Por Josué Vidal Pereira*
A reforma da Previdência constitui-se num daqueles temas que muito se fala, mas pouco se entende. Da parte do Governo Federal observa-se um esforço fenomenal por meio de altíssimos gastos com publicidade para convencer os trabalhadores acerca da necessidade de dificultar seu acesso aos benefícios ou reduzir supostos “privilégios” de certos grupos, sob o argumento de que o atual modelo previdenciário não é sustentável no longo prazo.
Por sua vez o Sistema Financeiro nacional e internacional, ávido por abocanhar uma fatia cada vez maior do mercado previdenciário, em cujos títulos de previdência privada têm-se um exemplo mais concreto de sua rentabilidade, determinam – por meio de seus agentes que controlam as Instituições e políticas econômicas, a exemplo do Ministro da Fazenda Henrique Meireles, a reestruturação do sistema previdenciário nacional, que passam a repetir dioturnamente a cantilena de que se não reformar vai quebrar. Afinado com o discurso dos banqueiros, os supostos “especialistas” da TV e das mídias em geral nos aterrorizam todos os dias, dizendo que os mercados estão “nervosos” e que é necessário realizar a reforma para que eles se “acalmem”.
Ora, e como fica a situação dos aposentados que ganham um salário mínimo ao mês e agora se vêem ameaçados por um governo ilegítimo de inclusive terem o valor de suas aposentadorias desvinculadas do reajuste do salário mínimo? E os trabalhadores rurais que se vêem igualmente ameaçados da obrigação de contribuir com a seguridade, para garantir o direito à aposentadoria? Não têm eles o direito de ficarem nervosos também? Não pretendo aqui aprofundar essa questão, até por que os índices de aprovação do atual governo – os piores da história republicana mostram precisamente o nível de discordância da população com suas políticas.
Contudo, deve-se atentar para os discursos que são forjados pela propaganda patronal-midiático-governamental em vista da defesa da suposta necessidade da Reforma da Previdência, pois caso contrário corre-se o risco de se cair nas armadilhas da velha máxima nazista, segundo a qual uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Aliás, influenciados com esse tipo de propaganda, não raro ouve-se cidadãos defender a tese do governo, jogando a culpa do “suposto” rombo da previdência para os funcionários públicos, que seria a suposta “casta” de privilegiados.
Maria Lucia Fattorelli, Auditora da Receita Federal do Brasil e Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, explica que a complexa questão previdenciária brasileira, estabelecida pela Constituição de 1988, só pode ser corretamente compreendida nos aspectos de sua organização e do seu financiamento, dentro do Sistema de Seguridade Social, que é composto indissociavelmente pela própria Previdência Social, pela Saúde e pela Assistência Social.
O Artigo 195 da Constituição Federal, ao estabelecer as fontes de financiamento da Seguridade Social, deixa muito claro a indissociabilidade da Seguridade Social, aliás, conforme já previsto no Artigo 194. O caput do artigo 195 determina: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais (…):” a) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, e parte sobre a folha de pagamento, pelo lado dos patrões; b) percentual pago pelos trabalhadores sobre o seu salário ao INSS; c) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, pago por todos os brasileiros por meio do consumo; e segundo Fattorelli, “Além dessas, há contribuições sobre importação de bens e serviços, receitas provenientes de concursos e prognósticos, PIS, PASEP, entre outras.”
De acordo com Maria Lucia Fattorelli, o suposto déficit da Previdência é “fabricado” pelo governo e pelos “especialistas” alinhados à perspectiva neoliberal, por meio de um truque simples, ou seja, subtraem os gastos previdenciários das contribuições feitas por patrões e trabalhadores – o que obviamente dará um resultado deficitário. No entanto, esse tipo de cálculo faz questão de “esquecer” às contribuições destinadas à Saúde e à Assistência Social, que como já se mencionou são indissociáveis, o que seria inconstitucional de acordo com uma publicação da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil – Anfip, “O orçamento da Seguridade, de acordo com a Constituição, é único e indivisível. Analisar separadamente as contas da Previdência é inconstitucional”, afirma Diego Cherulli, vice-presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB-DF, que destaca ser favorável a uma reforma da Previdência, mas não desta forma que está sendo discutida no Congresso.
