Nos últimos anos, o termo “empreendedorismo” tornou-se um dos conceitos mais celebrados no discurso econômico, político e cultural. Ele é frequentemente apresentado como a chave para o desenvolvimento pessoal, a prosperidade econômica e a solução de problemas sociais. No entanto, sob a ótica das ciências sociais, o empreendedorismo não pode ser reduzido a uma simples fórmula de sucesso individual ou coletivo. Ao contrário, ele é um fenômeno complexo, profundamente enraizado nas estruturas sociais, culturais e econômicas que moldam as sociedades contemporâneas. Este texto busca explorar o conceito de empreendedorismo, analisando suas dimensões sociológicas e criticando a chamada “teologia do empreendedorismo”, que tende a glorificar o empreendedor como um herói moderno, desconsiderando os contextos estruturais que limitam ou amplificam as oportunidades de sucesso.
O Conceito de Empreendedorismo: Definições e Dimensões
Empreendedorismo, em sua definição mais básica, refere-se à capacidade de identificar oportunidades e mobilizar recursos para transformá-las em negócios viáveis. Segundo Schumpeter (1934), o empreendedor é aquele que introduz inovações no mercado, seja por meio de novos produtos, processos, mercados ou modelos organizacionais. Essa visão pioneira coloca o empreendedor como um agente de mudança, responsável por impulsionar o crescimento econômico e o progresso tecnológico.
No entanto, ao longo do tempo, o conceito de empreendedorismo expandiu-se para abranger não apenas atividades comerciais, mas também iniciativas sociais, culturais e comunitárias. Para Santos (2018), o empreendedorismo social, por exemplo, busca resolver problemas coletivos, como pobreza e exclusão, utilizando estratégias empresariais. Esse tipo de empreendedorismo reflete uma preocupação crescente com questões éticas e sustentáveis, alinhando-se às demandas de uma sociedade cada vez mais consciente das desigualdades globais.
Do ponto de vista sociológico, o empreendedorismo não pode ser compreendido apenas como uma prática individual. Ele está intrinsecamente ligado às relações de poder, às dinâmicas culturais e às estruturas institucionais que definem as oportunidades e barreiras enfrentadas pelos indivíduos. Bourdieu (1986) argumenta que o capital econômico, cultural e social desempenha um papel crucial na determinação de quem consegue empreender com sucesso. Assim, enquanto alguns têm acesso a redes de apoio, conhecimentos técnicos e recursos financeiros, outros enfrentam dificuldades significativas para superar as barreiras estruturais que impedem sua ascensão.
A Teologia do Empreendedorismo: Um Discurso Ideológico
A ideia de que qualquer pessoa pode se tornar um empreendedor de sucesso, desde que tenha determinação, criatividade e disposição para correr riscos, é central no que muitos autores chamam de “teologia do empreendedorismo”. Esse discurso ideológico, amplamente disseminado por palestras motivacionais, livros de autoajuda e plataformas digitais, apresenta o empreendedor como um modelo de virtude e sucesso, quase como um “herói moderno” capaz de superar qualquer obstáculo.
No entanto, essa narrativa ignora as desigualdades estruturais que permeiam as sociedades contemporâneas. Para Harvey (2005), o discurso do empreendedorismo está profundamente vinculado ao neoliberalismo, uma doutrina econômica que enfatiza a responsabilidade individual e minimiza o papel do Estado na promoção do bem-estar social. Nesse contexto, o fracasso é atribuído à falta de esforço ou habilidade do indivíduo, desviando a atenção das condições socioeconômicas que limitam as oportunidades de grande parte da população.
Além disso, a teologia do empreendedorismo promove uma visão meritocrática da sociedade, sugerindo que todos partem de condições iguais para competir no mercado. Contudo, conforme aponta Silva (2020), essa perspectiva é falaciosa, pois ignora as desigualdades históricas e sistêmicas que afetam diferentes grupos sociais. Por exemplo, mulheres, pessoas negras e comunidades periféricas enfrentam barreiras adicionais, como preconceito, falta de acesso a crédito e redes de apoio insuficientes, que dificultam sua inserção no mundo dos negócios.
O Papel do Contexto Social e Cultural no Empreendedorismo
O empreendedorismo não ocorre em um vácuo; ele é moldado pelo contexto social e cultural em que está inserido. As normas, valores e expectativas de uma sociedade influenciam diretamente o tipo de empreendedorismo que emerge e as formas como ele é percebido. Por exemplo, em culturas que valorizam o individualismo e o sucesso material, como nos Estados Unidos, o empreendedorismo tende a ser associado à riqueza e ao status pessoal. Já em países com tradições mais coletivistas, como muitos na África e na Ásia, o empreendedorismo pode estar mais voltado para o fortalecimento da comunidade e a resolução de problemas locais.
