Estrutura social Merton

O conceito de “estrutura social” ocupa posição central no vocabulário das ciências sociais, especialmente na Sociologia. Compreendê-lo é fundamental para analisar a organização da vida em sociedade, as formas de interação humana e os mecanismos de reprodução ou transformação das instituições sociais. O termo refere-se, em linhas gerais, ao padrão relativamente estável de relacionamentos sociais, papéis, normas e instituições que moldam o comportamento humano dentro de uma coletividade.

A relevância dessa noção ganhou grande fôlego no século XX com o avanço das teorizações de autores como Émile Durkheim, Karl Marx, Max Weber e, de forma inovadora, Robert K. Merton, que acrescentou ao conceito as dimensões da anomia e da adaptação social. O capítulo “Estrutura Social e Anomia”, publicado em Direito em Série 3 (Merton, 2020), constitui uma das formulações mais influentes sobre o tema, conectando-o às disfunções sociais e à criminalidade.

A proposta deste artigo é desdobrar o conceito de estrutura social em suas múltiplas dimensões, evidenciando sua complexidade e implicações para o entendimento dos fenômenos sociais contemporâneos. A abordagem adota como eixo principal a perspectiva da sociologia mertoniana, complementada por leituras de clássicos e contemporâneos da teoria social.

1. A estrutura como forma e conteúdo da vida social

A estrutura social, no sentido mais amplo, refere-se à rede de relações institucionalizadas que organiza a vida coletiva. Ela fornece os alicerces para que indivíduos e grupos saibam o que é esperado em termos de comportamento, deveres, direitos e papéis sociais. Em outras palavras, a estrutura social “orienta” as ações sem necessariamente as “determinar” de modo mecânico, oferecendo padrões para a interação.

Autores como Durkheim (1989) entendiam a estrutura social como “fato social”, ou seja, como formas de coerção externa que moldam as ações individuais. Já Weber (1991) via a estrutura como o resultado das ações sociais racionalmente orientadas, sendo as instituições o produto histórico dessas ações. Para Marx (2013), a estrutura social se fundamenta na infraestrutura econômica, isto é, na maneira como os homens produzem sua existência material, sendo esta a base sobre a qual se erguem as demais dimensões da vida social (ideologia, política, cultura etc.).

A perspectiva funcionalista, cuja expressão maior no século XX foi Merton, trata a estrutura como um sistema de posições inter-relacionadas que permite (ou bloqueia) oportunidades e distribui recompensas. Para ele, o estudo da estrutura implica examinar tanto os meios institucionalizados quanto as metas culturais, bem como a tensão existente entre eles (Merton, 2020).

2. Estrutura, normas e desigualdade

A estrutura social não se limita à organização abstrata da sociedade. Ela se materializa em relações concretas, especialmente nas formas de desigualdade social — econômicas, raciais, de gênero, regionais, entre outras. Um dos grandes méritos da sociologia contemporânea está em evidenciar que a estrutura social não é neutra: ela reflete interesses de determinados grupos sociais e pode reproduzir desigualdades históricas.

Segundo Bourdieu (2002), as estruturas sociais se reproduzem por meio de habitus — disposições incorporadas pelos sujeitos — e capital (econômico, cultural, social e simbólico). A estrutura social, nessa ótica, é ao mesmo tempo constrangedora e possibilitadora: constrange porque delimita os caminhos possíveis de mobilidade social, mas também possibilita estratégias diferenciadas conforme o capital acumulado por cada indivíduo.

No campo do direito, por exemplo, as estruturas jurídicas refletem padrões normativos legitimados, mas que podem estar dissociados das experiências reais das classes populares. Isso reforça a tese de que a estrutura social condiciona o acesso à cidadania, à justiça e à dignidade (Santos, 2004).

3. Estrutura Social e Anomia: a contribuição de Robert K. Merton

Entre as contribuições mais importantes da sociologia funcionalista ao estudo da estrutura social está a teoria da anomia desenvolvida por Robert K. Merton. Embora o termo tenha sido introduzido por Émile Durkheim no contexto da modernização acelerada e do colapso das normas tradicionais, Merton reelabora esse conceito em sua clássica obra “Estrutura Social e Anomia”, atribuindo-lhe uma perspectiva estrutural e pragmática.

