O que é dorama? Entenda esse fenômeno cultural

Nos últimos anos, uma verdadeira onda cultural vinda do Leste Asiático atravessou fronteiras e conquistou corações em todo o mundo. Essa expansão não se restringe à música ou ao cinema: ela se manifesta, sobretudo, na popularização dos doramas, séries televisivas e web-séries produzidas majoritariamente na Coreia do Sul, Japão, China e Taiwan. Muito mais que entretenimento, essas produções tornaram-se espelhos das sociedades asiáticas contemporâneas e, simultaneamente, pontes de diálogo com outras culturas.

Por Roniel Sampaio-Silva

O termo dorama tem origem no inglês drama, adaptado foneticamente ao japonês, e foi posteriormente incorporado a outras línguas asiáticas. Embora o nome remeta genericamente a narrativas seriadas, o fenômeno ganhou novas camadas de sentido quando a Coreia do Sul transformou o formato em um instrumento de diplomacia cultural e identidade nacional. Como aponta Júlia Brito (2024), o êxito global de produções como Squid Game (2021) demonstra que os doramas extrapolaram seu território de origem, “comunicando a cultura pop sul-coreana de modo a aproximar o público brasileiro de uma realidade geográfica e simbólica distante”.

A pesquisadora Lise Leal (2023) reforça essa percepção ao observar que os dramas televisivos e o cinema da Coreia do Sul integram um projeto nacional de reconstrução identitária e econômica. Após décadas marcadas por guerras, ditaduras e censura, o país redescobriu na cultura um caminho para o desenvolvimento, transformando o audiovisual em motor econômico e em ferramenta de soft power, ou seja, de influência simbólica sobre o mundo.

O presente texto propõe compreender o fenômeno dos doramas como parte essencial da chamada Onda Coreana (Hallyu), articulando aspectos históricos, estéticos e políticos que explicam sua ascensão. Mais que um formato narrativo, o dorama se consolidou como expressão do espírito de uma nação que encontrou, na emoção e na arte, uma forma de afirmar sua presença global.

1. Origens Históricas e Culturais dos Doramas
1.1 Do Japão à Coreia: a gênese do formato

Os doramas surgiram originalmente no Japão das décadas de 1950 e 1960, quando a televisão se popularizou como meio de comunicação de massa. Essas primeiras produções eram dramas cotidianos sobre família, trabalho e amor, muitas vezes baseados em romances literários. Com o tempo, o formato se expandiu para outros países asiáticos, adaptando-se às especificidades culturais de cada sociedade.

A Coreia do Sul, entretanto, foi o país que mais aperfeiçoou o gênero e o transformou em símbolo nacional. Segundo Leal (2023), isso se deve a um conjunto de fatores históricos e políticos que remontam ao processo de reconstrução pós-guerra. Após décadas de ocupação japonesa (1910–1945) e de uma guerra civil devastadora (1950–1953), a Coreia do Sul emergiu como uma nação dividida, pobre e marcada por traumas coletivos. Para recuperar-se, o país apostou na industrialização acelerada e, mais tarde, na cultura como vetor de modernização.

Durante os anos 1980 e 1990, em meio à redemocratização e à abertura econômica, o governo sul-coreano passou a investir fortemente na indústria cultural. O cinema, a música e a televisão tornaram-se ferramentas de afirmação identitária e de inserção internacional. Como destaca Brito (2024), “o governo entendeu que o fortalecimento de seu soft power passava pela exportação de produtos midiáticos capazes de representar uma nova Coreia: moderna, tecnológica e emocionalmente sofisticada”.

1.2 A consolidação da Hallyu

Nos anos 1990, a Coreia do Sul já havia criado um ecossistema cultural robusto, composto por leis de incentivo, ministérios específicos e parcerias público-privadas. O resultado desse esforço foi o surgimento da Hallyu, termo cunhado por jornalistas chineses para descrever a “onda coreana” que invadia o mercado asiático com filmes, música pop, moda e, sobretudo, os dramas televisivos.

Segundo Leal (2023), a Hallyu é mais que uma estratégia de marketing: trata-se de um movimento de reconstrução simbólica, no qual a Coreia ressignifica sua imagem perante o mundo, passando de país periférico a referência de modernidade e sensibilidade estética. Essa transformação, observa a autora, foi sustentada por políticas públicas consistentes e por uma visão de longo prazo que uniu Estado, indústria e criadores culturais.

