Afinal, o que é análise?
Introdução
A palavra “análise” encontra-se no centro de múltiplas disciplinas científicas e filosóficas, assumindo significados distintos conforme o contexto teórico, histórico e metodológico. No campo das ciências sociais, a análise não é meramente uma operação lógica ou técnica, mas um gesto epistemológico profundo que se relaciona com a maneira como conhecemos, interpretamos e transformamos a realidade social. Ao nos perguntarmos “análise, o que é?”, entramos em um território de disputas conceituais que atravessa desde a filosofia analítica até as concepções críticas da linguagem e da sociedade.
Neste artigo, investigaremos a noção de análise com base na tradição da filosofia analítica, especialmente nos aportes de Frege, Russell, Moore e Wittgenstein, mas sempre tensionando essas visões a partir das preocupações sociais e culturais que estruturam a sociologia contemporânea. A análise será compreendida como atividade intelectual que ultrapassa a mera decomposição lógica de proposições e se revela como prática social situada — histórica, política e linguisticamente.
1. O surgimento da análise como método filosófico
A tradição da filosofia analítica, consolidada no início do século XX, transformou a linguagem em objeto privilegiado da reflexão filosófica. Não se tratava apenas de analisar sentenças ou proposições, mas de elucidar os problemas filosóficos por meio da clareza conceitual. Como destacou Frege, a análise do pensamento somente é possível por meio da análise da linguagem (Marcondes, 2012). Essa virada linguística, que marca o abandono das especulações metafísicas tradicionais, recoloca a filosofia em um campo mais rigoroso, onde a análise se volta para os usos e funções da linguagem nos jogos sociais.
Frege inaugura um tipo de análise que parte da distinção entre sentido e referência, propondo que uma mesma palavra pode referir-se ao mesmo objeto, mas em contextos distintos apresentar sentidos diferentes. Isso cria as bases para a semântica formal, que influenciará fortemente os estudos posteriores de lógica e linguagem. Para Frege (1879), o pensamento não é psicológico, mas objetivo e impessoal — e a filosofia deve explicitar os critérios que organizam seu uso correto.
Russell, por sua vez, desenvolve a teoria das descrições definidas, que mostra como a estrutura gramatical das sentenças pode ocultar a forma lógica que realmente expressa um fato. A análise filosófica, portanto, adquire um caráter investigativo, um método para revelar as estruturas ocultas do pensamento e da linguagem. Russell (1905) defende que a função da filosofia é justamente buscar uma linguagem perfeita que reflita com exatidão a lógica dos fatos, evitando ambiguidades da linguagem ordinária.
Moore contribui com a noção de análise como clarificação conceitual. Para ele, a tarefa da filosofia é decompor conceitos complexos em elementos mais simples e acessíveis, revelando suas relações internas. Diferente de Frege e Russell, Moore valoriza o realismo e a objetividade do mundo, recusando o idealismo hegeliano que dominava a tradição inglesa. Ele afirma que os objetos do conhecimento existem independentemente da mente que os conhece (Moore, 1898).
Esses três autores inauguram uma tradição analítica que influenciará profundamente a filosofia e as ciências humanas, incluindo a sociologia, ao afirmar que o sentido não é uma propriedade intrínseca das palavras, mas o resultado de suas relações e funções nos usos sociais da linguagem.
2. A virada pragmática na filosofia de Wittgenstein
A contribuição de Ludwig Wittgenstein representa um divisor de águas na tradição analítica. Sua obra atravessa duas fases distintas. Na primeira, representada pelo Tractatus Logico-Philosophicus (1921), o autor compartilha da visão lógica de Frege e Russell, defendendo que a estrutura da linguagem deveria espelhar a estrutura do mundo. Nesse sentido, uma proposição só tem sentido se puder ser representada logicamente como um fato do mundo. A análise, então, seria um processo técnico de correspondência entre nomes e objetos, de modo a evitar proposições sem significado — as chamadas pseudoproposições metafísicas (Wittgenstein, 1921).
Contudo, a maturação do pensamento de Wittgenstein o conduziu a uma crítica dessa visão excessivamente formalista. Em sua segunda fase, sobretudo na obra Investigações Filosóficas (1953), ele propõe uma concepção mais complexa da linguagem: ao invés de uma estrutura lógica universal, temos uma multiplicidade de formas de dizer, cada qual inserida em contextos de vida específicos. Surge, então, o conceito de jogos de linguagem.
Essa mudança epistemológica tem consequências profundas para o entendimento da análise. Analisar, para o segundo Wittgenstein, é compreender os usos das palavras em suas práticas sociais concretas. O significado de uma palavra é seu uso na linguagem — uma concepção que rejeita a busca por essências fixas ou universais. Como ele afirma: “Os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra em férias” (Wittgenstein, 1953, §38). O papel da filosofia passa a ser o de desfazer os mal-entendidos causados por essa “férias” da linguagem, reconduzindo os conceitos ao seu uso comum.
