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Texto para reflexão

Estes textos oferecem uma visão diferenciada e interessante sobre vários acontecimentos cuja análise pode ser feita por meio da sociologia.

A reflexão é um importante instrumento intelectual para fazer com que o indivíduo consiga perceber a relação entre as estruturas sociais e as biografias individuais.

Na Sociologia sempre esteve presente a discussão entre indivíduo e sociedade (agencia vs. estrutura), chegando ao ponto de estudiosos mais radicais, principalmente nas primeiras décadas do século XX, ignorar os estudos que tinham seu foco no
indivíduo. Simmel, por exemplo, foi um sociólogo renegado por anos por esse motivo.  Bauman e May nos ajudam a entender em quais condições o indivíduo é objeto da Sociologia. Para esses autores “atores individuais tornam-se objeto das observações de estudos sociológicos à medida que são considerados participantes de uma rede de interdependência .

Desse modo os textos para reflexão ensejam uma análise de como nós nos relacionamos com nossa estrutura e proporcionam um contraponto discurso do discurso dominante.

  • Tarefa de casa como ação transformadora: 4 considerações

    Tarefa de casa como ação transformadora: 4 considerações

    Tarefa de casa: um conceito em disputa

    A tarefa de casa (TC), elemento recorrente do cotidiano escolar, ocupa um lugar ambivalente nas práticas pedagógicas: ora é valorizada como instrumento de reforço de aprendizagem, ora criticada por reproduzir modelos pedagógicos tradicionais descontextualizados. A presente discussão visa compreender seu papel a partir de uma abordagem crítica e dialética da educação, com fundamento na Psicologia Histórico-Cultural (THC) e na Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), perspectivas que enfatizam a formação do pensamento teórico como objetivo central da atividade educativa.

    Historicamente, a tarefa de casa foi concebida como meio de fixação do conteúdo escolar, estando intrinsecamente relacionada a práticas pedagógicas marcadas pela repetição e memorização. Essa concepção, segundo Nogueira (2002), ancora-se na tradição liberal da educação, que considera o sucesso escolar como mérito individual, desconsiderando as desigualdades de acesso ao saber sistematizado.

    Autores como Libâneo (1994) reconhecem que a TC pode cumprir papel didático relevante quando associada à consolidação do que é aprendido em sala de aula, mas alertam para os riscos de seu uso mecânico. Para Libâneo, a TC, entendida como extensão do período escolar, deve ser integrada ao projeto pedagógico da escola e não tratada como responsabilidade exclusiva do estudante ou de sua família.

    A crítica contemporânea ao uso irrefletido da tarefa de casa encontra amparo em estudos como o de Carvalho (2006), que discute sua função como instrumento de avaliação informal e extensão da escola para dentro do lar, muitas vezes transferindo às famílias responsabilidades que caberiam à instituição escolar. Ao analisar a TC sob essa ótica, evidencia-se que ela pode reproduzir desigualdades sociais ao exigir condições objetivas de estudo fora da escola que não estão ao alcance de todos.

    Contudo, a TC não precisa ser descartada. Ao contrário, pode ser ressignificada à luz de uma concepção pedagógica comprometida com o desenvolvimento integral dos sujeitos. A Teoria Histórico-Cultural, formulada por Vygotsky e aprofundada por Leontiev e Davidov, propõe compreender a aprendizagem como processo mediado socialmente, no qual a apropriação dos conteúdos científicos promove o desenvolvimento psíquico. Nessa perspectiva, o papel da TC não é o de reforçar conteúdos por memorização, mas o de integrar-se à atividade de estudo que mobiliza o estudante em direção à formação do pensamento teórico (Davidov, 1988).

    A articulação entre a THC e a PHC, ambas ancoradas no materialismo histórico-dialético, permite compreender a tarefa de casa como ação inserida no movimento histórico de transformação da realidade. Conforme Saviani (2011), a função clássica da escola é a transmissão sistemática do saber elaborado, e é nesse horizonte que a TC deve ser pensada: como parte do processo de apropriação da cultura acumulada pela humanidade, contribuindo para a humanização e emancipação dos estudantes.

    Nesse sentido, a tarefa de casa adquire novos contornos quando situada como parte da atividade de estudo, ou seja, não mais como instrumento de punição ou avaliação disfarçada, mas como atividade que, ao mobilizar o estudante para o conhecimento científico, contribui para o seu desenvolvimento. Para isso, no entanto, é necessário que ela esteja orientada por objetivos pedagógicos consistentes e contextualizados, que considerem as condições reais dos sujeitos implicados.