Em outras palavras é preciso que se entenda que muitos dos segurados da Previdência são financiados pela Seguridade Social por meio da Assistência Social, que de acordo com o artigo 194 da CF, é fundamentada nos princípios da universalização do atendimento – ou seja independente da capacidade de contribuição do individuo; da uniformidade e equivalência, da diversidade do financiamento, da equidade, do caráter distributivo. Um bom exemplo da política da Assistência Social é o Benefício de Prestação Continuada, um benefício de um salário mínimo operado e concedido pelo INSS a pessoas idosas ou deficientes que não tenham condições próprias de sustento. Há também a Aposentadoria Rural destinada aos trabalhadores do campo, os quais não são obrigados à contribuição, porém tem direito assegurado à aposentadoria.
Ao considerar o conjunto de todas as fontes de financiamento da Seguridade Social, segundo a ANFIP, teve-se no Brasil nos últimos anos, ao contrário do propalado déficit do INSS, sucessivos superávits no sistema Seguridade Social. “A sobra de recursos foi de R$72,7 bilhões em 2005; R$ 53,9 bilhões em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 82,8 bilhões em 2012; R$ 76,4 bilhões em 2013; R$ 55,7 bilhões em 2014, e R$11,7 bilhões em 2015.” Fattorelli lembra que a sobra de recursos é tamanha que o Governo Federal resolveu em 2016 editar uma legislação de prorrogação do mecanismo da Desvinculação da Receitas na União, conhecido como DRU, que retira 30% dos recursos da Seguridade Social que eram vinculados pela legislação para uso exclusivo na área social, para livre uso por parte do governo, seja para “comprar” deputados por meio das chamadas Emendas Parlamentares para evitar cassação do mandato de Temer, mas principalmente para que o governo faça o chamado Superávit Primário, termo técnico utilizado para referir-se à economia que o governo faz para pagar os juros da questionável dívida pública – uma espécie de Hobin Hood às avessas.
Deve-se pontuar que essa prática governamental de desviar os recursos da Seguridade para outros fins vem de longa data, desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, quando ainda era conhecida como Fundo Social de Emergência, portanto, tão antigo quanto o discurso da necessidade de reforma a Previdência, que, aliás, já passou por diversas mudanças ao longo dos anos, cujo principal resultado foi a criação de obstáculos para que o trabalhador tenha mais dificuldades de acesso aos direitos garantidos à época da elaboração da Constituição de 1988.
No atual contexto social, político e econômico, a situação daqueles que vivem do trabalho não é nem de longe alentadora. No plano federal temos um governo não-eleito pelo voto popular, que se aproveita dos altos índices de impopularidade para fazer avançar toda uma agenda de contra-reformas, as quais retiram direitos históricos conquistados com a luta secular dos trabalhadores. Depois da contra-reforma trabalhista, e da terceirização generalizada, que retiraram direitos consagrados na CLT, que irão promover ainda mais a precarização dos trabalhadores, deparamo-nos agora com a possibilidade de uma perversa reforma previdenciária cujo resultado será sem sombra de dúvida o aumento da pobreza e da indigência, e o avanço do mercado sobre os direitos sociais, o que significa que terá proteção social que tiver dinheiro para comprá-la no mercado de bens sociais.
Deve-se ponderar, no entanto, que nem tudo já está perdido. Conforme já mencionado, os direitos previdenciários estão gravados na Constituição Federal, que para ser alterada, somente por meio de Emenda Constitucional, à qual são necessários pelos menos dois terços dos votos dos parlamentares. É fundamental que nós trabalhadores saibamos aproveitar as “brechas” abertas pelas constantes crises que envolvem o governo, sobretudo pelos infindáveis casos de corrupção que freqüentemente paralisam as votações no Congresso, para nos mobilizarmos, seja buscando informação, seja divulgando, debatendo na escola, no trabalho, na família, enviando uma mensagem para o e-mail do parlamentar, colocando um adesivo no carro etc. É importante lembrarmos que a nossa não mobilização soa ao governo como um consentimento passivo, o que faz com que após uma eventual aprovação de um projeto dessa natureza, outros que já estão na fila, entrem na pauta do dia, sempre com o objetivo de retirar direitos dos trabalhadores, a exemplo do projeto que pretende cobrar mensalidades nas Instituições Federais de Educação. À luta enquanto é tempo!
*Josué Vidal Pereira é professor do Instituto Federal de Goiás e Pesquisador do Financiamento da Educação