Ei, psiu! Você que vai às ruas protestar e que cobra ações dos políticos, sabe o que é Accountability?

Ei, psiu! Você que vai às ruas protestar e que cobra ações dos políticos, sabe o que é Accountability?

Por Cristiano das Neves Bodart

Democracia demanda liberdade de expressão/manifestação e condições para sua efetivação consciente. O conhecimento das regras do jogo é de suma importância para a efetivação de uma democracia sólida. Você, leitor, que vai às ruas protestar, sabe o que é Accountability? Tal conceito me parece chave para compreender a democracia e suas regras, assim como fundamental para a compreensão de nosso papel de cidadãos.

O conceito accountability foi, inicialmente, problematizado sob à luz da realidade brasileira por Anna Maria Campos, quando em 1987, período de elaboração da Constituição Federal Brasileira, escreveu o artigo “Public service accountability: a comparative perspective”, publicado em 1988 e republicado em português em 1990.

Campos (1990) descreveu sua dificuldade de traduzir a palavra accountability para o português quando a ouviu pela primeira vez em uma aula dos Estados Unidos, embora dominasse muito bem o inglês. Descreveu Campos que,    […] no primeiro dia de aula não consegui acompanhar a discussão sobre accountability, incapaz de traduzir a palavra para o português(1). O único indício que pude captar foi que, apesar do som, nada tinha a ver com contabilidade. Após as aulas corri aos dicionários, que não me ajudaram. Tampouco me ajudaram os índices dos livros de leitura obrigatória. No dia seguinte, o debate continuou e, apesar do meu esforço, não logrei captar o significado da palavra, mas consegui entender que se discutia um conceito-chave no estudo de administração e na prática de serviço público. De volta ao Brasil com a minha charada, perguntei a muitas pessoas que talvez pudessem traduzir a palavra. Aqueles que tinham participado de programas de doutorado, nos EUA, confessaram que não sabiam como traduzi-la. Tentei fora da área de administração pública, pessoas competentes em inglês, muitos perguntavam: “Accountab••• Quê?” Desisti da ideia de tradução e me concentrei no significado(CAMPOS, 1990, p. 2).

Afirma Campos (1990, p.2) que a dificuldade de tradução da palavra para o português estava na falta de conhecimento do conceito, de sua prática, “razão pela qual não dispomos em nosso vocabulário”. A partir dessa constatação, Campos indagou qual seria a consequência dessa ausência para a realidade da Administração pública brasileira.

Em 2009, Pinho e Sacramento buscaram (re)percorrer o caminho de Campos na busca, nos dicionários tradutores, do sentido da palavra accountability em Português. Concluíram que,

[…] adota-se o pressuposto de que não existe mesmo uma palavra única que o expresse em português.2 O que se percebe são “traduções” diferentes para o termo por par- te de vários autores, ainda que os termos produzidos possam estar próximos ou convergentes. Em síntese, não existe perfeita concordância nas traduções (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1346).

Devido a dificuldade de encontrar uma tradução para a palavra, Campos (1990) buscou o sentido do conceito. Para ela, o tema accountability “devia estar relacionado com a questão dos direitos do cidadão”, tratando-se de um tema de cunho normativo, sobretudo ligados aos deveres do administração pública  e do governo para com os cidadãos.

O conceito de accountability parece ser sinônimo de responsabilidade objetiva ou obrigação de responder por algo. Caracterizado por uma responsabilidade subjetiva “acarreta a responsabilidade de uma pessoa ou organização perante uma outra pessoa, fora de si mesma, por alguma coisa ou por algum tipo de desempenho” (MOSHER, 1968, apud CAMPOS, 1990, p. 2). Assim, a accountability deve ser exigida “de fora para dentro”, ou seja, cabe o administrador público ser cobrado, responsabilizado pelos seus atos perante os cidadãos. Caberia saber, destacou Campos,

quem – fora do detentor da função pública – deveria ser reconhecido como capaz de compelir ao exercício da accountability; quem teria o poder de declarar alguém responsável: um cliente, um eleitor, um burocrata de nível mais elevado, um legislador, um tribunal? (CAMPOS, 1990, p. 4).

Certamente não é apenas os cidadãos os responsáveis pela fiscalização da Administrador público. Existem outras pressões “de fora”. Desta forma, podemos afirmar que a accountability pode ser dividida em dois tipos, a Accountability vertical e a Accountability horizontal. Prefiro chamá-los, respectivamente, de accountability social e accountability institucional. Isso por ser mais didático sua compreensão.

No primeiro tipo, a sociedade exerce o seu poder de pressão sobre os seus governantes, punindo-os ou agraciando-os por meio do voto e por meio de outros mecanismos. No accountability institucional é exercido pela ação mútua de fiscalização entre os poderes ou setores. Dentre os setores podemos citar as agências estatais de supervisionamento, avaliação e punição, se for o caso, dos agentes ou das instituições públicas.

A questão que levantamos é se temos, tido no Brasil, accountability social e/ou institucional. Se olharmos ao redor, a resposta parece ser a velha expressão: “mais ou menos”. Por um lado, instituições que têm perdido crédito junto à sociedade. Por outro, a sociedade que se afasta a cada dia da vida pública e, consequentemente, das ações de pressão e fiscalização dos seus representantes. Em contrapartida, há grupos, sobretudo de jovens, se organizando para cobrar ações públicas mais eficientes e maior justiça social, assim como protestando contra a corrupção e exigindo mais transparência na coisa pública, assim como maior participação social. Nesse contexto a internet e a rua parece ser “o palco da vez” na busca de maior accountability na gestão pública.

Carecemos de dar novos passos, sobretudo rumo ao aprofundamento da accountability social. Necessitamos com urgência criar mais conselhos de fiscalização e acompanhamento social da gestão pública. Práticas como o Orçamento Participativo e o “Site Transparência” são bons caminhos para a maior transparência da gestão pública, mas não podemos parar por ai. Em um contexto de crise das instituições, a população deve e pode ampliar a accountability social.

Referências

CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o Português. Revista de Administração Pública, 1990 (Fev./abr.).

PINHO, José Antonio Gomes de; SACRAMENTO,  Ana Rita Silva. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 43(6), 2009. (Nov./Dez.). Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/rap/v43n6/06.pdf> Acessado em 25 de Outubro de 2013.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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