O negacionismo científico na sociedade contemporânea
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Por Cristiano das Neves Bodart[1]
Conceituando o negacionismo científico
A expressão negacionismo, em geral, refere-se a prática de negar uma realidade como meio de escapar de uma verdade desconfortável. Esse termo já foi amplamente utilizado para designar a prática de negar a existência do Holocausto (CASTRO, 2014) e mais recentemente o aquecimento global. A negação aos conhecimentos científicos de forma sistematizada e organizada vem sendo denominada “negacionismo científico”. Vale destacar que o negacionismo pode ser entendido também como resposta de grupos fundamentalistas (no sentido de firmados aos seus fundamentos culturais) ao avanço da Ciência, já que essa contesta as explicações tidas como insuficientes, incluindo explicações religiosas e/ou tradicionais.
Contextualizando o negacionismo científico
Primeiramente, importa compreender o que estamos denominando Ciência. A palavra ciência tem origem no latim, de scientia, que se traduz por conhecimento. Contudo, por Ciência (com letra maiúscula) nos referindo os conhecimentos adquiridos/desenvolvidos por meio do método científico, o qual envolve um conjunto de procedimentos especializados, tais como métodos (método indutivo, método dedutivo, método hipotético-dedutivo, método dialético, método fenomenológico, etc.), modalidades (bibliográfica, de campo, documental, experimental, participante, estudo de caso, etc.), técnicas (de coleta, de codificação, experimentação, análise, etc.), teorias e conceitos.
A prática de se opor ao conhecimento científico não é uma novidade da contemporaneidade. Antes, importa recordarmos que a Ciência se desenvolve em contexto de perseguições aos que se dispunham a tomá-la como princípio orientador de busca de compreender os diversos fenômenos físicos, químicos, biológicos, sociais, econômicos, etc. Muitos foram condenados pela Igreja Católica e pela sociedade de sua época por defender achados científicos ou conhecimentos originários de práticas que, posteriormente, se constituiria na Ciência Moderna. Os séculos XVI e XVII foram, particularmente, emblemáticos em se tratando de negação à Ciência. O abandono, durante quase toda a Idade Média, do conhecimento produzido na Grécia Antiga é um exemplo de negação do conhecimento, no caso da ciência antiga (episteme antiga). Contudo, a negação praticada naqueles momentos históricos estava relacionada a um contexto de desenvolvimento da Ciência (moderna ou antiga), que ainda não havia demonstrado, com a mesma potência de hoje, a sua importância. Cito um caso particular: Igreja Católica, no Brasil, promoveu um movimento de negação da Sociologia que se desenvolvia nos entre os anos de 1920 e 1940, tendo proposto uma alternativa de explicação dos fenômenos sociais, produzindo, inclusive, manuais escolares de “Sociologia Cristão” ou “Sociologia Católica” (CIGALES; 2017; BODART; CIGALES, 2020). Atualmente, a negação da Ciência, a despeito de seu desenvolvimento e benefícios trazidos à sociedade, se constitui em uma prática bem presente, sobretudo nas redes sociais online. Campanhas contra as vacinas, movimentos terraplanistas e que negam o aquecimento climático são exemplos amplamente conhecidos. Esses movimentos vem sendo denominados “negacionismo científico”.
Negaciocismo científico é hoje maior?
Se tomarmos negacionismo como todas as manifestações contrárias a Ciências, notaremos que, embora a sensação de maior presença dos negacionista seja uma realidade, o número de praticantes não é. Max Weber (1991) nos deixou estudos que evidenciaram o processo de racionalização da sociedade moderna, cunhando o conceito de “desencantamento do mundo” que fazia referência ao processo de suplantação paulatina das elucidações racionais sobre as explicações religiosas.
A sensação de maior presença dos negacionista dar-se, ao menos, por três fatores: a) desenvolvimento dos meios de comunicação onde todos são ativo (e não apenas espectadores); b) a colaboração da mídia tradicional e de representantes políticos na legitimidade de ideias que negam os conhecimentos científicos e; c) a educação de má qualidade que “semi-forma” os indivíduos.
A incoerência
Graças à própria Ciência, os negacionistas que antes estavam restritos à roda de conversas de amigos passaram a ter acesso ao uso de meios de comunicação de grande alcance (Facebook, YouTube, Instagram, Whatsapp, etc.). Isso potencializa seu alcance e amplia sua presença na vida cotidiana das pessoas.
Em passado recente o acesso aos meios de comunicação como instrumento de divulgação discursiva estava restrito à poucos, e seus usos, em geral, eram marcados por algum grau de profissionalização. Atualmente qualquer um pode ser produtor e propagador de discurso. Essa democratização do discurso, para além de seus benefícios, deu condições de divulgação de todo o tipo de informação, inclusive negacionista.
A grande mídia, visando audiência, vem cedendo espaço a qualquer discurso sob a justificativa de que estaria ouvindo os diversos lados. Com isso, absurdos vêm sendo também reproduzidos em programas de TV e de rádio. Em síntese, os meios de comunicação potencializam e legitimam os grupos (movimentos ou/e indivíduos) negacionistas.
