Sociologia movimentos sociais

O estudo dos movimentos sociais representa um dos campos mais fecundos da sociologia contemporânea, especialmente em virtude das transformações que marcam o tecido social na era da globalização. A sociologia, ao se debruçar sobre as formas coletivas de ação, busca compreender os mecanismos de mobilização, as motivações subjetivas e objetivas dos atores sociais, bem como suas relações com as estruturas sociais. A partir da obra de Maria da Glória Gohn (1997), torna-se possível traçar uma linha interpretativa que articula diferentes paradigmas teóricos e contextos históricos na compreensão dos movimentos sociais. Este artigo explora, sob o prisma da sociologia, as principais teorias e paradigmas dos movimentos sociais, articulando aspectos da ciência política e da antropologia, com especial atenção à realidade latino-americana e brasileira.

O conceito de movimento social na sociologia

Na tradição sociológica, o conceito de movimento social está ligado à noção de ação coletiva. Ao contrário de ações isoladas, os movimentos sociais expressam interesses, valores e identidades coletivas que se manifestam publicamente por meio de protestos, reivindicações e organização. Não se trata apenas de reações imediatas a carências materiais, mas de fenômenos históricos e culturais que desafiam estruturas de dominação, propõem novas formas de sociabilidade e participam da construção do tecido democrático (Gohn, 1997).

Melucci (1996), citado por Gohn, destaca que os movimentos sociais não são meras epifanias políticas, mas “tecidos relacionais” em que se manifestam conflitos entre visões de mundo, práticas sociais e formas de organização. Daí a necessidade de entender os movimentos como expressões de um campo social ainda não consolidado, onde se desenham alternativas e resistências às formas instituídas de poder e dominação.

Paradigmas explicativos: norte-americano, europeu e latino-americano

O paradigma norte-americano

Nos Estados Unidos, a tradição sociológica desenvolveu, desde o início do século XX, um conjunto de teorias que se voltam para a análise do comportamento coletivo. A Escola de Chicago e os interacionistas simbólicos, como Blumer, interpretaram os movimentos sociais como respostas emocionais às privações socioeconômicas (Gohn, 1997). Blumer, por exemplo, definiu os movimentos como empreendimentos coletivos para estabelecer uma nova ordem de vida. Para ele, os movimentos evoluem de formas amorfas para organizações complexas com valores, normas e cultura próprias.

Outra vertente importante foi a teoria da mobilização de recursos, desenvolvida por Olson, Zald e McCarthy. Nessa perspectiva, os movimentos são compreendidos como empreendimentos racionais, com estratégias, lideranças e recursos organizacionais. O foco desloca-se da psicologia coletiva para a estrutura organizacional e as oportunidades políticas (Gohn, 1997).

A crítica a essa vertente veio de autores como Tilly e Tarrow, que enfatizaram os “ciclos de protesto” e as “estruturas de oportunidades políticas” como elementos centrais na emergência e desenvolvimento dos movimentos. Essas teorias contribuíram para articular os movimentos com o sistema político, considerando-os parte do jogo democrático e da disputa por reconhecimento.

O paradigma europeu

Na Europa, duas correntes principais se destacam: a marxista e a dos Novos Movimentos Sociais (NMS). A primeira, herdeira de Marx, Engels e Gramsci, enfatiza as lutas de classes como eixo estruturante dos movimentos sociais. A ênfase recai sobre as contradições do capitalismo, as formas de exploração e os mecanismos de resistência dos trabalhadores. A luta pela hegemonia e os projetos políticos de transformação social são centrais nesse paradigma (Gohn, 1997).

Já os NMS, com autores como Touraine, Melucci e Offe, propõem uma abordagem mais voltada à subjetividade, identidade e cultura. Os movimentos deixam de se restringir à esfera econômica e passam a atuar em campos como a ecologia, o feminismo, os direitos civis, a sexualidade e a cidadania. Touraine vê os movimentos como produtores de sentido social; Melucci os entende como redes que expressam identidades e estilos de vida alternativos (Gohn, 1997).

O paradigma latino-americano

Na América Latina, os movimentos sociais assumem características singulares, relacionadas às lutas populares, aos processos de marginalização e às desigualdades estruturais. Desde os anos 1970, há um esforço para pensar os movimentos a partir de uma matriz própria, que articule as especificidades regionais às teorias universais.

Gohn (1997) mostra que o paradigma latino-americano se constituiu por meio de uma leitura crítica dos paradigmas europeus, especialmente do marxismo e dos NMS. Na região, os movimentos estão ligados à luta por terra, moradia, acesso a serviços básicos e reconhecimento étnico-cultural. Movimentos como os dos trabalhadores sem terra, indígenas, negros, mulheres e juventudes periféricas representam novas formas de resistência e ação coletiva.