Para Merton (2020), anomia não é apenas o estado de desorganização social em tempos de crise, mas um descompasso entre os fins culturalmente valorizados — como sucesso econômico ou prestígio — e os meios institucionalizados para alcançá-los. Quando a estrutura social oferece metas valorizadas, mas falha em garantir a todos acesso equitativo aos meios legítimos, ocorre uma pressão estrutural sobre os indivíduos. Essa tensão é o cerne da anomia.

Nesse cenário, as respostas dos indivíduos à anomia estrutural podem ser classificadas por Merton em cinco formas de adaptação:

  1. Conformidade: aceitação tanto dos fins culturais quanto dos meios institucionalizados (maioria da população).

  2. Inovação: aceitação dos fins, mas rejeição ou substituição dos meios (ex.: envolvimento com o crime para alcançar riqueza).

  3. Ritualismo: rejeição dos fins, mas adesão formal aos meios (cumprimento de rotinas sem propósito final claro).

  4. Retraimento: rejeição tanto dos fins quanto dos meios (ex.: uso de drogas, marginalidade voluntária).

  5. Rebelião: substituição tanto dos fins quanto dos meios por novos valores e práticas (ex.: movimentos revolucionários ou contraculturais).

Essas formas de adaptação revelam como a estrutura social, ao invés de apenas organizar, também pode gerar disfunções, exclusões e comportamentos desviantes. Como salienta o autor, “a anomia é um produto social, não um defeito individual” (Merton, 2020). A inovação criminal, por exemplo, não é explicada por falhas morais, mas por barreiras estruturais impostas a determinados segmentos sociais.

4. A estrutura social como geradora de comportamentos desviantes

A proposta mertoniana tem implicações profundas para a análise sociológica da criminalidade, da marginalidade e das desigualdades sociais. Ao propor que o desvio é funcional — ou seja, cumpre papéis na manutenção do sistema social —, Merton reinterpreta o crime não como uma anormalidade isolada, mas como expressão legítima (embora condenada) das tensões estruturais de uma sociedade desigual.

Essa concepção oferece importantes ferramentas para pensar políticas públicas e reformas institucionais. Em vez de investir exclusivamente em repressão penal, o que o modelo mertoniano sugere é que se devem combater as causas estruturais da anomia: ampliar o acesso à educação, ao emprego digno, aos direitos sociais e ao reconhecimento cultural, de modo a diminuir o fosso entre fins e meios.

A estrutura social, portanto, não apenas influencia o comportamento, mas o modela conforme a posição ocupada por cada sujeito dentro do sistema social. Como ensina Castel (1998), os processos de vulnerabilidade social são construídos historicamente por meio da retirada progressiva das garantias sociais, o que amplia o campo da exclusão e favorece comportamentos de ruptura ou rebelião.

Nesse sentido, a abordagem de Merton estabelece pontes entre sociologia, direito e políticas públicas, oferecendo uma matriz analítica poderosa para interpretar fenômenos como o encarceramento em massa, o tráfico de drogas, a evasão escolar e até mesmo a ascensão de discursos autoritários em contextos de desagregação social.

5. Estrutura Social, desigualdades e interseccionalidades

Ao ampliar o foco da análise da estrutura social para além das categorias econômicas, torna-se necessário considerar os múltiplos eixos de desigualdade que se intercruzam e moldam as experiências sociais dos indivíduos. Classe social, raça, gênero, orientação sexual, etnia, deficiência e territorialidade compõem um mosaico de fatores estruturais que impactam o acesso a recursos, direitos e reconhecimento.

Essa abordagem interseccional, originalmente formulada no campo dos estudos feministas e racializados por autoras como Kimberlé Crenshaw (2002), insere-se hoje no cerne da análise sociológica da estrutura social. Ela permite compreender, por exemplo, por que uma mulher negra periférica vivencia a estrutura social de modo muito distinto de um homem branco de classe média urbana, mesmo que ambos compartilhem alguma forma de exclusão.

