Nas últimas décadas, a agricultura passou por profundas transformações técnicas, sociais e econômicas, marcando o que se convencionou chamar de “agricultura moderna”. Longe de ser um fenômeno meramente técnico ou agronômico, a modernização agrícola é um processo enraizado em relações sociais, políticas e estruturais. Seu avanço está associado à industrialização do campo, à introdução de pacotes tecnológicos e à reconfiguração das dinâmicas de produção, trabalho e sustentabilidade ambiental.
A perspectiva sociológica, ao lado da agronomia, permite compreender que a agricultura moderna não é apenas um avanço técnico, mas uma reestruturação social do espaço rural. Conforme Gohn (1999), as transformações nos modos de produção são sempre atravessadas por disputas de poder e por interesses econômicos, o que se aplica diretamente ao processo de modernização agrícola.
As raízes da modernização agrícola
A chamada Revolução Verde, iniciada no pós-Segunda Guerra Mundial, é apontada como marco inicial da agricultura moderna. Esse processo consistiu na introdução massiva de insumos químicos, mecanização, sementes geneticamente modificadas e práticas de irrigação intensiva, com o objetivo declarado de aumentar a produtividade agrícola e combater a fome mundial (Altieri, 2002).
Contudo, do ponto de vista sociológico, essa revolução não se deu de forma neutra ou homogênea. De acordo com Porto-Gonçalves (2006), a adoção do modelo tecnocrático de agricultura beneficiou grandes produtores, aprofundando desigualdades sociais no campo. Pequenos agricultores, muitas vezes, não tiveram acesso aos insumos, créditos e tecnologias necessários para competir nesse novo cenário, levando à concentração fundiária e ao êxodo rural.
Além disso, a lógica da produtividade como valor supremo deslocou a centralidade da agricultura familiar e da agroecologia, substituindo práticas sustentáveis por modelos de monocultura e uso intensivo de agrotóxicos, o que resultou em sérios impactos ambientais e sociais.
Transformações nas relações de trabalho rural
A modernização da agricultura provocou uma reconfiguração profunda das relações de trabalho no campo. A introdução de maquinário agrícola e o uso intensivo de insumos industriais diminuíram a demanda por mão de obra, gerando um processo de desemprego estrutural e deslocamento populacional rural-urbano.
Na perspectiva sociológica, esse processo pode ser compreendido a partir do conceito de “exclusão produtiva” (Santos, 2000), no qual trabalhadores deixam de ser absorvidos pelas novas exigências do modelo técnico e são marginalizados social e economicamente. Com o advento da agricultura moderna, a figura do trabalhador rural tradicional — inserido em arranjos familiares ou em relações de parceria — deu lugar a formas precarizadas de trabalho, como o bóia-fria, o terceirizado e o assalariado eventual.
Paralelamente, houve um aumento na informalidade e nas jornadas intermitentes, especialmente em atividades sazonais como a colheita da cana-de-açúcar, laranja e soja. Conforme relata Delgado (2012), essa mudança favoreceu a intensificação da exploração do trabalho e a fragmentação das identidades coletivas dos camponeses e assalariados rurais.
Outro ponto importante é o envelhecimento do trabalhador rural e a evasão dos jovens, que buscam alternativas urbanas diante da ausência de políticas públicas para a permanência no campo. A sociologia do trabalho rural revela, portanto, que a modernização agrícola não significou uma melhoria automática nas condições de vida, mas antes, um redesenho do trabalho pautado por maior produtividade e menor inclusão.
A lógica da produtividade também tem implicações de gênero. Estudos apontam que, com a mecanização, muitas atividades tradicionalmente desempenhadas por mulheres deixaram de ser valorizadas economicamente, agravando desigualdades e invisibilizando o papel feminino na produção rural (Carvalho, 2015).
A agricultura moderna e o meio ambiente
Um dos maiores paradoxos da agricultura moderna é o seu impacto ambiental. Enquanto promove avanços produtivos, também intensifica a degradação dos recursos naturais. A dependência de fertilizantes químicos e defensivos agrícolas tem contribuído para a contaminação de solos, lençóis freáticos e corpos hídricos. Segundo Altieri (2002), essa lógica rompe com os ciclos naturais e reduz a biodiversidade, tornando os ecossistemas mais vulneráveis.
O uso de monoculturas em larga escala — como soja, milho e cana-de-açúcar — implica a substituição de ecossistemas diversos por paisagens homogêneas, com baixa resiliência ecológica. A erosão do solo, a compactação da terra e a desertificação são efeitos colaterais comuns em regiões onde a agricultura moderna avança sem planejamento ambiental adequado.