3. Jogos de linguagem e formas de vida: análise como prática social
A noção de jogos de linguagem introduz um entendimento revolucionário sobre o funcionamento da linguagem: ela não é um sistema fechado de signos, mas uma atividade enraizada em práticas culturais. Falar é agir. Assim, a análise linguística passa a ser também uma análise das formas de vida que sustentam os usos da linguagem.
Para Wittgenstein, os jogos de linguagem são sistemas simbólicos dotados de regras próprias, que só fazem sentido no interior das práticas humanas. As palavras, por si só, não carregam significado. O que lhes confere sentido é a posição que ocupam dentro de um jogo — como uma peça de xadrez que só é compreensível se sabemos jogar. Como ele mesmo escreve: “O significado de uma palavra é o seu uso na linguagem, e o seu uso está enraizado em formas de vida” (Wittgenstein, 1953, §23).
Nesse sentido, a análise não é um esforço para encontrar definições universais, mas um exercício de descrição cuidadosa dos usos das palavras em situações concretas. A tarefa do analista é descrever os jogos de linguagem, não impor regras externas. Isso aproxima a análise filosófica da etnografia linguística e da hermenêutica, destacando o papel do contexto e da cultura na constituição do sentido.
A ideia de que não existe uma linguagem ideal ou uma gramática perfeita, mas sim múltiplas regras vinculadas a práticas humanas, inaugura uma concepção pluralista da linguagem — e, por consequência, da análise. Trata-se de um deslocamento do modelo lógico para o modelo pragmático: não se trata mais de espelhar o mundo, mas de compreender como falamos sobre ele.
4. A crítica à metafísica: desmontando os “superconceitos”
Um dos alvos centrais de Wittgenstein na segunda fase de sua obra é a tradição metafísica que, ao tentar apreender essências universais por meio da linguagem, acaba por produzir proposições sem sentido. O que está em jogo é a ilusão de que podemos, por meio da linguagem, descobrir verdades últimas sobre o mundo, a mente ou a realidade. Para Wittgenstein, essa tentativa nasce de uma má compreensão da gramática das expressões filosóficas.
A análise, nesse contexto, assume uma função terapêutica: não busca desvelar a verdade escondida nas palavras, mas desfazer o enfeitiçamento causado pelo mau uso da linguagem. Nas palavras do próprio autor: “Filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nossa inteligência por meio da linguagem” (Wittgenstein, 1953, §109).
Os chamados “superconceitos” — como “ser”, “realidade”, “mundo”, “verdade”, “alma” — são alvo constante dessa crítica. Segundo Wittgenstein, tais termos ganham aparência de profundidade quando são retirados de seu uso cotidiano e inseridos em contextos teóricos abstratos. O papel do filósofo-analista é, então, devolver essas expressões ao seu “uso natural”, revelando que muitos dos problemas filosóficos são, na verdade, mal-entendidos gramaticais.
A partir dessa crítica, a análise deixa de ser um instrumento para alcançar a verdade absoluta e passa a ser uma atividade de elucidação. Ao invés de oferecer respostas definitivas, a filosofia deve ajudar o sujeito a ver com clareza o que já está diante de seus olhos, mas que se tornou confuso pelo uso impróprio da linguagem.
5. A análise como método terapêutico
A metáfora terapêutica que Wittgenstein utiliza para descrever a análise filosófica se contrapõe à tradição que vê a filosofia como uma ciência do fundamento. Para ele, a função da análise é dissolver os problemas e não resolvê-los. É nesse sentido que ele afirma: “A filosofia não nos dá nenhuma doutrina, mas apenas descrições” (Wittgenstein, 1953, §124).
Esse movimento aproxima a análise da vida cotidiana e das formas de interação social. Ao contrário de um projeto normativo ou dogmático, a análise terapêutica é situada, contextual e aberta. Ela rejeita a busca por uma linguagem perfeita e abraça a diversidade dos jogos de linguagem e das práticas sociais.
O filósofo Peter Hacker (2009), comentando essa perspectiva, afirma que a análise wittgensteiniana é uma cartografia da linguagem: não busca descrever uma estrutura oculta, mas mapear o terreno visível das formas de expressão. A análise, nesse sentido, é descritiva, não explicativa; elucidativa, não normativa.
Essa concepção de análise é profundamente relevante para as ciências sociais, pois valoriza o contexto, a prática e a experiência como elementos constitutivos do sentido. Ela rompe com o ideal de uma linguagem neutra e nos obriga a olhar para o modo como falamos e agimos no mundo.
6. Análise e sociologia: entre linguagem e realidade social
A tradição inaugurada por Wittgenstein abre caminhos férteis para o diálogo com a sociologia contemporânea. Ao insistir que o significado está no uso e que a linguagem é uma prática social, sua filosofia encontra eco em autores como Peter Winch, que afirma que os conceitos que temos determinam a forma como experienciamos o mundo (Winch, 1970).
Nesse horizonte, a análise não se limita ao campo da lógica, mas se expande como uma ferramenta para compreender as estruturas simbólicas que sustentam as formas de vida. Investigar a linguagem, nesse caso, é também investigar a sociedade. Não por acaso, autores como Bourdieu (1996) e Giddens (2009) reconheceram a centralidade da linguagem nos processos de reprodução social e na construção da realidade.
