Repensando a meritocracia com Xadrez e Democracia

Meritocracia é a crença em um sistema no qual as pessoas são avaliadas e promovidas com base em seus méritos e habilidades. A ideia por trás da meritocracia é que, ao dar a todos as mesmas oportunidades e avaliá-los com base em suas habilidades e esforços, é possível criar uma sociedade justa e igualitária. No entanto, a meritocracia também pode ser vista como um sistema que favorece aqueles que já têm vantagens em termos de educação, recursos e oportunidades, perpetuando assim desigualdades existentes. Vamos pensar este conceito a partir de uma partida de xadrez.

A luta pela liberdade sem dúvida inaugura a sociedade moderna. Sua definição filosófica é de trato difícil, portanto, para fins desse pequeno texto, me concentrarei apenas numa breve reflexão que diz respeito ao quem vem a ser liberdade na sociedade contemporânea dita democrática.
Façamos a seguinte indagação: em um jogo de xadrez, os dois enxadristas são livres? Talvez o senso-comum diria que não, afinal eles estão restritos a um conjunto de peças, uma miríade limitada de movimentos e uma meta definida, o cheque-mate, que também deve atender a um critério específico.
Porém, podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que os enxadristas são livres no sentido da igualdade de condições. Afinal, os dois competidores estão sob as mesmas regras e detém quantidades equivalentes de peças e jogadas. A única coisa que determinará a vitória ou a derrota é o empenho, a estratégia e a sagacidade de cada competidor. O perdedor sempre reconhecerá como justa a derrota dadas as condições de igualdade de condições de jogo. Em vários casos, entre dois enxadristas realmente habilidosos, o empate é algo muito mais comum do que a vitória, segundo alguns colegas enxadristas com os quais converso.
Agora imagine a seguinte situação: suponhamos que em um determinado campeonato sejam permitidas “soluções de mercado” para o jogo. Uma dessas soluções poderia ser comprar 30 peões a mais, ou limitar as jogadas do
oponente a uma área menor do tabuleiro. Ou quem sabe comprar duas rainhas, ou mais torres, dependendo da estratégia do comprador. O oponente em desvantagem ainda tem a possibilidade de vencer. Porém, ele terá que se esforçar muito mais que o oponente endinheirado. A vitória do jogador endinheirado não será considerada uma vitória justa, uma vez que os recursos do jogador abastado tornaram o jogo desequilibrado e desigual.
Essa metáfora ilustra muito bem a sociedade democrática contemporânea. Bobbio (1986) define a democracia como “um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (p. 12) O consenso, o âmago da democracia, é construído pelos cidadãos, que devem ter igual oportunidade de participação nas decisões coletivas. O dinheiro nesse caso, como na metáfora do xadrez, diferentemente do que as pessoas podem pensar, não muda as regras da democracia. O que a elite econômica faz, de uma forma poderosa e injusta, é tornar esse acesso extremamente desigual, controlando o acesso ao poder, às oportunidades de melhores empregos, melhores cursos de qualificação e maior visibilidade nos meios de comunicação para expressar sua opinião através do dinheiro. O trabalhador pobre nesse caso é o enxadrista que dispõe apenas das regras mas não tem o dinheiro pra comprar mais peças dentro do jogo.

 

Acredito que seja evidente que a relação promíscua entre o poder e o dinheiro seja a maior ameaça para a democracia. Porém, a democracia ainda continua sendo uma ideia de vigor pela radicalidade de sua proposta de organização das regras sociais como algo que deve partir da coletividade e para a coletividade. Portanto, a democracia não é uma panaceia usada para arrefecer os ânimos da sociedade contra a desigualdade promovida pelos enxadristas abastados. A luta pela igualdade de oportunidades contra o poder segregador do dinheiro é a visão radical da democracia, rumo à construção da verdadeira liberdade que não corresponde a noção de meritocracia difundida nos dias de hoje.
Referências
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Disponível em: <https://www.libertarianismo.org/livros/nbofdd.pdf>. Acessado
em: 02 abril 2014.

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

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