Teoria da Estupidez, esclarecedor ponto de vista de Bonhoeffer

Teoria da Estupidez

A teoria da estupidez destaca a incapacidade de persuadir pessoas assim, imunes a razões. Não é apenas falta intelectual, mas uma tendência em certos contextos. Surge sob poder crescente, privando indivíduos de independência, tornando-os manipuláveis. Libertação, não instrução, é a chave para superá-la. Essa teoria oferece consolo, afirmando que a maioria não é estúpida em todas as circunstâncias; depende do poder esperar mais da estupidez do que da sabedoria das pessoas.

Teoria da Estupidez[1]

Dietrich Bonhoeffer[2]

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Dietrich Bonhoeffer

A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que a malícia[3]. Pode-se protestar contra o mal; ele pode ser exposto e, se necessário, prevenido pelo uso da força. O mal sempre carrega consigo o germe de sua própria subversão, deixando pelo menos um sentimento de inquietação nas pessoas. Contra a estupidez, somos indefesos. Nem protestos nem o uso da força conseguem algo aqui; razões caem em ouvidos surdos; fatos que contradizem o prejulgamento simplesmente não precisam ser acreditados – nesses momentos, a pessoa estúpida até se torna crítica – e quando os fatos são irrefutáveis, são simplesmente ignorados como inconsequentes, como incidentais. Em tudo isso, a pessoa estúpida, ao contrário da maliciosa, está completamente satisfeita consigo mesma e, sendo facilmente irritada, torna-se perigosa ao partir para o ataque. Por essa razão, é necessária uma precaução maior do que com a maliciosa. Nunca mais tentaremos persuadir a pessoa estúpida com razões, pois é insensato e perigoso.

Se quisermos saber como vencer a estupidez, devemos procurar entender sua natureza. Isso é certo: ela não é essencialmente uma deficiência intelectual, mas humana. Existem seres humanos com intelecto notavelmente ágil, mas estúpidos, e outros com intelecto bastante limitado, mas longe de serem estúpidos. Descobrimos isso com surpresa em situações específicas. A impressão que temos não é tanto a de que a estupidez é um defeito congênito, mas que, em circunstâncias específicas, as pessoas se tornam estúpidas ou permitem que isso aconteça com elas. Observamos ainda que pessoas que se isolaram dos outros ou que vivem em solidão manifestam esse defeito com menos frequência do que indivíduos ou grupos de pessoas inclinados ou condenados à sociabilidade. Assim, parece que a estupidez é talvez menos um problema psicológico do que sociológico. É uma forma particular do impacto das circunstâncias históricas sobre os seres humanos, uma concomitância psicológica de certas condições externas. Ao observarmos mais de perto, torna-se aparente que toda ascensão vigorosa do poder no âmbito público, seja de natureza política ou religiosa, infecta uma grande parte da humanidade com estupidez. Parece até mesmo que esta seja virtualmente uma lei sociológica-psicológica. O poder de um necessita da estupidez do outro. O processo em operação aqui não é que capacidades humanas específicas, como o intelecto, atrofiem ou falhem de repente. Em vez disso, parece que, sob o impacto avassalador do poder crescente, os seres humanos são privados de sua independência interior e, mais ou menos conscientemente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. O fato de que a pessoa estúpida muitas vezes é teimosa não deve nos cegar para o fato de que ela não é independente. Em uma conversa com ela, tem-se a sensação de que não se está lidando com uma pessoa, mas com slogans, palavras de ordem e afins que a possuíram. Ela está sob um feitiço, cega, mal utilizada e abusada em sua própria essência. Tendo se tornado assim uma ferramenta sem mente, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer que é mal. Aqui é onde se esconde o perigo do uso diabólico, pois é isso que pode destruir de uma vez por todas os seres humanos.

Contudo, é neste exato ponto que se torna bastante claro que apenas um ato de libertação, não de instrução, pode superar a estupidez. Aqui precisamos aceitar o fato de que, na maioria dos casos, uma genuína libertação interna se torna possível apenas quando a libertação externa a precede. Até então, devemos abandonar todas as tentativas de convencer a pessoa estúpida. Essa situação explica por que, em tais circunstâncias, nossas tentativas de entender o que ‘o povo’ realmente pensa são em vão e por que, nessas circunstâncias, essa pergunta é tão irrelevante para a pessoa que está pensando e agindo responsavelmente. A palavra da Bíblia que diz que o temor a Deus é o princípio da sabedoria declara que a libertação interna dos seres humanos para viver uma vida responsável diante de Deus é a única maneira genuína de superar a estupidez.

Mas esses pensamentos sobre a estupidez também oferecem consolo, pois nos proíbem categoricamente de considerar a maioria das pessoas como estúpidas em todas as circunstâncias. Dependerá realmente de se aqueles no poder esperam mais da estupidez das pessoas do que de sua independência interna e sabedoria.

 

Como citar este texto:

BONHOEFFER, Dietrich. Teoria da Estupidez. Blog Café com Sociologia, nov. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/teoria-da-estupidez/ 

 

Notas:

[1] Trecho retirado de uma carta de Dietrich Bonhoeffer, que abordava variados temas. A Carta foi escrita para três amigos e colegas na conspiração contra Hitler, no décimo aniversário da ascensão de Hitler ao cargo de chanceler da Alemanha. Dietrich Bonhoeffer, de ‘After Ten Years’ em “Letters and Papers from Prison” (Obras de Dietrich Bonhoeffer/Inglês, vol. 8), Minneapolis, MN: Fortress Press, 2010.

[2] Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi um teólogo, pastor luterano, e resistente alemão contra o regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Dietrich Bonhoeffer foi prezo por ajudar judeus a fugirem do nazismo e enforcado em um campo de concentração por Adolf Hitler em 09 de abril de 1945.

[3] O termo malícia refere-se a agir maldosamente e praticar o mal. Bonhoeffer estava se referindo as práticas e pensamentos presentes na sociedade alemã que culminou com o genocídio de mais de milhões de pessoas em campos de concentração nazistas.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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