    Leontiev (1983) propôs uma teoria da atividade humana segundo a qual a ação educativa deve estar ancorada em motivos concretos e em necessidades reais, construídas historicamente. A tarefa de casa, sob essa ótica, só tem sentido se vinculada a um objetivo formativo e se puder ser integrada às experiências do estudante, conectando o saber escolar à vida cotidiana e à realidade social. Como afirmam Pasqualini e Abrantes (2016), é o professor, por meio de sua base orientadora, que deve mediar essa construção de sentido.

    Dessa forma, resgatar a tarefa de casa como ação de estudo significa romper com práticas mecânicas e instrumentalizadas e assumir uma concepção pedagógica comprometida com a formação plena dos sujeitos. A TC deve contribuir para o desenvolvimento de capacidades cognitivas superiores, como a abstração, a generalização e a reflexão crítica, elementos fundamentais para a constituição do pensamento teórico. Esse é o desafio que se coloca à prática pedagógica contemporânea.

    A tarefa de casa e a formação do pensamento teórico

    A ressignificação da tarefa de casa no contexto escolar exige compreender sua inserção na estrutura da atividade humana, conforme delineado por Leontiev (1983). Na Teoria da Atividade, as ações só adquirem pleno valor quando orientadas por um motivo concreto que, por sua vez, emerge de uma necessidade historicamente construída. Assim, uma tarefa apenas faz sentido quando conecta-se à realidade do sujeito que a realiza, possibilitando-lhe apropriar-se ativamente do conhecimento.

    Segundo Elkonin (1987), o desenvolvimento psíquico da criança passa por etapas determinadas pela atividade que domina cada fase. Na idade escolar, essa atividade é o estudo, cujo objetivo é a formação do pensamento teórico. Tal concepção é reforçada por Davidov (1988), que defende que a atividade de estudo permite a internalização de conceitos científicos, estruturando formas superiores de pensamento e ampliando as capacidades cognitivas do estudante.

    A tarefa de casa, ao integrar essa atividade, pode favorecer a autonomia intelectual, o senso de responsabilidade e a autorregulação dos estudos. Contudo, isso somente ocorre se a TC for pensada como ação de estudo com finalidade formativa e não como repetição automatizada. Asbahr (2016) ressalta que a TC é uma das ações que compõem a atividade de estudo, juntamente com a leitura, a escrita reflexiva e a realização de exercícios orientados, desde que seu objetivo seja promover a mediação entre o conteúdo e a realidade vivida pelo estudante.

    Em seu estudo, Asbahr (2014) discute o papel do sentido pessoal e da significação social na formação do motivo para a ação de estudo. O sentido não nasce do conteúdo em si, mas da relação que o estudante estabelece com ele, quando reconhece sua utilidade e pertinência em sua trajetória formativa. A TC, nesse contexto, passa a ser vista não como mera obrigação escolar, mas como possibilidade de transformação de si mesmo através do conhecimento.

    Davidov e Markova (1987) destacam que a atividade de estudo pressupõe a criação de motivos que impulsionem o estudante a realizar ações voltadas para a apropriação consciente do saber. É nesse movimento que a tarefa de casa pode atuar como produtora de motivos de aprendizagem, desde que planejada com intencionalidade pedagógica e articulada a um projeto educativo que vise ao desenvolvimento pleno do estudante.

    Ainda que a TC seja frequentemente criticada por reforçar desigualdades – quando aplicada de forma mecânica e descolada do contexto de vida dos alunos –, é preciso reconhecer seu potencial enquanto prática pedagógica significativa. Quando bem planejada e integrada à proposta curricular, pode mobilizar os estudantes para além da repetição de conteúdos, estimulando a curiosidade, o espírito investigativo e a autonomia na busca pelo conhecimento.

    No entanto, esse processo não ocorre espontaneamente. Como apontam Eidt e Duarte (2007), os motivos e interesses para a aprendizagem não são inatos, mas são socialmente construídos. A criança não nasce com desejo natural de estudar; ela precisa ser conduzida a descobrir o valor do conhecimento. Essa tarefa cabe à escola, que, por meio de sua mediação, deve transformar o conteúdo escolar em algo relevante para a formação do estudante.