No Brasil, as desigualdades raciais e de gênero são estruturantes da sociedade. Como destaca Almeida (2018), o racismo estrutural está imbricado nas instituições sociais, de forma que não se trata apenas de preconceitos individuais, mas de uma lógica sistêmica que organiza o acesso a oportunidades e poder. O mesmo se aplica às desigualdades de gênero, denunciadas por diversos movimentos sociais e corroboradas por indicadores sobre violência doméstica, feminicídio, divisão sexual do trabalho e disparidade salarial.

A estrutura social, nesse sentido, não pode ser pensada como um arranjo neutro ou puramente técnico de posições sociais, mas como um campo de lutas, no qual se inscrevem relações de dominação e resistência. É nesse ponto que a leitura crítica do conceito ganha força analítica, permitindo compreender como a ordem social vigente é sustentada por interesses específicos, ao mesmo tempo em que é contestada por sujeitos historicamente oprimidos.

6. Globalização e reconfiguração da estrutura social

Nas últimas décadas, o avanço da globalização e das transformações tecnológicas reconfigurou significativamente a estrutura social das sociedades contemporâneas. O processo de mundialização do capital, aliado à financeirização da economia, à flexibilização das relações de trabalho e ao avanço das tecnologias de informação, provocou deslocamentos importantes nas relações sociais e nos mecanismos de coesão.

Autores como Bauman (2001) e Giddens (1991) destacam que vivemos em um contexto de modernidade líquida, onde as antigas referências de classe, comunidade e Estado-nação foram relativizadas, dando lugar a formas mais fragmentadas e instáveis de pertencimento. Isso não significa o fim da estrutura social, mas sua recomposição sob novas lógicas: redes em vez de instituições; consumo em vez de cidadania; algoritmos em vez de mediações sociais.

Essa nova estrutura social, profundamente marcada pela lógica neoliberal, intensificou os processos de individualização, responsabilização e insegurança. O sujeito contemporâneo é pressionado a ser empreendedor de si mesmo, a competir por reconhecimento e a internalizar o fracasso como culpa pessoal — mesmo quando sua posição social é determinada por um conjunto de fatores estruturais que ele não controla.

Merton, se estivesse vivo, certamente veria nesse cenário a amplificação dos efeitos anômicos. A promessa do sucesso individual permanece culturalmente valorizada, mas os meios legítimos para atingi-la tornam-se cada vez mais inacessíveis para a maioria. A tensão estrutural permanece, mas agora sob novas formas — mais sofisticadas, invisíveis e, por isso mesmo, mais difíceis de serem denunciadas.

7. Superando desigualdades: a sociologia como ferramenta de transformação social

A estrutura social não é apenas objeto de descrição analítica; ela deve também ser enfrentada, debatida e transformada à luz de um projeto ético-político de justiça social. Nesse sentido, a sociologia crítica exerce papel decisivo ao desnudar os mecanismos que reproduzem a desigualdade, denunciar as formas de dominação simbólica e propor alternativas baseadas na equidade, na redistribuição e no reconhecimento.

O pensamento de Merton, ainda que enraizado no funcionalismo estrutural, abre brechas para leituras transformadoras, especialmente quando reconhece que os padrões institucionais vigentes produzem adaptações desviantes em função das barreiras estruturais impostas à realização das metas culturais. Nesse ponto, o desvio — especialmente a inovação — aparece não apenas como patologia, mas como índice de disfuncionalidade sistêmica.

No contexto brasileiro, essa abordagem pode contribuir para compreender por que políticas públicas orientadas apenas para a repressão (como a guerra às drogas) falham em reduzir a violência estrutural. A criminalização de condutas adotadas por sujeitos privados de meios legítimos para acessar os bens culturais valorizados (trabalho formal, educação de qualidade, moradia digna) acaba punindo o efeito e preservando a causa.

Por outro lado, experiências exitosas na área da educação, do acesso à justiça e da inclusão social revelam que é possível tensionar e redesenhar a estrutura social. A ampliação das universidades públicas por meio das políticas de cotas, por exemplo, promoveu não apenas mobilidade social, mas também transformação do habitus acadêmico e das representações de pertencimento (Souza, 2019).