A partir dos anos 1990, a globalização e o avanço do neoliberalismo impuseram novos desafios aos movimentos. Muitos passaram a atuar em parceria com ONGs, formulando projetos e reivindicando políticas públicas. A institucionalização de pautas e a burocratização das organizações trouxe um novo ciclo, marcado pela busca de sustentabilidade e pela profissionalização da militância (Gohn, 1997).

Dimensões analíticas: cultura, identidade e política

Os movimentos sociais não podem ser reduzidos a instrumentos de luta política. Eles são espaços de produção cultural, de construção de identidades e de reinvenção da vida cotidiana. A cultura é, portanto, uma dimensão central na análise dos movimentos. Ela se expressa em rituais, símbolos, discursos, estéticas e práticas que conferem sentido às ações coletivas (Melucci, 1996).

A identidade, por sua vez, é o elo entre o indivíduo e o coletivo. É por meio dela que os sujeitos se reconhecem como parte de um “nós” que luta por um projeto comum. A construção da identidade coletiva envolve processos simbólicos, narrativas compartilhadas e a definição de fronteiras com o “outro” (Gohn, 1997).

A dimensão política, por fim, diz respeito à articulação dos movimentos com o Estado, os partidos e as instituições. Aqui, as teorias da mobilização de recursos e das oportunidades políticas oferecem ferramentas importantes para entender como os movimentos influenciam e são influenciados pelo contexto institucional. No entanto, é preciso ir além da lógica instrumental e considerar também os afetos, as subjetividades e os sentidos que mobilizam os sujeitos.

O caso brasileiro: entre a participação e a crise

O Brasil é um terreno fértil para o estudo dos movimentos sociais. Desde as lutas pela redemocratização nos anos 1970 até as manifestações recentes, o país tem testemunhado uma intensa atividade de mobilização popular. Gohn (1997) identifica três ciclos principais no Brasil: o primeiro (1972-1984), marcado pela luta contra a ditadura; o segundo (1985-1989), de institucionalização e participação; e o terceiro (1990-1997), de reconfiguração diante da globalização e das novas demandas sociais.

Nesse processo, destacam-se movimentos como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), das mulheres, dos negros, das juventudes, dos povos indígenas e das periferias urbanas. Esses movimentos têm reivindicado não apenas direitos materiais, mas também reconhecimento simbólico, autonomia e participação nos processos decisórios.

Contudo, a partir dos anos 2000, observa-se uma crise de mobilização, com o esvaziamento de algumas organizações e a dispersão das pautas. A emergência das redes digitais e das novas formas de ativismo (como o ciberativismo) redesenhou o campo da ação coletiva. A Primavera Secundarista, as Jornadas de Junho de 2013 e os protestos contra a violência policial revelam novas dinâmicas, horizontais e descentralizadas, que desafiam os modelos tradicionais de organização (Gohn, 1997).

Considerações finais

A análise sociológica dos movimentos sociais permite compreender as múltiplas formas de ação coletiva que atravessam a sociedade contemporânea. Como nos lembra Gohn (1997), os movimentos são fenômenos históricos e dinâmicos, que respondem às transformações do mundo e, ao mesmo tempo, propõem novas formas de viver, resistir e transformar.

A integração entre as dimensões cultural, identitária e política revela a complexidade dos movimentos sociais. Eles não são apenas instrumentos de reivindicação, mas espaços de produção de sentido, de subjetividades e de sociabilidades alternativas.

Na intersecção entre sociologia, ciência política e antropologia, os estudos sobre movimentos sociais contribuem para pensar criticamente a sociedade, os conflitos e as possibilidades de emancipação. Em um mundo marcado por desigualdades e exclusões, os movimentos continuam a ser faróis de resistência, solidariedade e transformação social.

Referências bibliográficas

GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

MELUCCI, Alberto. Movimentos sociais e mudança social. In: GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e cidadania. São Paulo: Cortez, 1996.

TOURAINE, Alain. O retorno do ator: ensaio de sociologia. Petrópolis: Vozes, 1984.

OFFE, Claus. Novos movimentos sociais: desafio à teoria social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 1, p. 66-79, 1986.

TARROW, Sidney. Power in movement: social movements and contentious politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

TILLY, Charles. From mobilization to revolution. Reading: Addison-Wesley, 1978

Roniel Sampaio Silva

Doutorando em Educação, Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais e Pedagogia. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Teresina Zona Sul.

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