    É nesse ponto que a figura do professor se torna central. Conforme enfatizam Pessoa e Leonardo (2020), a forma como o docente vivencia seu papel e organiza suas ações de ensino interfere diretamente na apropriação dos conteúdos escolares pelos estudantes. A TC, nesse contexto, deve ser fruto de uma prática docente reflexiva, intencional e sensível às particularidades dos alunos.

    Gasparin (2003) argumenta que o processo pedagógico deve partir de situações-problema que instiguem o raciocínio e mobilizem o estudante a buscar respostas. A tarefa de casa pode ser um meio privilegiado para propor tais situações, desde que seja planejada para promover o raciocínio autônomo, o pensamento abstrato e a capacidade de estabelecer relações entre o conhecimento e a vida.

    Isso significa que a TC precisa ir além da simples cópia de exercícios ou da repetição de fórmulas. Ela deve colocar o estudante em movimento intelectual, desafiá-lo a pensar, a investigar, a argumentar. Quando isso acontece, a tarefa de casa deixa de ser um fardo para se tornar uma ação significativa, capaz de promover a aprendizagem consciente e a formação de sujeitos críticos e criativos.

    A tarefa de casa deve ser, portanto, um instrumento a serviço da formação omnilateral do estudante. Segundo Saviani (2008), a educação escolar deve proporcionar o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos, articulando o saber sistematizado às necessidades reais dos sujeitos. A TC, nesse horizonte, pode contribuir para a formação do “cidadão histórico”, capaz de compreender e transformar sua realidade por meio do saber.

    Assim, ao ser concebida como ação de estudo, a tarefa de casa deixa de ser um simples apêndice do trabalho em sala de aula e passa a integrar o processo educativo em sua totalidade. Cabe ao professor, nesse processo, criar situações didáticas desafiadoras, mediadas por objetivos claros e vinculadas a projetos de formação crítica e emancipatória.

    Tarefa de casa e o desenvolvimento da autonomia e da auto-organização dos estudantes

    Quando a tarefa de casa é compreendida como ação integrante da atividade de estudo, seu potencial pedagógico se amplia, permitindo que ela atue diretamente na formação da autonomia e da auto-organização dos estudantes em relação aos seus estudos. Trata-se de uma mudança significativa na maneira como a escola compreende e utiliza esse recurso, deslocando-o de uma perspectiva tradicional, centrada na repetição e memorização, para uma abordagem que valoriza o protagonismo do estudante na apropriação do conhecimento.

    Leontiev (1983) afirma que toda ação humana é motivada por necessidades, que são historicamente construídas e socialmente mediadas. No caso da atividade de estudo, a necessidade de conhecer, de se apropriar do saber científico, não é espontânea: precisa ser formada no decorrer da escolarização. É nesse processo que a tarefa de casa pode se tornar um instrumento decisivo. Ao ser estruturada de maneira a suscitar o interesse, o questionamento e a reflexão, ela contribui para o desenvolvimento de motivos internos para o estudo, favorecendo a organização voluntária da conduta do estudante.

    A auto-organização para os estudos, como destaca Asbahr (2016), é uma das expressões mais importantes da maturidade escolar. Ao realizar tarefas de casa que exigem planejamento, levantamento de hipóteses, análise de informações e elaboração de conclusões, o estudante se exercita no controle de suas ações cognitivas, desenvolvendo a capacidade de gerenciar o próprio processo de aprendizagem. A autonomia, nesse caso, não é concebida como um dom inato, mas como um produto da ação pedagógica intencional.

    Essa concepção é reforçada por Pasqualini e Abrantes (2016), ao afirmarem que a atividade de estudo é resultado da atividade orientadora do professor. É ele quem deve criar situações educativas que provoquem o estudante a pensar, duvidar, investigar. A TC, como uma dessas situações, deve ser cuidadosamente planejada para desencadear processos mentais complexos e promover a internalização dos conteúdos escolares.

    No exemplo proposto por Feitosa e Barroco (2024), ao solicitar que estudantes meçam objetos do cotidiano para compreender conceitos de massa e comprimento, o professor não apenas propõe uma tarefa com significado prático, mas também incentiva o estudante a mobilizar operações mentais de comparação, análise e inferência. É nesse movimento que a TC adquire sentido e se transforma em ação de estudo.

