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Gostar de estudar? A necessidade de estudar o que não se gosta

Gostar de estudar tem se tornado um jargão que motiva reformas curriculares. Neste sentido, vamos analisar profundamente os sentidos e intenções políticas e algumas implicações práticas desse pensamento.

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Por Roniel Sampaio Silva

A palavra gostar tem origem do latim gustare, cujo significado remete a provar, experimentar ou saborear. No “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa” de José Pedro Machado, a palavra “saber” tem origem no latim ‘sapere’, que significa “ter gosto; um odor; perceber pelo sentido do gosto; fig., ter inteligência, juízo; conhecer alguma coisa, conhecer, compreender, saber”. Já a palavra sabor, segundo a mesma obra, deriva do latim ‘sapore-‘, que quer dizer “gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprio e figurado; no pl., coisas de bom gosto; odor, perfume; gosto, ação de provar. Assim, podemos perceber que sabor e saber tem origens próximas, que conhecimento tem a ver com a experiência sensorial de perceber o mundo. Tal processo de assimilação do mundo é captado pelos nossos sentidos e assimilados pelo nosso intelecto: sapere e sapore. Ambos têm relação recíproca.

Tanto nosso intelecto quanto nosso paladar são aprimorados ao longo da nossa vida. Assim, quando crianças temos um paladar tão infantil que deseja tanto consumir açúcar que muitas vezes trocamos nossas refeições por doces. Desta maneira, o desejo primitivo do consumo de açúcar pode nos causar sérios problemas de saúde quando consumida em excesso. Neste caso, a afinidade gustativa pode nos trazer problemas. Consumir apenas aquilo que se gosta pode nos trazer problemas.

Nutricionalmente falando, as substâncias ricas em açúcar têm alto valor calórico e muitas delas tem baixo valor nutricional. Na medida que nos desenvolvemos e aprimoramos nosso paladar aprendemos das mais variadas coisas para equilibrar nossa dieta. Se antes a azeitona em conserva era intragável, agora passa a ser apreciada como mais alto grau de refinamento pelo nosso paladar. Por quê? Porque nosso paladar vai se transformando na medida em que conhecemos as propriedades nutricionais dos alimentos, conhecemos novas culturas e costumes e temos experiências gastronômicas. Portanto, o aprimoramento da nossa consciência e vivência muda nossa vontade de sentir gustativamente o mundo. Nosso paladar e nosso intelecto vão sendo aprimorados para digerir simbolicamente e metabolicamente coisas mais sofisticadas para além de sacarídeos.

Tanto nosso paladar como nosso intelecto estão em constante mudança. Ambos se transformam reciprocamente. A experiência superficial da digestão metabólica e simbólica cria um sujeito também superficial na medida em que tal sujeito não é lançado a desafios de comer o que não gosta ou de estudar o que não quer. A exposição daquilo que não se gosta e não se quer nos dá possibilidades do que Piaget(1977) chama do desequilíbrio, o qual nos faz adquirir novos gostos e sentidos. Fazer apenas o que se gosta ou o que se quer é ruim, porque o sujeito não têm oportunidade de conhecer contraditórios dos quais não vão ampliar repertórios e mostrar horizontes cuja vontade singela do ser não nos leva.  Além disso, o simples gostar inicial, sem aprofundamento do conhecimento refinado, não nos permite aprofundar nas profundezas do conhecimento sólido e robusto. É preciso conhecer o tutano para buscar a sustância nas entranhas do mais sólido cálcio encastelado.   Portanto, para gostar do tutano é preciso aprofundar o conhecimento para ter noção daquilo que se propõe. Outro exemplo: uma bebida amarga à primeira dose pode parecer intragável ou desagradável, mas com um pouco de paciência, insistência e treinamento pode se tornar uma supra sumo, porém é necessário se permitir além do que é inicialmente agradável e explorar o que é inicialmente desagradável.

Considerações finais do gostar de estudar

Um cálculo de geometria analítica ou uma dialética hegeliana à primeira vista pode se aparentar como chato, ou desagradável. Porém, com comprometimento ou dedicação intelectual é possível superar o véu do amargor e digeri-lo para apreciar a sua essência.

Invés de buscar sentidos profundos para as questões estruturais da natureza e da cultura, é mais cômodo trocar todos esses conhecimentos sofisticados por operações de como fazer e vender bolo no pote. No entanto, aprimorar um cálculo diferencial, compreender as transformações sociais do mundo, compreender a hermenêutica de um de uma corrente filosófica tem um nível de sofisticação dos quais desvelam segredos do universo físico, metafísico e social com um sapere e sapore muito mais refinado, mas exige dedicação, energia, dinheiro e revela privilégios que devem ser camuflados. A consequência social de desbravar um universo sofisticado e se encantar saborosamente por ele é compreendê-lo tão bem a ponto de querer mudar a receita do bolo.

Invés disso, os poderosos que querem mandar no currículo preferem adocicar a boca dos jovens com conhecimentos superficiais, mimá-los e acomodá-los a fim de garantir que uma geração se conforme e permanecer na superficialidade de um mundo de açúcar e algodão-doce, assim, estes jamais buscarão compreender as bases dos castelos que lhes encarceram e permanecerão a lamber o chão açucarado que a nobreza pisa.

Os professores têm que ensinar que o aluno gosta? O gostar, o saber e o saborear exigem certo refinamento e aprimoramento que não é contemplado pela superficialidade. O gostar de estudar pelo gostar superficial engana e estagna.

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Referências

MACHADO, José Pedro (Ed.). Dicionário etimológico da língua portuguesa. Editorial Confluência, 1956.

PIAGET, Jean. O desenvolvimento do pensamento: equilibração das estruturas cognitivas. Lisboa: Dom Quixote, 1977

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

2 Comments

  1. Ótimo texto, não sabia da dessa proximidade etimológica de saber e sabor.
    Assim como os responsáveis pelos filhos não podem permitir que as crianças abusem do açúcar em detrimento de alimentos nutricionalmente mais completos, os formadores de opinião e os legisladores não podem permitir que as escolas ofertem apenas aquilo que os jovens desejam, como vemos no ridículo e atual formato do ensino médio.

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