Introdução: a agricultura brasileira no centro das disputas sociais e ideológicas
A agricultura brasileira, ao longo de sua história, esteve profundamente entrelaçada aos processos de modernização conservadora, à concentração fundiária e aos interesses do capital. Desde a década de 1960, com o avanço das políticas de modernização impulsionadas pelo Estado, o campo tornou-se palco de intensos conflitos de classe, disputas ideológicas e interesses antagônicos entre os modelos de agricultura patronal, familiar e empresarial.
No bojo dessas contradições, a agricultura brasileira não pode ser compreendida apenas como setor produtivo, mas como um espaço simbólico e político em disputa. Segundo Marques (1996), a ascensão do agribusiness como projeto hegemônico não se dá apenas por razões econômicas, mas por um processo ativo de construção ideológica que envolve entidades representativas como a Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG). Essa entidade, conforme o autor, ressignifica conceitos como “Segurança Alimentar” à luz dos interesses empresariais, contribuindo para consolidar a hegemonia do setor no debate público.
A análise sociológica da agricultura brasileira, portanto, demanda uma abordagem crítica, capaz de compreender os embates entre os modelos de desenvolvimento agrícola, os projetos de sociedade em jogo e os atores sociais que os sustentam. É nesse contexto que este artigo busca investigar as implicações sociais, econômicas e políticas da agricultura brasileira contemporânea, em especial a partir da atuação da ABAG como agente de produção ideológica, como demonstrado por Marques (1996).
Agricultura e hegemonia: a emergência do agribusiness
O conceito de agribusiness surge nos Estados Unidos, sendo posteriormente apropriado no Brasil para designar o conjunto das atividades que envolvem a produção, industrialização e comercialização de produtos agropecuários. No entanto, como afirma Marques (1996), o uso dessa categoria no Brasil se dá dentro de um contexto de profunda concentração de poder, marcada pela modernização excludente do campo promovida pelo Estado pós-1964.
Essa modernização não teve como objetivo democratizar o acesso à terra ou melhorar as condições de vida da população rural. Ao contrário, visou inserir o setor agrícola na lógica do capital monopolista, promovendo a integração subordinada do Brasil ao mercado internacional. De acordo com Ianni (1986), a agricultura brasileira passou a funcionar como um apêndice do sistema agroalimentar global, exportando commodities e importando tecnologias e insumos.
A ABAG surge nesse contexto como uma articulação político-ideológica dos interesses do capital agroindustrial. Seu papel, conforme analisado por Marques (1996), ultrapassa a simples representação setorial e adentra o campo da disputa ideológica, buscando impor uma visão sistêmica e empresarial da agricultura, na qual o Estado deve assumir um papel subsidiário, voltado à infraestrutura, financiamento e à pesquisa voltada aos interesses privados.
Ao redefinir a “Segurança Alimentar” como um problema de oferta de alimentos em larga escala, a ABAG desloca o debate da questão do acesso e da desigualdade para a eficiência e a produtividade. Essa operação conceitual, que Marques chama de “ressignificação”, revela a intencionalidade ideológica de moldar políticas públicas conforme os interesses do grande capital agrícola.
Segurança alimentar: uma noção em disputa
O conceito de segurança alimentar é, como observa Marques (1996), uma verdadeira “nebulosa de significados”. A pluralidade de sentidos atribuídos ao termo reflete as distintas visões de mundo e os interesses conflitantes entre os diversos atores sociais. Enquanto movimentos populares e setores da sociedade civil organizada defendem uma concepção centrada no direito humano à alimentação adequada, a ABAG promove uma leitura funcionalista e mercadológica da segurança alimentar.
Essa disputa conceitual, situada no campo da produção ideológica, revela-se fundamental para compreender os rumos das políticas públicas brasileiras. Para a ABAG, a segurança alimentar está diretamente ligada à eficiência produtiva, à competitividade internacional e ao livre mercado. A fome, nesse modelo, é tratada como consequência da baixa produtividade ou da escassez de oferta, e não como uma expressão da desigualdade social ou da concentração fundiária.
Essa visão é profundamente criticada por autores como Maluf (2003), que ressalta a necessidade de articular a segurança alimentar ao conceito de soberania alimentar, entendido como o direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas e alimentares. Em contraste, a ABAG opera para consolidar uma noção de segurança alimentar subordinada à lógica do agronegócio, afastando o debate de questões estruturais como reforma agrária, acesso à terra e justiça social.