Além disso, a emissão de gases de efeito estufa pela queima de combustíveis fósseis, pelo uso de nitrogênio sintético e pela decomposição de resíduos orgânicos contribui significativamente para as mudanças climáticas. A agropecuária industrial é uma das principais fontes globais de metano, um gás de efeito estufa com alto potencial de aquecimento global.
Na perspectiva sociológica, esses impactos ambientais são inseparáveis das estruturas de poder que orientam as decisões sobre uso da terra. A “ecologia política”, termo utilizado por autores como Guha e Martinez-Alier (1997), enfatiza que a degradação ambiental é uma consequência de um modelo econômico centrado no lucro, que desconsidera os saberes locais e os limites ecológicos.
A crise ambiental gerada pela agricultura moderna, portanto, é também uma crise social, pois afeta diretamente as comunidades rurais mais vulneráveis, expostas à contaminação, à insegurança hídrica e à expropriação de seus modos de vida.
Soberania alimentar e controle corporativo
A agricultura moderna, ao incorporar práticas industriais e tecnológicas, alterou radicalmente o paradigma da produção e do consumo de alimentos. Um dos aspectos mais críticos desse processo é o crescente controle corporativo sobre as cadeias produtivas alimentares. Grandes conglomerados multinacionais passaram a dominar a produção de sementes, fertilizantes, defensivos agrícolas, equipamentos, logística, distribuição e até mesmo o varejo alimentar (Silveira, 2005).
Esse domínio verticalizado tem implicações diretas na soberania alimentar dos povos, conceito que, segundo Altieri e Toledo (2011), se refere ao direito das populações de decidir seus próprios sistemas alimentares, respeitando culturas locais e práticas sustentáveis. Ao monopolizar os insumos e ditar os padrões de produção, as corporações transnacionais fragilizam a autonomia dos agricultores e impõem um modelo de consumo desvinculado das necessidades locais.
A dependência de sementes transgênicas, por exemplo, representa uma ruptura com o ciclo tradicional de cultivo e reprodução das variedades agrícolas. Agricultores que antes selecionavam e guardavam suas próprias sementes agora precisam comprá-las anualmente, muitas vezes acompanhadas de pacotes tecnológicos obrigatórios (como fertilizantes e agrotóxicos da mesma marca). Isso não apenas compromete a biodiversidade agrícola, mas também cria uma relação de dependência econômica.
Além disso, o modelo agroindustrial voltado à exportação — centrado na produção de commodities como soja, milho e carnes — desvia recursos naturais e terras férteis da produção de alimentos básicos para o consumo interno. Esse fenômeno, conhecido como “acaparamento de terras”, impacta gravemente a segurança alimentar, especialmente nos países periféricos (Borras Jr. et al., 2012).
Do ponto de vista sociológico, estamos diante de um processo de alienação alimentar, em que os sujeitos perdem o controle sobre o que produzem e consomem. Conforme aponta Bourdieu (1983), a dominação simbólica se expressa também na cultura alimentar, que é cada vez mais moldada por interesses mercadológicos e padrões globalizados, em detrimento de práticas locais e saberes tradicionais.
Portanto, a agricultura moderna, embora tecnicamente avançada, tem contribuído para a concentração de poder no campo e para a erosão da diversidade alimentar e cultural dos povos. Esse modelo hegemônico tem sido questionado por movimentos sociais, como a Via Campesina, que defendem uma reforma agrária popular, a agroecologia e a retomada do controle comunitário sobre os alimentos.
Alternativas sociotécnicas — agroecologia e agricultura regenerativa
Diante das contradições geradas pela agricultura moderna, diversos movimentos sociais, pesquisadores e agricultores têm se articulado em torno de propostas alternativas que buscam aliar produtividade, justiça social e equilíbrio ambiental. Entre essas propostas destacam-se a agroecologia e a agricultura regenerativa, que representam não apenas técnicas agronômicas distintas, mas verdadeiros paradigmas sociotécnicos de transformação do campo.
A agroecologia, conforme definido por Altieri (2009), é uma ciência, prática e movimento social que propõe a integração entre os saberes tradicionais e os conhecimentos científicos na construção de sistemas agrícolas sustentáveis, resilientes e socialmente justos. Ela valoriza a biodiversidade, o manejo ecológico do solo, o uso racional da água, o fortalecimento da agricultura familiar e o protagonismo dos agricultores nos processos de inovação.