No campo jurídico, a análise estrutural permite questionar a seletividade penal, a desigualdade no acesso à Justiça e o caráter simbólico de muitas normas. O direito, tradicionalmente visto como instrumento neutro, é, na verdade, profundamente enraizado nas estruturas de poder que organiza. A própria noção de cidadania — constitucionalmente garantida — encontra barreiras reais na estrutura social que regula o acesso a bens e direitos.

A sociologia, ao dialogar com o direito e a política, pode oferecer indicadores concretos para a formulação de políticas públicas mais eficazes e justas. Isso exige, porém, uma leitura crítica da estrutura social que vá além das aparências institucionais e revele os mecanismos ocultos de exclusão. Como destaca Gohn (2019), “o conhecimento sociológico é essencial para a ação política transformadora, pois fornece o mapa das desigualdades e os caminhos possíveis de intervenção”.

8. Caminhos para uma estrutura social mais justa

Embora a estrutura social não seja facilmente modificável, sua natureza histórica e socialmente construída abre espaço para a ação coletiva. Movimentos sociais, partidos políticos, organizações da sociedade civil e intelectuais engajados são agentes centrais na luta por estruturas mais justas e inclusivas.

Um ponto essencial é a articulação entre redistribuição econômica e reconhecimento simbólico. Isso significa que políticas sociais precisam ir além do assistencialismo e buscar efetivamente integrar os sujeitos historicamente marginalizados à vida pública e ao processo de tomada de decisão. A inclusão não pode ser apenas material, mas também epistêmica e cultural.

É também fundamental repensar os sistemas de avaliação social. As estruturas que valorizam apenas o mérito individual, sem considerar os condicionantes estruturais das trajetórias, reforçam a exclusão e legitimam a desigualdade. Nesse aspecto, a crítica à meritocracia feita por autores como Lilia Schwarcz (2019) ganha relevância ao mostrar como a narrativa meritocrática invisibiliza os privilégios herdados e responsabiliza os indivíduos pelo fracasso.

A sociologia da estrutura social, nesse sentido, oferece uma perspectiva que combina análise e ação. Ela nos convida a olhar para o mundo com lucidez, mas também com esperança: a esperança de que, ao compreender os mecanismos de dominação, possamos rompê-los e construir uma sociedade mais justa, plural e democrática.

Conclusão

A análise da estrutura social, a partir da perspectiva funcionalista de Robert K. Merton e complementada por outras correntes sociológicas críticas, revela a complexidade das relações sociais e os mecanismos estruturais que moldam os comportamentos, distribuem privilégios e perpetuam desigualdades. Ao enfatizar a tensão entre metas culturais e meios institucionalizados, Merton não apenas contribui para a compreensão das adaptações desviantes, como também propõe uma leitura estrutural das condutas humanas, revelando o caráter social do que muitas vezes é tratado como problema individual.

O conceito de anomia, revisitado sob o prisma da estrutura social, permite compreender os fenômenos da criminalidade, da marginalização e da frustração como expressões legítimas de uma sociedade que promete mais do que é capaz de entregar. Tais contradições ganham contornos ainda mais dramáticos em contextos de profunda desigualdade como o brasileiro, marcado por intersecções entre classe, raça, gênero e território.

Nesse cenário, a estrutura social aparece como terreno de disputa simbólica e material, sendo possível e necessário tensioná-la por meio da ação política, da crítica intelectual e da mobilização coletiva. O conhecimento sociológico, longe de ser neutro, oferece ferramentas indispensáveis para intervir no mundo social — seja por meio da educação, da formulação de políticas públicas, da atuação jurídica ou da construção de novas formas de convivência mais igualitárias.

Assim, compreender a estrutura social não é apenas uma exigência acadêmica ou teórica. É, acima de tudo, um compromisso ético com a construção de uma sociedade mais justa, onde os fins culturalmente valorizados estejam acessíveis por meios legitimamente compartilhados. Esse é o desafio de nossa época — e também nossa tarefa histórica.


Referências Bibliográficas

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Roniel Sampaio Silva

Doutorando em Educação, Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais e Pedagogia. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Teresina Zona Sul.

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