A virada do século XXI consolidou esse processo. A popularidade de dramas como Winter Sonata (2002) e Jewel in the Palace (2003) mostrou que o público internacional estava aberto às narrativas coreanas. Esses títulos não apenas alcançaram altos índices de audiência em países como Japão e China, mas também impulsionaram o turismo, a exportação de cosméticos e o aprendizado da língua coreana. Era o início de um ciclo de retroalimentação cultural e econômica.

2. As Características Singulares dos Doramas

2.1 Estrutura e estética

Os doramas coreanos distinguem-se de outras formas de narrativa televisiva por sua estrutura compacta. Geralmente compostos por uma única temporada de 12 a 20 episódios, eles apresentam começo, meio e fim bem definidos, evitando prolongamentos desnecessários. Essa concisão, aliada à alta qualidade de produção, contribui para uma experiência imersiva e emocionalmente satisfatória.

Visualmente, os doramas se destacam pela fotografia cinematográfica, pelo cuidado com o figurino e pela ambientação que equilibra tradição e modernidade. A trilha sonora, elemento indispensável, atua como fio condutor da emoção — as chamadas OSTs (Original Soundtracks) costumam tornar-se hits independentes. Brito (2024) observa que essa “simbiose entre imagem, som e sentimento constitui a assinatura estética do K-drama, que busca provocar empatia e identificação em qualquer espectador, independentemente da cultura de origem”

2.2 Temas e personagens

A temática dos doramas é diversa, mas há um fio condutor que os une: a exploração das emoções humanas em contextos de tensão social. As narrativas transitam entre o romance, o drama familiar, o suspense e a fantasia, mas sempre retornam à experiência humana da perda, da esperança e da superação.

Muitos roteiros abordam conflitos de classe, desigualdade de gênero, pressões acadêmicas e o choque entre tradição e modernidade. Essa abordagem socialmente consciente reflete, como lembra Leal (2023), o esforço da Coreia do Sul em conciliar seu passado confucionista com o presente globalizado. Os personagens são complexos e multifacetados: heróis imperfeitos, mulheres determinadas, vilões humanizados. Essa riqueza psicológica gera uma identificação profunda com o público.

2.3 O diálogo intercultural

Um dos segredos do sucesso dos doramas está na sua capacidade de equilibrar o local e o universal. As histórias são profundamente enraizadas na cultura coreana — exibem comidas típicas, modos de falar, relações hierárquicas e valores coletivistas —, mas tratam de temas universais como amor, amizade, solidão e busca por reconhecimento.

Essa combinação, que Leal (2023) chama de hibridismo cultural, é o que permite que os doramas sejam compreendidos e amados por pessoas de diferentes países. A cada episódio, o espectador estrangeiro é convidado a conhecer não apenas uma história, mas também uma cultura. O resultado é um aprendizado afetivo, que promove empatia e curiosidade pelo outro.

3. Netflix e a Globalização dos K-dramas

3.1 A entrada das plataformas de streaming

A revolução digital foi decisiva para a expansão global dos doramas. Durante muitos anos, seu consumo fora da Ásia dependia de legendas feitas por fãs (o fansubbing), o que restringia o alcance das produções. Com o avanço das plataformas de streaming, especialmente a Netflix, o acesso tornou-se fácil, legalizado e multiplataforma.

Brito (2024) explica que a Netflix, ao expandir suas operações na Ásia, percebeu o potencial das produções coreanas para conquistar o público internacional. Parcerias estratégicas com estúdios locais e investimentos em originais, como Okja (2017) e Kingdom (2019), criaram uma sinergia entre o modelo global da empresa e o dinamismo do audiovisual coreano. A série Squid Game (2021) foi o ponto culminante dessa relação, tornando-se o título mais assistido da história da plataforma.

3.2 Squid Game e o auge da Onda Coreana

O sucesso de Squid Game vai além das estatísticas. A série sintetiza as contradições da sociedade sul-coreana — a desigualdade econômica, a meritocracia cruel, a pressão social —, ao mesmo tempo em que dialoga com um público global que reconhece nessas questões os dilemas do capitalismo contemporâneo. Brito (2024) observa que “a força de Squid Game está em transformar uma crítica local em metáfora universal”, algo que poucos produtos culturais haviam conseguido antes.

