Por Roniel Sampaio Silva
Estamos vivendo em tempos difíceis de explicar. Há quem diga que estamos vivendo numa pós-modernidade (LYOTARD, 2008), outros numa modernidade tardia (GIDDENS, 1991) e outros numa modernidade líquida (BAUMAN,2001 ). No Brasil estamos vivendo em uma modernidade de vidro, mais precisamente uma vidrocracia. Explico. Não quero me propor a criar um conceito e sim fazer algumas provocações sociológicas por meio do vidro como metáfora.
Antes de falar de traçar uma metáfora da nossa sociedade por meio do vidro preciso falar especificamente o que é esse artefato. O vidro é fabricado pela fusão de minerais como sílica, barrilha e calcário. O resultado dessa combinação é o precioso material transparente cujo uso é massificado desde a Revolução Industrial, período no qual passou a ser produzido em larga escala, apesar do domínio da sua técnica de produção ser milenar.
Na década de 1950 uma técnica de fabricação chamada float permitiu produzir tal material de modo que este flutue sob o estanho derretido, dando maior produtividade e precisão. Desde então o material passou a ser mais utilizado ainda, sua aplicação deu-se em construções, dispositivos, aplicações médicas e em vários utensílios que fazem parte do nosso cotidiano, inclusive das nossas instituições políticas e relações sociais, assumindo a forma de “Modernidade de vidro”.
Juntamente com a massificação dessa tecnologia nossas relações sociais cada vez mais passam a ser mediadas pelo vidro dos televisores, pelos seguidos pelo vidro dos computadores, até chegar nas telas dos smartphones. A catedral de vidro por excelência é o shopping que exibe os produtos a serem comprados, seja um shopping físico ou virtual. Os vidros dos óculos de leitura sob a superfícies de papel estão cada vez mais em desuso em função dos dispositivos luminosos, cujo conteúdo é tão fragmentado quanto o próprio vidro estilhaçado.
Vale lembrar que o vidro carrega uma ilusão. Uma de suas propriedades é a refração, mudança de trajetória da luz que ocasiona a manipulação da imagem, apresentando uma versão distorcida de realidade. Desta forma, a luz
O vidro também é utilizado como matéria prima de dispositivos eletrônicos que emitem luzes sons e que tem como finalidade manter o cidadão “vidrado na telinha”. A lâmina d’agua deixou a base do narcisismo, dando lugar ao produto da liga de minerais. Talvez o vidro exemplifique bem a fragilidade das nossas relações. Tais fragilidades das relações de coletividade da modernidade líquida teorizada por Bauman pode ser comparada aos estilhaços de vidro que tem dificuldade de se aglutinar para formar uma vidraçaria (coletividade). A não ser é claro que haja muita energia necessária para que haja um salto de forma e se crie um novo arranjo.
O resultado das relações sociais mediadas pela telinha são tão cortantes como o vidro uma vez que relações sociais mediadas por esses artefatos vitrais tendem a ser mais agressivas do que presenciais. O vidro é uma faca de dois gumes. A mesma lâmina que serve para integrar pessoas geograficamente dispersa é um meio que intensifica os conflitos, maximizando preconceito e intolerância.
A aplicação dessa tecnologia vitral é ambivalente e contraditória. Ao tempo em que ela contribui para publicização transparente da nossa privacidade, esta não aplica a mesma transparência para os governos. Ao contrário do que deveria acontecer, as ações governamentais perecem ser confeccionadas num tipo de vidro específico cujo material não tem a mesma transparência e limpidez que expõe a nossa vida privada. Isso cria um fenômeno social curioso. A transparência da nossa vida privada parece estar tornando-se inversamente proporcional à transparência dos governos. Na modernidade de vidro a transparência do material muda conforme os interesses de quem controla a produção dos vidros que ora pode ser mais ou menos transparente, dependendo da finalidade e do interesse.
Na modernidade de vidro o principal produto tem aplicações muito versáteis, ele não é apenas parte constituinte do nosso cotidiano material e das nossas relações sociais, ele parece está assumindo um papel de relevo frente à política. Como o vidro é um produto de diversas aplicações esse passou a ser empregado também na nossa democracia, igualmente frágil e cortante. O vidro tornou-se um objeto de contemplação cujo valor é maior que as vidas. Basta acompanhar as manifestações e perceber que as vidraças e vitrines geram mais comoção que os hematomas e mortes oriundos nas manifestações.
É nesse sentido que o vidro tem tomado cada vez mais importância, deixando de ser um simples artefato para galgar patamares inimagináveis, tornando-se o artefato representativo por excelência da nossa modernidade, refletindo nossas relações sociais e políticas de uma forma cristalina.
Referências
BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.