A análise, portanto, torna-se uma forma de crítica social. Ao revelar como certos usos da linguagem naturalizam desigualdades, hierarquias e exclusões, ela nos permite desestabilizar os significados dominantes e abrir espaço para novas formas de compreensão e ação. A análise do discurso, a etnometodologia e os estudos pós-estruturalistas retomam essa inspiração para mostrar que toda linguagem é política, situada e carregada de interesses.
7. Análise, poder e ideologia: desmontando naturalizações
A análise da linguagem, ao revelar os jogos simbólicos que estruturam a vida cotidiana, mostra-se um recurso potente para evidenciar mecanismos de poder e ideologia. Se a linguagem não apenas reflete o mundo, mas o constitui, então a forma como dizemos as coisas tem implicações diretas na maneira como vivemos e percebemos a realidade.
A concepção wittgensteiniana de linguagem como prática social abre espaço para compreendermos como certos usos discursivos consolidam formas específicas de dominação. O linguista Norman Fairclough (2001), influenciado por essa tradição, desenvolveu a Análise Crítica do Discurso (ACD), demonstrando como a linguagem contribui para a reprodução (ou subversão) das relações de poder. Nesse sentido, a análise se torna não apenas uma descrição, mas uma denúncia.
Michel Foucault (1996), embora não pertença diretamente à tradição analítica, também atribui à linguagem um papel central na constituição do poder. Para ele, os discursos não são neutros nem inocentes: são dispositivos de controle e normatização. A análise, nesse campo, é uma forma de genealogia — uma escavação das condições históricas que tornaram possível o que hoje é dito como verdade.
Essas abordagens revelam que as palavras não são meros instrumentos de comunicação, mas tecnologias políticas que ordenam o mundo. Quando se naturaliza, por exemplo, que “o mercado regula a vida”, ou que “certos grupos são inferiores por natureza”, estamos diante de jogos de linguagem que mascaram relações de dominação. A análise, nesse contexto, é um ato de resistência simbólica.
8. A análise como instrumento crítico nas ciências sociais
Ao adotar uma postura reflexiva e sensível à historicidade das palavras, a análise torna-se uma ferramenta privilegiada nas ciências sociais para questionar o senso comum e desestabilizar as estruturas simbólicas do poder.
Autores como Pierre Bourdieu (1996) mostram que as palavras carregam capitais simbólicos — prestígios, marcas, classificações — que estruturam o campo social. A análise, nesse caso, deve ser capaz de revelar como se produzem as classificações dominantes, como se impõem significados e se naturalizam hierarquias.
Já no campo da análise da linguagem cotidiana, a etnometodologia de Harold Garfinkel (1984) busca entender como os sujeitos produzem sentido em suas interações cotidianas. Sua proposta é descrever minuciosamente os métodos com que as pessoas organizam a realidade social, revelando o caráter construído (e muitas vezes arbitrário) do que é percebido como “normal”.
Também a hermenêutica crítica de Jürgen Habermas (1987) propõe uma análise voltada à reconstrução racional dos discursos e à crítica das distorções comunicativas que impedem o entendimento mútuo. Para ele, a linguagem deve ser compreendida como meio de emancipação, desde que livre de coerções sistêmicas.
Assim, o ato de analisar deixa de ser uma operação abstrata e assume um papel político. Analisar é intervir. É trazer à tona os pressupostos ocultos, os jogos de dominação simbólica, os enquadramentos que estruturam nossas crenças. É transformar o mundo pela via do sentido.
9. Conclusão: por que ainda precisamos da análise?
Em um tempo marcado pela desinformação, pelo esvaziamento dos sentidos e pela polarização discursiva, o exercício da análise torna-se uma tarefa urgente e imprescindível. Mais do que uma técnica, ela é um compromisso ético com a clareza, com o diálogo e com a possibilidade de entendimento.
Retomando Wittgenstein, analisar é devolver as palavras ao seu uso cotidiano. É resistir à sedução dos superconceitos e das fórmulas vazias. Mas, ao mesmo tempo, é reconhecer que esses usos cotidianos são atravessados por relações de poder, por tradições, por ideologias. Assim, a análise, quando radicalizada, pode ser instrumento de conscientização e de transformação social.
Nas ciências sociais, a análise ocupa o lugar de um gesto político: ela questiona os enunciados naturalizados, desestabiliza verdades hegemônicas, revela as condições de possibilidade do discurso. É um método e uma postura, uma técnica e uma ética.
Ao perguntarmos “análise, o que é?”, não estamos apenas buscando uma definição conceitual, mas interrogando o próprio lugar da linguagem na construção do mundo. E, ao fazermos isso, colocamos em movimento uma das tarefas mais nobres da sociologia: desvelar o que está por trás do que parece óbvio, revelar o sentido oculto das formas simbólicas que moldam o nosso estar-no-mundo.
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