Alienação Parental Lei

Alienação Parental Lei? A noção de alienação parental, desde sua formulação legislativa na Lei nº 12.318/2010, tem provocado intensos debates no campo jurídico, psicológico e das ciências sociais. Se por um lado a legislação visa proteger os vínculos parentais e assegurar o melhor interesse da criança, por outro, há indícios de que sua aplicação tem produzido efeitos colaterais graves, especialmente em contextos de violência doméstica e desigualdade de gênero. A abordagem predominante nas ciências jurídicas e psicológicas, centrada em diagnósticos periciais e dispositivos de controle institucional, é progressivamente criticada pela sociologia, que questiona o papel normativo da lei e seus impactos sociais e simbólicos sobre as mulheres e as crianças.

A partir da leitura sistemática da literatura brasileira sobre o tema, conforme apresentada por Cardeal et al. (2025), é possível identificar que a alienação parental, longe de ser uma mera técnica de recomposição familiar, opera como uma “tecnologia da não violência” (Schuch, 2013), que reorganiza a dinâmica familiar segundo padrões patriarcais de convivência, sob o pretexto do melhor interesse da criança. Tal dispositivo tem sido apropriado, frequentemente, por genitores do sexo masculino como estratégia jurídica para contestar denúncias de violência e reverter decisões de guarda, revelando seu caráter ambíguo e potencialmente opressor.

Este artigo tem como objetivo analisar sociologicamente o conceito e a aplicação da lei de alienação parental no Brasil, problematizando seus fundamentos epistemológicos, suas consequências práticas e suas implicações sobre as relações de gênero e de poder nas famílias. A análise baseia-se em uma abordagem qualitativa, sustentada por autores clássicos e contemporâneos das ciências sociais, especialmente aqueles que contribuem para o debate sobre patriarcado, institucionalização da família e biopolítica.


1. A gênese da alienação parental e sua institucionalização jurídica

O conceito de alienação parental surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1980, com o psicólogo Richard Gardner, que cunhou a expressão “Síndrome da Alienação Parental” (SAP) para descrever um suposto distúrbio observado em filhos de pais separados, caracterizado pela rejeição injustificada de um dos genitores, supostamente induzida pelo outro (Gardner, 1985). Embora carente de validação científica, a ideia ganhou força no meio jurídico internacional, sendo adaptada no Brasil em forma de norma legislativa.

No país, a Lei nº 12.318/2010 incorporou a noção de alienação parental como um fenômeno jurídico, sem, no entanto, adotar formalmente o termo “síndrome”. A despeito dessa distinção terminológica, como apontam Cardeal et al. (2025), grande parte da produção acadêmica e da prática forense ainda associa diretamente a alienação parental à SAP, sem distinções conceituais rigorosas. Isso contribui para a patologização de comportamentos parentais e o enquadramento moralizante das disputas por guarda e convivência.

Conforme observa Oliveira (2019), a alienação parental vem sendo usada como resposta jurídica a conflitos intrafamiliares, muitas vezes esvaziando a complexidade das relações parentais e transformando disputas legítimas em atos de desvio. Essa prática, ao privilegiar uma suposta neutralidade técnica da psicologia e do direito, ignora os contextos históricos, sociais e afetivos nos quais essas relações se inserem.


2. A sociologia da família e o patriarcado como chave analítica

A sociologia há muito tempo se debruça sobre a estrutura familiar como uma instituição reguladora das relações sociais, reprodutora de normas, valores e desigualdades. Nas análises clássicas, como as de Durkheim, a família é entendida como um dos pilares da moralidade social; para Engels (1979), no entanto, ela constitui uma célula fundamental de reprodução das relações de dominação, especialmente do patriarcado.

No contexto da alienação parental, o uso do dispositivo legal revela uma continuidade da lógica patriarcal sob nova roupagem institucional. Como demonstram Severi e Villarroel (2021), a lei é frequentemente utilizada por homens acusados de violência para reverter acusações e contestar a guarda dos filhos, mobilizando uma narrativa que coloca a mulher como vingativa e manipuladora. Trata-se de um reposicionamento estratégico do poder masculino no espaço familiar, que encontra na LAP uma ferramenta para a manutenção da autoridade simbólica e legal.

O conceito de “tecnologias patriarcais”, desenvolvido por Cardeal et al. (2025), é útil para compreender esse processo. Segundo as autoras, a LAP funciona como uma tecnologia de controle que regula o comportamento materno, punindo desvios do modelo de “boa mãe” e silenciando denúncias de violência. Assim, a lei não apenas intervém na dinâmica familiar, mas a reconfigura a partir de um ideal normativo patriarcal.