Segundo Weber (1905), o espírito do capitalismo está intimamente ligado ao ethos protestante, que valoriza o trabalho árduo, a disciplina e a acumulação de riquezas como sinais de virtude religiosa. Embora o contexto histórico tenha mudado, ainda é possível observar resquícios dessa conexão entre moralidade e economia no discurso contemporâneo sobre empreendedorismo. Muitos líderes empresariais são tratados como figuras quase messiânicas, cujo sucesso é visto como prova de sua superioridade moral e intelectual.
Essa idealização do empreendedor, no entanto, pode ter consequências negativas. Ao colocar o indivíduo como o principal responsável por seu destino, o discurso do empreendedorismo desvia a atenção das políticas públicas necessárias para reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento inclusivo. Além disso, ele cria uma pressão excessiva sobre as pessoas, levando-as a internalizar o fracasso como um reflexo de suas próprias limitações, em vez de reconhecer as barreiras externas que enfrentam.
O Impacto do Empreendedorismo nas Relações Sociais
Outro aspecto importante a ser considerado é o impacto do empreendedorismo nas relações sociais. Em uma sociedade marcada pela lógica do mercado, as interações humanas tendem a ser mediadas por interesses econômicos. Como aponta Bauman (2007), o capitalismo contemporâneo transformou as pessoas em “empreendedores de si mesmas”, obrigando-as a gerir suas vidas como se fossem empresas, buscando maximizar seus “ativos” (habilidades, redes de contatos, reputação) e minimizar seus “passivos” (vulnerabilidades, dependências).
Essa transformação tem implicações profundas para a forma como as pessoas se relacionam umas com as outras. Em vez de vínculos baseados na solidariedade e no apoio mútuo, as relações tendem a ser vistas como transações utilitárias, onde cada indivíduo busca extrair o máximo de benefício possível. Isso pode levar ao enfraquecimento dos laços comunitários e ao aumento da alienação social, especialmente entre aqueles que não conseguem acompanhar as exigências do mercado.
Por outro lado, o empreendedorismo também pode ser uma força de coesão social quando praticado de forma colaborativa. Cooperativas, associações comunitárias e iniciativas de economia solidária demonstram que é possível empreender de maneira que beneficie não apenas os indivíduos, mas também as comunidades. Esses modelos alternativos de empreendedorismo destacam a importância de repensar as práticas econômicas tradicionais e buscar soluções que priorizem o bem comum.
Uma Visão Crítica do Empreendedorismo Contemporâneo
Embora o empreendedorismo tenha potencial para gerar inovação e melhorar a qualidade de vida, é essencial adotar uma abordagem crítica que leve em conta os contextos estruturais e as desigualdades sociais. A glorificação indiscriminada do empreendedorismo, como ocorre na teologia do empreendedorismo, pode mascarar problemas mais profundos, como a concentração de renda, a precarização do trabalho e a exclusão de grupos marginalizados.
Para superar esses desafios, é necessário promover políticas públicas que criem condições mais equitativas para o empreendedorismo. Isso inclui investimentos em educação, acesso a crédito, suporte técnico e infraestrutura, além de medidas que combatam o preconceito e promovam a igualdade de oportunidades. Além disso, é fundamental questionar o discurso dominante que reduz o sucesso ao empreendedorismo individual, reconhecendo que o desenvolvimento econômico e social depende de esforços coletivos e institucionais.
Considerações Finais
O empreendedorismo é um fenômeno multifacetado que reflete as complexidades das sociedades contemporâneas. Enquanto ele oferece oportunidades para inovação e transformação, também está imerso em dinâmicas de poder e desigualdade que precisam ser compreendidas e enfrentadas. A teologia do empreendedorismo, ao glorificar o indivíduo e ignorar os contextos estruturais, contribui para perpetuar mitos que distorcem a realidade e desviam a atenção das mudanças necessárias.
Para avançar, é fundamental adotar uma visão crítica e holística do empreendedorismo, que reconheça tanto seu potencial quanto suas limitações. Isso exige um compromisso com a justiça social, a sustentabilidade e a cooperação, garantindo que o empreendedorismo sirva não apenas aos interesses de poucos, mas ao bem-estar de todos.
Referências
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas . São Paulo: Perspectiva, 1986.
HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural . São Paulo: Loyola, 2005.
SANTOS, M. L. Empreendedorismo social: desafios e perspectivas . Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 33, n. 96, p. 123-145, 2018.
SCHUMPETER, J. A. The Theory of Economic Development: An Inquiry into Profits, Capital, Credit, Interest, and the Business Cycle . Cambridge: Harvard University Press, 1934.
SILVA, R. C. Desigualdades e empreendedorismo: uma análise crítica . Estudos Sociológicos, Recife, v. 15, n. 2, p. 56-78, 2020.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo . São Paulo: Companhia das Letras, 1905/2004.