A queima do museu: o espetáculo das “chamas de Alexandria”

A queima do museu remonta ao incêndio da biblioteca de Alexandria. Neste texto entenderemos as conexões entre os dois fatos históricos.

Por Roniel Sampaio Silva

 

A queima do museu remonta à uma gloriosa cidade antiga. Alexandria é uma cidade milenar egípcia localizada no Mediterrâneo que nasceu no período helenístico com propósito de difundir o saber grego para o Oriente. Nela abrigava uma das mais esplêndidas bibliotecas que se tem notícia e cujo trágico destino tem algumas semelhanças com as sérias ameaças sofridas pela educação pública hoje no país. Neste texto faremos um paralelo histórico de algumas semelhanças entre a queima da biblioteca de Alexandria e os ataques às universidades públicas e educação básica brasileira no ano de 2019.

As infelizes chamas de Alexandria 

A biblioteca de Alexandria era gerenciada por Hipátia, uma pesquisadora e professora que era vista como ameaça porque representava o ideal de sociedade auto-esclarecida e crítica. Tais valores eram incompatíveis com a nova sociedade fundamentalista que se instaurava. Ocupar-se da responsabilidade de ensino é uma tarefa que se torna mais perigosa e desgastante quando os paradigmas sociais e valores estão mudando. Por isso, professores são constantes alvos de medidas autoritárias em vários episódios da história como este.

Na posição de Antagonista de Hipátia havia o bispo Cirilo de Alexandria. Ele se comprometeu junto ao império romano e a Igreja católica de eliminar tudo aquilo que ele chamava de influência pagã. Tudo que ameaçava os dogmas fundamentalistas e os interesses políticos e econômicos do Império romano era rotulado como paganismo. Seu projeto de poder, entre outras coisas, era eliminar a influência pagã da cidade, ainda que paganismo fosse rotulado de forma generalizada e irresponsável.

No ano 415 Hipátia foi atacada no caminho do trabalho por uma multidão de seguidores fanático de Cirilo. Ela foi tão brutalmente violentada que sua carne foi arrancada dos ossos. Anos mais tarde sua preciosa biblioteca também foi incendiada. Cirilo era aclamado por seus seguidores e foi reconhecido pela Igreja como santo.  Depois desse fato deu-se início a uma “nova era” pautada no fundamentalismo.


Queima do museu: As chamas do fanatismo que viajam pelo tempo

Passados quase dois milênios e meio estamos no Brasil vivemos um episódio histórico que compartilha algumas semelhanças históricas. A biblioteca de Alexandria é a universidade pública brasileira e a educação pública como um todo. Hipátia representa todos os professores.

Assim como Cirilo, temos um grupo fanático no centro do poder o qual se sustenta pelo fundamentalismo. Assim como Cirilo, esse governante incita sua legião de seguidores a cometer crimes ao tempo que se vale do seu poder para perseguir quem considera opositores. O pensamento crítico, a autonomia intelectual representam séria ameaça a uma sociedade fundamentalista que se instala. Tudo aquilo que foi perseguido em nome do combate ao paganismo tem uma conotação atual de “combate ao comunismo”.

Hipátia representa os professores, vistos com desconfiança por uma sociedade que se deixou envenenar pelo fanatismo, pelo exacerbado culto à personalidade em detrimento do pensamento crítico e do auto-esclarecimento.  Ao contrário do que se pense, não são apenas as Ciências Humanas que são os alvos. Está na mira toda forma de escolarização que não beneficie o capital, seja pelos lucros das mensalidades, seja pela mão de obra barata ou seja pela conformação.

Cirilo representa a figura de um governante o qual o poder foi tutelado na forma de um messias. As pessoas criaram um culto a personalidade, confiando que os principais problemas seriam resolvidos tão somente com a delegação do poder a ele.  Para constatar as semelhanças históricas dos seguidores de Cirilo com os novos seguidores do atual governante fundamentalista basta identificar a semelhança discursiva da impiedosa vontade de ver as universidades públicas sendo destruídas. Basta procurar alguma notícia dos brutais cortes financeiros para constatar o desejo da piromancia. Um governo sem planos se promove pela pirotecnia da destruição das universidades. Muitos dos seguidores fanáticos aplaudem, tal qual foi com Alexandria.

No final das contas, a universidade e educação públicas estão no alvo das chamas dos fundamentalistas assim como esteve Hipátia e sua biblioteca, pois afinal, uma nova onda fundamentalista se cria quando se cala com fogo e truculência todo pensamento reflexivo e crítico que pode questionar a figura diabólica travestida na figura de um santo ou de um político messias.

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

1 Comment

  1. Olha, o texto estava incrivel, começou super bem e esclarecedor, mas achei que ficou faltando algo na comparação com a atualidade mesmo dando para perceber a analogia. Talvez tenha se contido muito para não “ser agressivo” que ficou muito sutil, algo que não acredito ser necessario para a critica apresentada, mais uma vez otimo post!

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