3. A atuação do sistema de justiça e o apagamento das vozes infantis

O sistema de justiça desempenha um papel central na operacionalização da Lei da Alienação Parental. Como indicam Cardeal et al. (2025), a aplicação da LAP depende quase sempre da produção de laudos psicológicos ou biopsicossociais que classificam a família como funcional ou disfuncional. Esses documentos funcionam como “verdades jurídicas” capazes de fundamentar decisões como alteração da guarda, imposição de visitas assistidas e acompanhamento psicológico compulsório.

Essa prática levanta sérias preocupações sociológicas quanto ao modo como a infância é tratada nesses processos. Embora o princípio do “melhor interesse da criança” esteja presente no discurso jurídico, na prática, as crianças e adolescentes são frequentemente desconsiderados como sujeitos de direitos e silenciados em suas experiências subjetivas (D’Almeida, 2018). O foco recai, em grande parte, sobre o comportamento dos adultos, especialmente da mãe, que é recorrentemente responsabilizada pelos conflitos.

Nakamura (2020) problematiza a superficialidade com que o interesse da criança é tratado nos processos de alienação parental, sobretudo nos casos em que denúncias de abuso ou violência são descartadas como falsas memórias implantadas. A crítica evidencia como o aparato jurídico pode reproduzir uma lógica adultocêntrica e sexista, na qual a mulher é culpabilizada e a criança invisibilizada. Assim, o dispositivo legal se afasta de seu suposto propósito de proteção infantil e atua, paradoxalmente, como mecanismo de opressão.


4. A patologização das condutas e a crítica à pseudociência

Outro ponto de tensão revelado pela análise sociológica da LAP diz respeito à patologização das condutas familiares. A incorporação da SAP — ainda que informalmente — no judiciário brasileiro reforça uma abordagem reducionista, que converte disputas complexas em quadros clínicos ou comportamentais, muitas vezes sem base empírica robusta (Sousa, 2019).

Essa lógica patologizante ecoa o que Foucault (2001 [1975]) chamou de “poder de normalização”. Ao identificar comportamentos como anômalos ou desviantes, o sistema jurídico e os especialistas atuam como dispositivos de correção social. No caso da alienação parental, o laudo psicológico assume a função de declarar o “anormal”, atribuindo à mulher o lugar da desestabilizadora da ordem familiar. O resultado disso é a legitimação de medidas coercitivas, travestidas de proteção.

Cardeal et al. (2025) demonstram que muitos dos instrumentos psicológicos utilizados para diagnosticar a AP carecem de validação científica e precisão psicométrica, o que compromete sua confiabilidade. A ausência de um protocolo claro e padronizado de avaliação reforça a crítica à utilização acrítica da psicologia pelo sistema de justiça, que, em nome da neutralidade técnica, se exime de refletir sobre os vieses ideológicos de suas práticas.


5. O viés de gênero e a culpabilização das mulheres

A análise sociológica da alienação parental não pode ignorar sua intersecção com as desigualdades de gênero. A literatura revisada evidencia que as mulheres são as principais acusadas de AP, especialmente quando denunciam violência doméstica ou sexual. Isso ocorre porque a LAP, na prática, se transforma em um instrumento de silenciamento e retaliação contra mães que rompem com padrões tradicionais de submissão (Malta; Nicácio, 2021).

De acordo com Diniz (2011), o sistema judiciário tende a reproduzir estereótipos de gênero, tratando as mulheres como instáveis, vingativas ou manipuladoras. Quando elas tentam proteger seus filhos de situações de risco, são acusadas de alienadoras; quando silenciam, são negligentes. Essa armadilha revela a lógica da maternidade patriarcal, em que à mulher cabe cuidar, calar e suportar, sob pena de perder o direito à maternidade.

Nesse cenário, a alienação parental se converte em um novo tipo de violência institucional de gênero, conforme apontam Severi e Villarroel (2021). A mulher deixa de ser vista como cuidadora legítima para ser tratada como ameaça à ordem familiar, sobretudo quando desafia a autoridade masculina. Trata-se de uma forma de reatualização do patriarcado, que utiliza o discurso técnico-jurídico como mecanismo de controle e disciplinamento.


6. A contradição entre proteção e punição: a criança em segundo plano

Embora o discurso jurídico afirme que a LAP visa ao bem-estar infantil, os dados mostram que a criança raramente é o sujeito principal das decisões. Em vez disso, ela se torna objeto de disputa entre adultos, sendo muitas vezes exposta a situações de sofrimento, insegurança e revitimização (Brandão, 2019).

O princípio do “melhor interesse da criança” é constantemente invocado, mas pouco problematizado. Como afirmam Cardeal et al. (2025), a escuta da criança é frequentemente instrumentalizada, e seus relatos desacreditados, especialmente quando corroboram denúncias feitas pela mãe. Nessas situações, prevalece a ideia de que a criança foi manipulada, o que resulta na sua desautorização simbólica e na negação de sua experiência.