    Ao reconhecer a tarefa de casa como portadora de potencial formativo, é necessário também superar a dicotomia entre conteúdo e experiência. A proposta não é instrumentalizar a vida cotidiana como conteúdo, nem reduzir o conhecimento científico a experiências subjetivas, mas sim integrar o saber sistematizado às experiências vividas pelo estudante. Isso exige do professor sensibilidade didática e domínio teórico para articular o conteúdo ao contexto sociocultural dos alunos, promovendo uma aprendizagem significativa.

    Duarte (2004) lembra que o processo educativo, na perspectiva histórico-cultural, ocorre por meio da internalização de significações sociais, que são produzidas coletivamente ao longo da história. A tarefa de casa, nesse sentido, deve possibilitar que o estudante se aproprie dessas significações, compreendendo o conteúdo como uma construção humana e, portanto, passível de ser recriada, interpretada e transformada.

    Ao se apropriar do conhecimento por meio da TC, o estudante amplia sua capacidade de abstração e generalização, habilidades fundamentais para o pensamento teórico. Esse tipo de pensamento, segundo Davidov (1988), é caracterizado pela capacidade de compreender a essência dos fenômenos, de ir além da aparência imediata e de formular conceitos universais a partir de dados particulares. A TC, ao promover a mobilização do pensamento teórico, cumpre uma função fundamental na escolarização: a formação de sujeitos intelectualmente autônomos.

    Por outro lado, não se pode desconsiderar que a tarefa de casa também pode produzir efeitos negativos quando utilizada de forma inadequada. O uso excessivo, descontextualizado e punitivo da TC pode gerar sentimentos de ansiedade, desmotivação e fracasso escolar. Como destacam Soares (2017) e Carvalho (2006), muitas vezes a TC é vivida pelos estudantes como um fardo, uma obrigação mecânica e pouco significativa. Nesses casos, ela deixa de cumprir sua função pedagógica e contribui para o afastamento do estudante da aprendizagem.

    Por isso, o planejamento da TC deve considerar não apenas os objetivos pedagógicos, mas também as condições concretas dos estudantes: tempo disponível, ambiente de estudo, apoio familiar, acesso a recursos didáticos. A democratização do acesso ao saber pressupõe o reconhecimento das desigualdades sociais e a adoção de práticas pedagógicas que busquem superá-las, e não acentuá-las.

    Nesse contexto, é relevante pensar na articulação entre família e escola. Embora a tarefa de casa seja uma responsabilidade do estudante, o envolvimento da família pode contribuir para a criação de um ambiente favorável ao estudo, desde que esse envolvimento não reproduza a lógica meritocrática da responsabilização individual. Como afirma Carvalho (2004), é papel da escola orientar as famílias quanto à função formativa da TC, fortalecendo o vínculo entre os sujeitos que compartilham o processo educativo.

    Nogueira (2002) adverte que, para que a tarefa de casa deixe de ser uma violência consentida e passe a ser uma prática pedagógica significativa, é necessário que ela esteja orientada por um projeto educativo coerente, que reconheça a centralidade do ensino na formação humana. A TC não é, por si só, boa ou má: sua qualidade pedagógica depende da intencionalidade com que é planejada e da mediação com que é realizada.

    Ao final deste bloco, reforça-se que a tarefa de casa, compreendida como ação de estudo, pode atuar como fator de desenvolvimento da autonomia intelectual e da auto-organização dos estudantes, desde que esteja alinhada aos princípios da educação emancipadora. Cabe à escola, e em especial ao professor, construir caminhos que possibilitem à TC cumprir esse papel, contribuindo para a formação de sujeitos críticos, autônomos e capazes de se apropriar do conhecimento como instrumento de transformação da realidade.

    O papel do professor na mediação da tarefa de casa como ação formadora

    Para que a tarefa de casa desempenhe seu papel formativo e se configure como ação de estudo, é indispensável que o professor assuma uma função mediadora ativa. Na perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica, conforme propõe Saviani (2011), o ensino não é apenas um meio para a transmissão de conteúdos, mas um processo intencional de mediação entre o conhecimento sistematizado e o sujeito que o apreende. Nesse processo, a tarefa de casa não é um apêndice do trabalho pedagógico, mas uma extensão orientada da atividade docente, devendo estar articulada ao planejamento didático, aos objetivos da aprendizagem e ao contexto social do educando.