A recepção internacional da série reforçou o papel da Netflix como mediadora cultural. Plataformas ocidentais passaram a enxergar a Coreia do Sul não apenas como mercado consumidor, mas como produtora de conteúdo premium. Esse deslocamento simbólico desafia a hegemonia hollywoodiana e inaugura um novo eixo de circulação cultural entre o Oriente e o Ocidente.

3.3 Políticas culturais e o papel do Estado

Por trás do sucesso midiático há um projeto político consistente. Desde o governo de Kim Dae-jung (1998–2003), a Coreia do Sul implementou políticas públicas voltadas à exportação cultural. Criaram-se ministérios específicos, fundos de investimento e programas de formação artística. O Estado entendeu que a cultura era não apenas um valor simbólico, mas também uma vantagem econômica.

Leal (2023) descreve esse modelo como uma “governança cultural” que alia Estado, indústria e criadores em torno de objetivos comuns. Os resultados são visíveis: o setor audiovisual responde hoje por bilhões de dólares em exportações e consolidou a Coreia como referência de inovação e qualidade. Nesse sentido, o sucesso global dos doramas é fruto tanto da criatividade individual quanto da planificação coletiva.

4. O Impacto Cultural e Social dos Doramas

4.1 O poder do soft power

A ascensão dos doramas exemplifica o conceito de soft power formulado por Joseph Nye: a capacidade de um país influenciar outros por meio da cultura, valores e ideias, e não apenas pela força econômica ou militar. A Coreia do Sul transformou esse princípio em estratégia nacional.

Como afirma Leal (2023), “a cultura tornou-se um produto de exportação e, simultaneamente, um emblema de resistência e afirmação nacional”.  Cada dorama que viaja pelo mundo carrega consigo uma representação simbólica da Coreia — suas paisagens, sua língua, sua sensibilidade. Isso gera uma rede de empatia que se traduz em turismo, comércio e diplomacia cultural.

4.2 Transformações na moda e nos hábitos

Os efeitos da Hallyu são tangíveis na vida cotidiana de milhões de fãs. A moda, a gastronomia e a cosmética coreanas tornaram-se tendências globais. Personagens de doramas influenciam cortes de cabelo, estilos de maquiagem e até hábitos alimentares. Restaurantes de bibimbap e lojas de skincare se multiplicam em capitais ocidentais, enquanto expressões do idioma coreano entram no vocabulário popular.

Essa “coreanização do cotidiano” reflete o poder de identificação emocional criado pelas narrativas. Ver uma personagem preparar ramyeon numa cena romântica desperta no público o desejo de experimentar aquele universo, não por exotismo, mas por afinidade. O espectador sente que compreende, de alguma forma, aquela cultura.

4.3 Reflexões sociais e novas representações

Os doramas também funcionam como espaço de reflexão sobre questões sociais. Séries recentes abordam temas como desigualdade de gênero (Strong Woman Do Bong Soon), saúde mental (It’s Okay to Not Be Okay), diversidade (Extraordinary Attorney Woo) e corrupção política (Vincenzo). Essa ampliação temática demonstra uma maturidade narrativa e um compromisso ético com a realidade contemporânea.

Brito (2024) analisa que Squid Game levou esse compromisso ao extremo, transformando o entretenimento em denúncia. A série expõe, com brutalidade e beleza estética, as contradições do sistema que produz vencedores e descartáveis. Em suas palavras, “o drama coreano é, ao mesmo tempo, espelho e crítica da modernidade”.

4.4 Brasil e os doramas

O Brasil ocupa um lugar especial na expansão dos doramas. Segundo Leal (2023), o país é hoje um dos maiores consumidores do gênero fora da Ásia, fenômeno impulsionado pela internet e pelos serviços de streaming. Essa recepção revela afinidades culturais: o público brasileiro, habituado a telenovelas e narrativas emocionais, reconhece nos doramas uma sensibilidade próxima, porém renovada pela estética e pelo ritmo asiáticos. Além do entretenimento, há um intercâmbio afetivo e simbólico. Fãs brasileiros aprendem o idioma coreano, organizam eventos, produzem fanarts e criam comunidades virtuais que celebram o encontro entre culturas. Essa rede de afeto mostra que os doramas transcendem a tela: eles constroem vínculos e aproximam povos.