Marques (1996) evidencia que essa ressignificação do conceito de segurança alimentar é estratégica. Ao redefini-lo em termos de produção e mercado, a ABAG se apresenta como protagonista da solução da fome no Brasil, mesmo sendo um dos principais vetores de concentração de renda, de exclusão do campesinato e de degradação ambiental.
O papel do Estado e a lógica neoliberal
A consolidação do agronegócio brasileiro está diretamente vinculada ao papel do Estado, especialmente no período pós-1964. Como aponta Marques (1996), a intervenção estatal foi decisiva para criar as condições materiais e institucionais necessárias à modernização da agricultura. Essa modernização, no entanto, deu-se de forma seletiva e excludente, beneficiando sobretudo os grandes produtores e as corporações multinacionais do setor agroquímico e alimentício.
Com a ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990, o papel do Estado foi reconfigurado. A retórica da “eficiência”, da “redução do gasto público” e da “governabilidade” passou a justificar a retração de políticas públicas voltadas à agricultura familiar e à reforma agrária, ao mesmo tempo em que se ampliavam os subsídios e incentivos ao agronegócio.
Segundo Oliveira (1994), o neoliberalismo no Brasil operou como um “projeto de reprivatização da relação social de produção”, deslocando o Estado da função de garantidor de direitos sociais para o papel de garantidor dos interesses do capital. Nesse cenário, a ABAG emerge como força hegemônica, capaz de pautar o Estado conforme suas diretrizes ideológicas.
A contradição torna-se evidente: o discurso neoliberal apregoa a mínima intervenção estatal, mas o agronegócio depende estruturalmente de financiamento público, de infraestrutura subsidiada e de políticas cambiais favoráveis. Como denuncia Marques (1996), o agribusiness reivindica liberdade de mercado apenas para os pequenos produtores; para si, exige o aparato estatal.
As consequências sociais e ambientais do agronegócio
O modelo de agricultura impulsionado pelo agronegócio e defendido pela ABAG traz consigo implicações profundas para o meio rural brasileiro. Conforme analisa Marques (1996), a modernização agrícola provocou a expulsão de milhões de trabalhadores do campo, a substituição da diversidade agroecológica por monoculturas e a intensificação do uso de agrotóxicos e insumos industriais.
A desigualdade fundiária, marca histórica do Brasil, foi agravada pelo modelo de desenvolvimento promovido pelo agribusiness. Dados do Censo Agropecuário confirmam que uma minoria de propriedades concentra a maioria das terras, enquanto a agricultura familiar, responsável por grande parte da produção de alimentos consumidos internamente, enfrenta dificuldades estruturais para se manter.
Autores como Delgado (2012) e Martins (2009) apontam que o agronegócio, ao priorizar a exportação de commodities, desarticula os circuitos locais de produção e abastecimento, fragiliza os territórios rurais e compromete a segurança alimentar em nível nacional. O discurso da modernização esconde a violência simbólica e física contra populações indígenas, quilombolas e camponesas, frequentemente vítimas de grilagem, desmatamento e criminalização de suas lutas.
No plano ambiental, os impactos são alarmantes. A expansão da fronteira agrícola sobre biomas como o Cerrado e a Amazônia compromete a biodiversidade e contribui para a crise climática global. O uso intensivo de venenos agrícolas torna o Brasil um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, com graves consequências para a saúde pública.
Agricultura familiar e a construção de alternativas
Em oposição ao modelo concentrador e excludente do agronegócio, a agricultura familiar emerge como alternativa socioprodutiva capaz de combinar produção de alimentos, preservação ambiental e fortalecimento das comunidades rurais. Diferente do agronegócio, cuja lógica se ancora na exportação e na financeirização da terra, a agricultura familiar está mais vinculada ao abastecimento local e à soberania alimentar.
Como aponta Abramovay (1992), a agricultura familiar no Brasil não deve ser vista como uma forma arcaica de produção, mas como um modelo com racionalidade própria, que combina trabalho familiar, redes de cooperação e produção diversificada. Esse modelo é especialmente relevante para a segurança alimentar, pois é responsável por mais de 70% dos alimentos que compõem a dieta básica dos brasileiros, conforme dados do Censo Agropecuário de 2017.