    A mediação do professor na construção de ações de estudo implica considerar tanto o conteúdo quanto a forma como ele é proposto. Isso significa que a TC deve ser elaborada com clareza de objetivos, com atenção às possibilidades concretas dos estudantes, e com estratégias que incentivem o engajamento crítico. Conforme Pasqualini e Eidt (2016), a ação pedagógica deve considerar a etapa de desenvolvimento da criança, respeitando sua capacidade de operar com o simbólico e o abstrato, sem reduzir o conteúdo à experiência imediata, mas mediando a relação entre o concreto e o conceito científico.

    Ao elaborar uma tarefa de casa, o professor precisa considerar os elementos centrais da estrutura da atividade: o motivo, a ação e a operação (Leontiev, 1983). A TC deve partir de um motivo real, socialmente construído, que desperte no estudante o interesse pela aprendizagem. Esse motivo é transformado em ação, que deve ter um objetivo definido – por exemplo, compreender um conceito, resolver um problema, interpretar uma situação –, e, por fim, deve apresentar operações adequadas, isto é, meios coerentes com os objetivos e as condições dos estudantes.

    Essa estrutura permite ao professor organizar tarefas que vão além da simples repetição e memorização. A proposta pode ser instigante, desafiadora e significativa. Por exemplo, ao trabalhar o conceito de desigualdade social em uma aula de Sociologia, o professor pode propor como tarefa de casa que o estudante entreviste familiares ou vizinhos sobre suas experiências com acesso à saúde ou educação, sistematize as respostas e relacione os dados a conceitos vistos em sala. Essa tarefa mobiliza habilidades cognitivas e sociais, articula teoria e prática e promove o engajamento com o conteúdo.

    Como bem observa Gasparin (2003), o processo pedagógico deve partir de situações-problema que instiguem o pensamento e conduzam o estudante à elaboração de sínteses. A tarefa de casa, nesse sentido, pode ser uma poderosa aliada na problematização da realidade, desde que estruturada para provocar o pensamento crítico e fomentar o diálogo com os conteúdos científicos.

    Além disso, é fundamental que o professor valorize o retorno da tarefa de casa em sala de aula. A devolutiva não deve ser apenas correção de erros, mas momento de sistematização do conhecimento, de escuta ativa e de diálogo entre os estudantes e os saberes construídos. Como apontam Davidov e Markova (1987), a aprendizagem não se encerra na realização da ação, mas no retorno reflexivo sobre ela. Assim, a correção e discussão das tarefas devem ser compreendidas como parte constitutiva da atividade de estudo.

    Outro aspecto relevante da mediação docente é o acompanhamento contínuo. A tarefa de casa não deve ser uma atividade delegada ao acaso, mas acompanhada em seu processo e resultado. Professores atentos ao percurso de seus estudantes conseguem identificar dificuldades, propor intervenções oportunas e adaptar suas estratégias pedagógicas. Isso exige planejamento, sensibilidade e compromisso com a aprendizagem real e significativa.

    A concepção da tarefa de casa como ação de estudo também desafia o professor a refletir sobre sua própria formação. Conforme defende Martins (2013), a formação docente precisa estar ancorada em fundamentos epistemológicos e filosóficos coerentes com uma educação transformadora. O domínio técnico-pedagógico, ainda que necessário, não basta. É preciso compreender a natureza do conhecimento, os processos de desenvolvimento psíquico e as implicações sociais do trabalho educativo.

    A proposta de uma tarefa de casa significativa exige do professor o domínio da ciência que ensina e também uma leitura crítica da realidade dos seus alunos. O conhecimento pedagógico deve ser articulado ao conhecimento do mundo vivido pelos estudantes, criando pontes entre o conteúdo e a realidade concreta. Isso requer um professor pesquisador, reflexivo, criativo e comprometido com a formação de sujeitos capazes de transformar sua realidade.

    Essa mediação, conforme discutem Pessoa e Leonardo (2020), é também afetiva e simbólica. O sentido que o estudante atribui à tarefa depende, em grande medida, da relação que estabelece com o professor. Se este valoriza o esforço, reconhece o progresso e incentiva o pensamento autônomo, cria condições para que o estudante desenvolva um sentido pessoal positivo em relação ao estudo. Esse aspecto, muitas vezes negligenciado, é essencial para que a tarefa de casa se torne parte da formação integral do sujeito.