Um dos mecanismos geradores
Outro fator que gera a sensação de maior presença dos negacionistas da Ciência está na sua relativa qualificação argumentativa. Se por um lado a educação de qualidade gera cidadãos dotados de conhecimentos qualificados, por outro o acesso a uma educação ruim gera indivíduos mal formados. Esses não chegam a compreender a importância da Ciência, mas aprenderam alguma coisa de lógica e discurso argumentativo (algo que as redes sociais online ensinam).
A negação da Ciência por parte de pessoas sem nenhuma escolaridade tem um impacto, em geral, menor sobre a opinião pública, bem como incomoda menos aos que prezam pela Ciência. Por outro lado, indivíduos “semi-formados” tendem a gerar, quando nega a Ciência, um incômodo maior, sobretudo se sua “formação” for suficiente para reproduzir com boa desenvoltura discursiva negações do que a Ciência produziu. Em geral o conhecimento produzido pela Ciência não é simples de compreender em sua totalidade, em contraposição às ideias negacionistas que são facilmente assimiladas e reproduzidas.
Em síntese, as negações da Ciência se “qualificaram” nos últimos anos. Algumas vezes se revestem de autoridade científica para negar o conhecimento científico; o uso de “cientistas” para legitimar ideias é recorrente, buscando muitas vezes se utilizar de falsos discursos racionais. O negacionismo é, muitas vezes, marcado por uma pseudo lógica/racionalidade que não suporta uma análise verdadeiramente crítica ou/e científica.
Como combater o negacionismo científico?
O combate ao negacionismo científico passa, necessariamente, por dois caminhos: a) pela qualificação da educação básica e; b) pelo diálogo entre comunidade científica e sociedade.
A qualificação da educação envolve um “letramento científico” que supere a transmissão de conhecimentos prontos, como meras informações. Como todos os indivíduos passam (ou deveriam) pela escola, esta se torna estratégica.
A ideia de que “está no livro, então é verdade” é colaborativa para o negacionismo, já que não abre espaço para pensar a produção do conhecimento, desconstruindo-o e reconstruindo-o. É necessário aprender como a Ciência procede, seus métodos, técnicas, teorias e conceitos. Uma educação científica é marcada pela preocupação de ensinar a pensar cientificamente, de questionar as aparências, de checar fontes e informações. Esse tipo de educação deve estar presente já no ensino básico. A transmissão de “conhecimentos prontos” retira suas bases do saber e pouco contribui para o pensamento crítico/reflexivo. Não se trata de formar nesse nível de ensino cientistas, mas agentes dotados de condições de compreender o que é ou não Ciência e entender a sua importância para a sociedade.
A comunidade científica precisa se preocupar cada vez mais em dialogar com a sociedade. Importa destacar que, dialogar não é impor conhecimento e nem é usar da “autoridade científica” para transmitir uma verdade. O diálogo envolve a escuta e a compreensão do outro como ponto de partida (o senso comum deve ser o ponto de partida mas não o ponto de chegada). Dialogar demanda transposição didática dos conhecimentos produzidos (didatização ou recontextualização) e a ampliação de espaços pedagógicos para acesso aos conhecimentos e procedimentos científicos. Nesse esforço, as Ciências Humanas, em especial a Ciência Educação, tem papel importante.
Referências bibliográficas
BODART, Cristiano das Neves; CIGALES, Marcelo. Conatus católico e o ensino de Sociologia no Brasil (1920-1940). In: BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia e de Filosofia escolar. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2020.
CASTRO, Ricardo Figueiredo de. O negacionismo do Holocausto: pseudo-história e história pública. Resgate, vol. 12, n.28, jul./dez. 2014.
CIGALES, Marcelo. Saiba o que é Sociologia Cristã. Blog Café com Sociologia. 2017.
WEBER, Max. Economia e Sociedade (vol. 1). Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1991.
Forma de citar este texto:
BODART, Cristiano das Neves. O que é negacionismo científico. Blog Café com Sociologia. set. 2020.
Nota
[1] Doutor em Sociologia (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e do Centro de Educação (CEDU) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Editor do Blog Café com Sociologia.
Veja também a live onde esse tema foi tratado:
a ciencia ficou ridicularizada porque na verdade só pode fazer ciencia aqueles que tem diploma, ou que tenha influencia…Afinal a ciencia nao pode ser do povo. e nem ser experimentada pelo povo e muito menos pensada pelo povo…se não é pra consultarmos livros, então é preciso tirá-los da escola e universidades…a despeito das vacinas, terra plana e aquecimento global a ciencia precisa estudar muito pra refutá-los….ambos existem contradições na própria ciencia.
Obrigado Rivaldo por suas provocações.
Embora existam contradições nos meios científicos, não serão quaisqueres ignorantes negacionistas, que sem conhecimentos de qualquer espécie, científicos ou não, podem rebater e até negar conceitos já mais que debatidos e experimententados ao longo do tempo. Existiram e ainda existem cientistas que têm classe e poder de argumentação, baseados nas suas diversas experiências. Mas ignorantes puros, não têm capacidade de debater conceitos, só baseados em falsos pressupostos, que apanham aqui e ali, em pseudo meios intelectuais, que às vezes só existem para descontectualizar o que já está mais que provado. Essa teoria, de que tudo pode ser posto em causa, não nos leva a lado nenhum. É própria dos neo-liberais, que ao longo do tempo , já demonstraram muita ignorância com suas teorias.
Armindo Correia