Na perspectiva sociológica, a agroecologia configura-se como um projeto contra-hegemônico. Como destaca Gohn (2014), ela articula demandas políticas e culturais por autonomia, equidade e reconhecimento de modos de vida historicamente marginalizados. Os movimentos agroecológicos não apenas propõem novas práticas técnicas, mas também lutam por políticas públicas, reforma agrária e democratização do acesso à terra e aos recursos naturais.
A agricultura regenerativa, por sua vez, compartilha vários princípios com a agroecologia, mas enfatiza ainda mais o papel ativo da agricultura na restauração de ecossistemas degradados. Seus métodos incluem o plantio direto, o uso de cobertura vegetal permanente, a integração lavoura-pecuária-floresta, o uso de biofertilizantes e a recuperação da microbiota do solo. Como argumenta Savory (2013), esse modelo busca reverter os efeitos da degradação ambiental provocada pelo modelo industrial, restaurando os ciclos naturais e o sequestro de carbono atmosférico.
Do ponto de vista da agronomia, essas práticas são viáveis e já demonstraram ganhos em produtividade e resistência a variações climáticas. Do ponto de vista sociológico, representam uma ruptura com a lógica extrativista da agricultura moderna e uma abertura para uma nova racionalidade produtiva baseada na convivência com os ciclos da natureza, na cooperação e na valorização dos conhecimentos locais.
É fundamental observar que essas alternativas não são neutras, tampouco destituídas de disputa. Conforme Gramsci (2000), todo novo modelo social e produtivo disputa hegemonia com o modelo dominante, e sua consolidação depende tanto de experiências práticas exitosas quanto da capacidade de gerar uma nova consciência coletiva. A agroecologia, portanto, é também uma prática política que visa redefinir os significados de desenvolvimento, sustentabilidade e bem viver.
Essas alternativas ganham força em experiências como os assentamentos da reforma agrária no Brasil, as escolas de formação agroecológica, as feiras de alimentos orgânicos e as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Ao desafiar a lógica da agricultura moderna convencional, agroecologia e agricultura regenerativa apontam para um futuro rural mais plural, justo e sustentável.
Considerações finais e perspectivas futuras
A agricultura moderna representa uma das mais profundas transformações já ocorridas nas sociedades humanas, ao redefinir não apenas as formas de cultivo, mas também as estruturas sociais, econômicas e políticas associadas à produção de alimentos. Ao longo deste artigo, procuramos demonstrar, sob a perspectiva sociológica e agronômica, que esse processo não pode ser compreendido apenas em termos de progresso técnico, mas deve ser analisado a partir das relações de poder, das desigualdades sociais e dos impactos ambientais que engendra.
Como vimos, a Revolução Verde e seus desdobramentos consolidaram um modelo agrícola centrado na produtividade, na tecnificação e na mercantilização dos recursos naturais. Se, por um lado, esse modelo ampliou os volumes de produção agrícola, por outro, intensificou desigualdades sociais, degradou o meio ambiente e comprometeu a soberania alimentar de inúmeras populações.
A sociologia contribui para revelar que a modernização agrícola está inserida em lógicas sistêmicas de dominação, tanto nos planos econômicos quanto culturais. A dependência tecnológica, a concentração fundiária, a invisibilização dos saberes tradicionais e o controle corporativo sobre as cadeias alimentares são elementos que demonstram o caráter excludente da modernidade agrária.
Contudo, também observamos a emergência de práticas e saberes alternativos, que indicam outras possibilidades de produção agrícola mais justas, sustentáveis e democráticas. A agroecologia e a agricultura regenerativa se apresentam como paradigmas capazes de articular ciência, tradição, justiça social e sustentabilidade ecológica, desafiando a hegemonia do agronegócio e propondo novas formas de organização do trabalho, do consumo e da convivência com a natureza.
Para o futuro, é necessário construir políticas públicas que incentivem práticas sustentáveis, garantam a permanência das famílias no campo, promovam a reforma agrária e assegurem acesso à terra, à água e aos recursos produtivos. É também urgente fortalecer a educação no campo, valorizando os saberes locais e a formação crítica dos sujeitos rurais, em sintonia com os princípios da Educação do Campo (Caldart, 2004).
Mais do que um debate técnico, a agricultura moderna e suas alternativas exigem uma reflexão ética, política e epistemológica sobre o tipo de sociedade que desejamos construir. Em tempos de crise climática, insegurança alimentar e desigualdade crescente, repensar o modelo agrícola é uma tarefa coletiva inadiável.
Referências bibliográficas
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