    A escola, enquanto instituição social, tem o dever de criar essas condições, mas é no cotidiano da sala de aula que se concretizam ou se negam essas possibilidades. A tarefa de casa, nesse contexto, não pode ser pensada de forma isolada, mas deve estar inserida em um projeto educativo mais amplo, que articule ensino, pesquisa e extensão, conforme os princípios da pedagogia crítica.

    A criação de ambientes colaborativos também pode potencializar o uso da tarefa de casa como ação de estudo. Propostas como projetos de pesquisa, portfólios, diários de aprendizagem e fóruns virtuais possibilitam que a TC extrapole os limites da disciplina e da sala de aula, promovendo o trabalho em equipe, o diálogo entre saberes e o protagonismo estudantil. Esses dispositivos, aliados à intencionalidade pedagógica, transformam a TC em ação de formação integral.

    Ao assumir essa postura, o professor contribui não apenas para o desempenho escolar de seus estudantes, mas para sua constituição enquanto sujeitos históricos, críticos e criadores. A TC deixa de ser um simples dever e se transforma em um espaço-tempo de exercício da liberdade responsável, do pensar autônomo e da construção da identidade intelectual.

    Considerações finais

    A tarefa de casa, frequentemente banalizada nas práticas escolares, revela-se, à luz da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica, um poderoso instrumento formativo, desde que compreendida e estruturada como uma ação da atividade de estudo. Mais do que mero exercício de fixação, ela deve ser pensada como parte do processo intencional de apropriação do saber sistematizado, promovendo o desenvolvimento das capacidades intelectuais superiores e contribuindo para a formação de sujeitos críticos, autônomos e socialmente conscientes.

    A trajetória histórica da tarefa de casa mostra como suas formas e sentidos foram moldados por diferentes projetos pedagógicos e interesses ideológicos. Da sua origem no contexto da pedagogia tradicional, centrada na memorização e na disciplina, até seu quase abandono pelos defensores da Escola Nova, a TC oscilou entre ser vilã e redentora. No entanto, conforme argumenta Saviani (2011), a superação dessas polarizações exige uma pedagogia crítica, que compreenda a educação como processo de humanização e não como simples transmissão de conteúdos ou espontaneísmo metodológico.

    Feitosa e Barroco (2024) mostram que a TC, ao ser planejada com base na atividade de estudo, pode desempenhar papel central no desenvolvimento psíquico do estudante. Nesse contexto, é papel do professor propor tarefas que tenham sentido pessoal e significação social, isto é, que dialoguem com os interesses e experiências dos estudantes, mas que também promovam sua inserção crítica no mundo da cultura e da ciência. Essa articulação entre a vida cotidiana e o saber sistematizado é essencial para que o conhecimento escolar se torne elemento constitutivo da identidade dos sujeitos aprendentes.

    A formação da autonomia e da auto-organização dos estudantes não é um processo espontâneo, tampouco um dom natural. É, como afirmam Duarte (2004) e Asbahr (2016), resultado de uma prática pedagógica intencional, mediada, planejada, sustentada por objetivos claros e fundamentos teóricos consistentes. A TC, nesse cenário, contribui para que o estudante construa relações conscientes com o saber, mobilize estratégias cognitivas complexas e desenvolva o pensamento teórico, conforme defendido por Davidov (1988).

    Todavia, para que a tarefa de casa cumpra essa função, é necessário romper com práticas escolares fragmentadas, burocráticas e desprovidas de reflexão pedagógica. A TC precisa ser reconfigurada como parte do currículo escolar, planejada coletivamente, articulada às diretrizes de ensino e ao projeto político-pedagógico da escola. Mais do que isso, deve ser assumida como expressão do compromisso ético e político da escola com a formação omnilateral do ser humano.

    Essa reconfiguração exige também repensar a formação docente. Como lembra Martins (2013), não basta capacitar o professor para aplicar técnicas; é preciso formar educadores capazes de compreender o papel social da escola, o significado do conhecimento e as dinâmicas que constituem o desenvolvimento humano. Uma formação ancorada no materialismo histórico-dialético, que articule teoria e prática, é condição para que o professor compreenda a tarefa de casa como mais do que um instrumento didático: como uma ação político-pedagógica de transformação da realidade.

    Conclui-se, portanto, que a tarefa de casa, longe de ser um resquício arcaico ou um fardo imposto aos estudantes, pode ser ressignificada como instrumento de emancipação intelectual, desde que situada no interior de um projeto educativo crítico e transformador. Sua reinvenção exige compromisso com o ensino, respeito à infância e à adolescência, compreensão do desenvolvimento humano e, sobretudo, fé na capacidade dos estudantes de apropriar-se do saber e transformá-lo em prática consciente de liberdade.