Sottomayor (2011) adverte que a judicialização das relações familiares pode produzir efeitos devastadores sobre a infância, sobretudo quando os processos se prolongam por anos e expõem os menores a múltiplas intervenções. A lógica punitiva e adversarial dos tribunais é pouco compatível com o cuidado e a escuta necessários em contextos de vulnerabilidade afetiva.

7. Crítica institucional: a judicialização da vida privada

A crítica à Lei da Alienação Parental também passa por uma análise institucional mais ampla, em que se observa a crescente judicialização da vida privada. Ao transferir para o judiciário o papel de mediador dos conflitos familiares, especialmente em contextos de separação, guarda e convivência, o Estado acaba por reforçar dinâmicas autoritárias, centradas na norma, na punição e no controle, em detrimento da escuta, do diálogo e da autonomia familiar (Oliveira, 2020).

A sociologia crítica, nesse sentido, alerta para os riscos de uma intervenção estatal pautada por instrumentos de correção e disciplinamento que desconsideram os vínculos afetivos e as subjetividades envolvidas. Como indicam Coelho (2013) e Maciel (2019), a atuação de psicólogos e assistentes sociais no âmbito da LAP muitas vezes é instrumentalizada pelo sistema de justiça para legitimar decisões previamente orientadas por concepções normativas de família, gênero e infância.

Essa judicialização não apenas alimenta o litígio e a desconfiança entre os genitores, como também transforma o conflito familiar em um problema técnico a ser solucionado por peritos e magistrados, em vez de ser compreendido em sua complexidade social e emocional. Como afirmam Loures e Felippe (2020), trata-se de uma estratégia institucional que, sob o pretexto da proteção, acaba por reatualizar o poder patriarcal e punir, em especial, as mulheres.


8. Contribuições da sociologia da infância ao debate

A sociologia da infância propõe uma mudança de perspectiva fundamental: enxergar a criança como sujeito social ativo, dotado de voz, agência e direitos. Esse campo do conhecimento, consolidado a partir dos anos 1990, contesta a visão adultocêntrica que permeia as instituições sociais, incluindo o judiciário, e reivindica a escuta qualificada das crianças em processos que dizem respeito diretamente às suas vidas (Santomé, 2013).

No debate sobre alienação parental, essa perspectiva é fundamental para desconstruir a lógica que trata a criança como objeto de disputa e a reduz a um campo de manipulação parental. Como destacam Brandão (2019) e Nakamura (2020), escutar a criança não significa apenas colher seu depoimento, mas reconhecer sua subjetividade, respeitar sua narrativa e protegê-la dos efeitos colaterais da judicialização exacerbada.

A crítica sociológica à LAP, portanto, não se limita à denúncia de seus efeitos sobre as mulheres. Ela inclui também a afirmação dos direitos das crianças e adolescentes à convivência segura, ao cuidado afetivo e à autonomia relacional. Essa é uma dimensão muitas vezes esquecida nos processos judiciais, onde a escuta infantil é conduzida sem formação específica, sem tempo adequado e, frequentemente, com viés interpretativo que descredibiliza o que é dito.


9. Considerações finais

A alienação parental, enquanto categoria jurídica e prática institucional, está longe de ser um fenômeno neutro. Como demonstrado ao longo deste artigo, trata-se de uma construção social situada, marcada por disputas simbólicas e estruturada por relações de poder, especialmente as de gênero. A Lei nº 12.318/2010, ao invés de apenas proteger vínculos parentais, tem sido utilizada para criminalizar condutas maternas, silenciar denúncias de violência e reforçar modelos patriarcais de família.

A partir da análise sociológica, é possível compreender a LAP como um dispositivo de normalização que, sob o discurso técnico da psicologia e da proteção infantil, reproduz desigualdades históricas e retira da mulher e da criança o direito à palavra e à autonomia. A intervenção judicial, muitas vezes pautada por laudos precários e orientada por estereótipos de gênero, age mais para punir do que para proteger.

É urgente, portanto, repensar os marcos legais e institucionais que regem as disputas familiares, incorporando princípios de justiça social, escuta qualificada e abordagem interseccional. Isso exige o reconhecimento das experiências de mulheres e crianças como legítimas, bem como a crítica aos saberes periciais que naturalizam o sofrimento, transformando-o em diagnóstico.

A sociologia tem um papel fundamental nesse processo: desnaturalizar o jurídico, dar visibilidade aos sujeitos silenciados e propor uma leitura crítica dos dispositivos de poder que regulam a vida privada. No caso da alienação parental, a tarefa é clara: não se trata de negar a existência de conflitos parentais ou suas implicações emocionais, mas de recusar sua criminalização seletiva e patriarcal. A luta, aqui, é pelo direito à proteção sem opressão.

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Roniel Sampaio Silva

Doutorando em Educação, Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais e Pedagogia. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Teresina Zona Sul.

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