A música Brasil de Cazuza foi composta por Cazuza, George Israel e Nilo Romero no final dos anos oitenta (mais precisamente em 1988). Neste texto trabalhadremos o conceito “fato social” com base nesta canção.
Por Cristiano das Neves Bodart [1]
Inicialmente devemos entender o que o conceito que aplicaremos. O fato social é um dos conceitos mais presentes no ensino de Sociologia, seja no ensino médio ou superior. Isso, por si só, justifica o esforço e a necessidade de melhor conhecê-lo. Contudo, a necessidade de entendê-lo se dá por sua contribuição para compreendermos algumas dinâmicas da sociedade.
A partir deste texto, espero que compreenda alguns aspectos presentes nos fenômenos sociais estudados pela Sociologia. Antes, uma informação: o conceito em questão foi cunhado por Émile Durkheim (1858-1917), no livro “As regras do método sociológico”, publicado em 1895. Quando Durkheim desenvolveu esse conceito buscava destacar o objeto de estudo da Sociologia, chamando atenção para suas características.
Para explicar o que são fatos sociais me utilizarei de uma canção bastante conhecida, embora relativamente antiga. Me refiro à música Brasil, lançada por Cazuza em 1988, no álbum “Ideologia”. Chamo atenção para o fato da canção não ser uma produção sociológica ou didática, embora possa ser utilizada como um recurso de ensino ou como um objeto de análise sociológica. A canção, embora podendo ser uma crítica social, não possui o rigor necessário à produção do conhecimento científico (BODART, 2021); canção é arte. Contudo, há muitas canções influenciadas pelos conhecimentos produzidos nas Ciências Sociais, assim como há muitas narrativas da realidade social que refletem aspectos empíricos com certa precisão, tornando-se úteis como ponto de partida para refletir sobre questões sociais; o que faremos aqui.
Observamos a trecho da música Brasil:
“Não me convidaram
Pra esta festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer
Não me ofereceram
Nem um cigarro
Fiquei na porta
Estacionando os carros
Não me elegeram
Chefe de nada
O meu cartão de crédito
É uma navalha”
A riqueza da letra da canção de Cazuza nos permitiria tratar de diversos aspectos do mundo social, já que se trata de uma crítica social. Porém, vamos nos ater a três aspectos presentes em fenômenos sociais, os quais Durkheim chamou de “fatos sociais”.
Note que a queixa primeira se assenta no fato de não ter havido um convite e que a festa foi armada por outras pessoas, antes dele nascer. Apreende-se que ele não teve escolha, pois foram outros e não ele que organizou a festa. A festa na música são os fenômenos sociais diversos, dos quais o compositor é crítico pelo seu formato. Para a Sociologia, os fenômenos sociais são exteriores aos indivíduos, ou seja, não somos nós que os definimos, os escolhemos. Quando nascemos eles já estavam postos – não fomos convidados.
Quando Cazuza diz na canção que “os homens armaram pra me convencer. A pagar sem ver”, fica claro outro aspecto dos fenômenos sociais: somos coagidos a “pagar”, a executar, a participar, a crer, a gostar, etc., mesmo sem perceber, já que no processo de socialização vamos absorvendo as formas de agir, pensar, crer e sentir pré-definidas pela sociedade. As incorporamos de tal maneira que não precisamos a todo tempo racionalizar nossas práticas, pois são absorvidas como pré-disposições que nos orientam em nossas ações.
A partir desses aspectos, Durkheim afirma que os fatos sociais são exteriores aos indivíduos e esses são coagidos a repeti-los. A título de exemplo: ao sairmos para a escola vestimos uma roupa condizente com o ambiente. Fazemos isso quase que automaticamente. Não refletimos se iremos pelados ou vestidos, simplesmente vestimos uma roupa. Não é uma regra que nós criamos e não fomos consultados para sua definição; simplesmente existe e existia antes de nós. Posso optar por ir nu? Sim, mas sofreremos coerções para não fazermos isso. A verdade é que, assim como vestir roupas, “pagamos sem ver”. Mais do que isso! Acreditamos que escolhemos e que disso gostamos, quando, na verdade, “os homens armaram pra [nos] convencer”. Estamos convencidos de que é melhor andar vestido do que nu.
Por meio da segunda estrofe da canção, podemos apreender um aspecto social destacado por Durkheim: a divisão do trabalho social. A sociedade se estrutura de maneira a colocar as pessoas em posições sociais de colaboração à sociedade (à festa, nas palavras do Cazuza). Na grande maioria das vezes não nos restam muitas escolhas; somos coagidos a ocupar certos espaços na divisão social do trabalho.
Em síntese, encontramos três aspectos que conformam o conceito de fato social elaborado por Durkheim: exterioridade, coercitividade e generalidade.
Cazuza, por meio da referida canção, desvela que a “festa” não foi uma escolha sua, pois já estava marcada antes dele nascer. Aqui observamos o aspecto da exterioridade. O compositor destaca que ele foi convencido “a pagar sem ver”, revelando o caráter coercitivo da sociedade. Por fim, ele demonstra não ser algo particular, ao demonstrar que está falando do Brasil. Ou seja, é algo que apresenta certa regularidade na sociedade e incorporado pelas pessoas, de modo a reproduzi-lo quase sem reflexibilidade (a pagar sem ver).
Quando Durkheim desenvolveu o conceito de fato social visava destacar justamente que os fenômenos sociais são exteriores aos indivíduos, sendo esses coagidos a praticá-los, o que o torna com certa regularidade na sociedade. Em outros termos: os fatos sociais são dotados de exterioridade, coercitividade e generalidade.
Referências
BODART, Cristiano das Neves. Usos de canções no ensino de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021.
CAZUZA(Comp.); ISRAEL, George Alberto Heilborn (Comp.); NILO Romero (Comp.). Brasil. Álbum Ideologia. Universal Music Brasil, 1988. CD/LP.
Como citar este texto:
BODART, Cristiano das Neves. O conceito “fato social” e a canção Brasil, de Cazuza. Blog Café com Sociologia, out. 2022.
[1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: cristianobodart@gmail.com
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