETO, Manoel Moreira de; PESSOA, Mércio Kleber Morais. O que é racismo à brasileira. In: BODART, Cristiano das Neves. Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia, v.1. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021. Pp. 91-96.

 

 

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. Racismo como habitus: antirracismo como autoenfrentamento. Blog Café com Sociologia, fev. 2024. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/racismo-como-habitus/

 

 

 

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Nota:

[1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: cristianobodart@gmail.com

 

 

 

Dica de leitura:

Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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