Marques (1996), embora tenha centrado sua análise na atuação da ABAG, reconhece que a luta pela ressignificação da segurança alimentar passa necessariamente pela valorização da agricultura familiar. No entanto, ele também denuncia que as políticas públicas voltadas a esse setor são frequentemente frágeis, instáveis e insuficientes diante da força política e econômica do agronegócio.
A construção de alternativas ao agronegócio envolve, portanto, uma disputa não apenas técnica ou econômica, mas profundamente ideológica. Implica retomar o debate sobre reforma agrária, democratização da terra, agroecologia e fortalecimento das organizações populares do campo. Nessa perspectiva, a agricultura familiar não é apenas uma forma de produção, mas uma proposta de sociedade baseada em valores como solidariedade, justiça social e sustentabilidade.
O campo de disputa ideológica: a produção de consenso sobre a agricultura
A força do agronegócio no Brasil não se dá apenas no plano material, mas também no simbólico. Conforme argumenta Marques (1996), a ABAG atua de forma sistemática para produzir consensos sociais sobre a agricultura brasileira, promovendo a imagem do “agro que alimenta o mundo” e do “Brasil celeiro do planeta”. Essas representações ocultam as contradições sociais, os conflitos fundiários e os impactos ambientais associados ao modelo dominante.
A atuação da ABAG no campo da produção ideológica é estratégica: ela busca legitimar um projeto de sociedade, apresentando-o como técnico, neutro e eficiente. Entretanto, como bem alerta Bourdieu (1997), não há neutralidade nas disputas simbólicas. Todo discurso carrega consigo uma visão de mundo, um projeto de futuro e um conjunto de interesses.
Marques (1996) mostra que a segurança alimentar, longe de ser um conceito neutro, tornou-se um território de disputa entre diferentes projetos sociais. De um lado, o agronegócio propõe uma segurança alimentar baseada na abundância de produtos e no livre mercado. De outro, movimentos sociais e setores críticos da academia defendem uma segurança alimentar ancorada na soberania, no direito à terra e na participação popular.
Essa disputa é central para o futuro da agricultura brasileira. A hegemonia do agronegócio só se mantém porque consegue mobilizar uma rede de instituições, discursos e práticas que invisibilizam alternativas e naturalizam a exclusão. Desconstruir esse consenso é um passo fundamental para a construção de um modelo agrícola mais justo e sustentável.
Considerações finais: para onde caminha a agricultura brasileira?
A análise sociológica da agricultura brasileira, especialmente à luz da dissertação de Paulo Eduardo Moruzzi Marques (1996), revela que estamos diante de um campo em constante disputa. A ascensão do agronegócio como força hegemônica não é apenas fruto de sua capacidade produtiva, mas da articulação ideológica promovida por entidades como a ABAG, que reconfiguram conceitos e moldam políticas públicas segundo os interesses do capital.
O conceito de segurança alimentar, transformado em bandeira do agronegócio, perde seu conteúdo social e emancipador quando desvinculado da questão do acesso, da soberania e da justiça agrária. Como afirmam autores como Maluf (2003) e Delgado (2012), sem enfrentar a desigualdade estrutural do campo brasileiro, qualquer política de combate à fome será incompleta e paliativa.
A agricultura brasileira precisa ser resgatada como um espaço de cidadania, de diversidade e de vida. Isso implica romper com a lógica concentradora do agronegócio e investir em políticas públicas robustas de apoio à agricultura familiar, à agroecologia e à reforma agrária. Mais do que produzir alimentos, é preciso garantir o direito de todas e todos de comê-los.
Como alerta Demo (1994), a construção do conhecimento social precisa estar comprometida com a transformação da realidade. Conhecer a agricultura brasileira é, portanto, um exercício não apenas de análise, mas de posicionamento ético e político. Nesse sentido, a sociologia cumpre um papel fundamental ao iluminar as contradições do presente e abrir caminhos para o futuro.
Referências bibliográficas
ABAG. Segurança alimentar: uma abordagem de agribusiness. São Paulo: Edições ABAG, 1993.
ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Hucitec, 1992.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
DELGADO, Guilherme Costa. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: UFRGS, 2012.
DEMO, Pedro. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
IANNI, Octavio. A ditadura do capital financeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
MALUF, Renato Sérgio. Segurança alimentar e nutricional: conceitos e políticas públicas. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 48, 2003.
MARQUES, Paulo Eduardo Moruzzi. Segurança Alimentar: A intervenção da Associação Brasileira de Agribusiness no campo de disputa e produção ideológica. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 1996.