5. Os Doramas e o Futuro da Cultura Global

A força dos doramas no século XXI indica uma transformação profunda na geografia do audiovisual. Durante décadas, o mundo foi dominado pelo modelo hollywoodiano, centrado em narrativas ocidentais e em estruturas de produção bilionárias. A ascensão da Coreia do Sul quebra esse monopólio simbólico e demonstra que é possível combinar qualidade técnica, identidade nacional e apelo internacional.

Leal (2023) define esse momento como uma “reestruturação das narrativas globais”, na qual a Ásia deixa de ser apenas fonte de exotismo para tornar-se protagonista criativa. Brito (2024) complementa que, ao integrar o mercado de streaming, a Coreia do Sul não se dilui na lógica global, mas reafirma sua singularidade, oferecendo ao mundo “histórias emocionais com alma e precisão estética”.

O futuro dos doramas parece promissor. A expansão das plataformas, o avanço da inteligência artificial e o crescimento das coproduções internacionais tendem a ampliar ainda mais o alcance dessas narrativas. Entretanto, o desafio será preservar a autenticidade cultural que lhes confere encanto. Se a padronização global ameaça a diversidade, os doramas mostram que o caminho inverso também é possível: o particular pode tornar-se universal quando contado com verdade e sensibilidade.

Considerações finais

Os doramas representam mais do que um fenômeno midiático. Eles são o retrato de uma nação que, após períodos de dor e reconstrução, aprendeu a projetar-se para o mundo por meio da emoção. A Coreia do Sul transformou suas feridas históricas em arte, sua disciplina em criatividade e sua cultura em um dos produtos mais desejados do planeta.

Como observam Brito (2024) e Leal (2023), o sucesso dos doramas é fruto de uma combinação rara: planejamento estatal, inovação estética e conexão humana. Eles mostram que o poder cultural não nasce apenas de orçamentos milionários, mas da capacidade de contar histórias que tocam o coração universal das pessoas.

Hoje, assistir a um dorama é participar de uma experiência global de empatia. É compreender que o amor, a dor e o desejo de recomeçar são sentimentos que ultrapassam idiomas e fronteiras. Ao construir essas pontes de afeto e reflexão, os doramas não apenas redefinem o entretenimento, mas também nos convidam a imaginar um mundo mais próximo, sensível e compartilhado.

Referências

BRITO, Júlia. A Coreia do Sul e “O Jogo da Lula”: Squid Game (2021) e a Netflix na crista da Onda Coreana. 2024. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação, Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2024.

LEAL, Lise Raquel Silva de Araújo. O expoente audiovisual da Coreia do Sul: os K-dramas e a reestruturação das narrativas. 2023. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social – Audiovisual) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023.

Roniel Sampaio Silva

Doutorando em Educação, Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais e Pedagogia. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Teresina Zona Sul.

2 Comments Deixe um comentário

  1. Gente, esse artigo é de que ano? Não tem a data…e a autoria é do professor Roniel, mesmo, isso?

Deixe uma resposta

Categorias

História do Café com Sociologia

O blog foi criado por Cristiano Bodart em 27 de fevereiro de 2009. Inicialmente tratava-se de uma espécie de “espaço virtual” para guardar materiais de suas aulas. Na ocasião lecionava em uma escola de ensino público no Estado do Espírito Santo. Em 2012 o Roniel Sampaio Silva, na ocasião do seu ingresso no Instituto Federal, tornou-se administrador do blog e desde então o projeto é mantido pela dupla.

O blog é uma das referências na temática de ensino de Sociologia, sendo acessado também por leitores de outras áreas. Há vários materiais didáticos disponíveis: textos, provas, dinâmicas, podcasts, vídeos, dicas de filme e muito mais.

Em 2019 o blog já havia alcançado a marca de 9 milhões de acessos.

O trabalho do blog foi premiado e reconhecido na 7º Edição do Prêmio Professores do Brasil e conta atualmente com milhares de seguidores nas redes sociais e leitores assíduos.

Seguimos no objetivo de apresentar aos leitores um conteúdo qualificado, tornando os conhecimentos das Ciências Sociais mais acessíveis.

Direitos autorais

Atribuição-SemDerivações
CC BY-ND
Você pode reproduzir nossos textos de forma não-comercial desde que sejam citados os créditos.
® Café com Sociologia é nossa marca registrada no INPI. Não utilize sem autorização dos editores.

Previous Story

Socialismo internacional

Next Story

O que é job? contribuições sociológicas

Latest from Uncategorized

Go toTop