    Referências bibliográficas

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  • Jornada kafkiana e a docência

    Jornada kafkiana e a docência

    Sou um grande apreciador da literatura do tcheco Franz Kafka. Sempre li as obras desse escritor com muita dedicação e interesse; no entanto, ingressei em uma jornada que me afastou dessas leituras por alguns anos. Tornei-me professor. Mal sabia eu que tal ofício me conduziria à minha mais alucinante jornada kafkiana. Como? Descubra neste texto.

    Por Roniel Sampaio-Silva

    Tive o privilégio de conhecer “A Metamorfose” ainda durante a licenciatura. Fiquei maravilhado e chocado com o revés na vida do operário Gregor Samsa, que se dedicara tanto ao trabalho que se viu metamorfoseado em um inseto gigante. Nesse mesmo foco narrativo enigmático, também me deparei com a angústia de Josef K na obra “O Processo”. Na ocasião, o cidadão, protagonista da obra, viu-se processado por uma tecnocracia opressora tanto irracional quanto poderosa.

    Após 12 anos na carreira docente, voltei a ler o autor e me reconheci como um singular personagem kafkiano no limbo entre essas duas obras. Na obra cujo protagonista é Samsa, pude constatar como a precarização do trabalho docente pode ser utilizada para desumanizar, revelando a face mais abjeta de como a sociedade pode nos enxergar. Assim, a alegoria de Kafka se encarna no proletariado docente, o qual percebe a real forma como o resto do mundo social o vê. Tão logo esse sujeito proletário toma consciência do projeto de sociedade para o qual foi cuidadosamente colocado, passa a ser combatido como um ser que precisa ser eliminado. Afinal, a consciência de classe é vista como monstruosidade.

    Como se não bastasse tamanha inquietude, a atmosfera enigmática completa o sofrimento do docente, cujos dramas remontam à aventura kafkiana. O pesadelo de Josef na obra “O Processo” se apequena diante da vastidão tecnocrática na qual está subordinado o professor. Essa instituição tecnocrática, onipresente, onipotente e onisciente, está acima de qualquer razoabilidade, bom senso ou sentido pedagógico fundamentado. O processo de criatividade, inovação e criticidade dá lugar a um exaustivo turbilhão de tarefas enfadonhas, quantitativistas, arbitrárias e desmobilizadoras. Tais normativas são contraditórias, ambivalentes e são abençoadas enigmaticamente pelos sacerdotes da interpretação das escrituras legais. Essa tarefa tem por finalidade valer-se do tecnicismo para sobrepor uma vontade política travestida de pseudo-legalidade. Essa vontade, que não pode ser expressamente dita, precisa ser enigmática para que se cumpra dogmaticamente, ocultando assim o sujeito interessado no comando. Ordens processuais redundantes, conflitantes, tão urgentes, intensas e cansativas que apenas reproduzem ordens desumanizadoras.

    Por fim, o objetivo da tecnocracia à qual estão submetidos os docentes é produzir e reproduzir sujeitos tão kafkianos à sua imagem e semelhança de quem os programou de acordo com sua vontade política. Portanto, talvez nossos legisladores e gestores sejam mais fãs de Kafka do que eu, atribuindo a uma categoria inteira a tarefa de perpetuar a jornada kafkiana.

    Referências:

    KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1985.

    KAFKA, Franz. O Processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1988.

  • O mundo ainda não acabou, nós é que acabamos

    O mundo ainda não acabou, nós é que acabamos

    O mundo ainda não acabou, nós é que acabamos

    Estamos diante de uma série de fatos históricos: guerras, ingerências econômicas, desigualdades sociais, hecatombes ambientais. Os telejornais me dizem que o mundo vai acabar nas próximas décadas e a mídia instalou um grande relógio do juízo final. Todos nós olhamos para ele e, ocasionalmente, nos distraímos com os bobos das cortes das redes sociais.

    Por Roniel Sampaio-Silva

    Uma parte dos intelectuais diz que a história acabou e que não há nada mais a se fazer. Eles dizem que não há alternativa e que a história humana está no fim da linaha. Criticam a materialidade e o determinismo de tal fim enquanto devaneiam acerca dos detalhes do Ragnarok. Suas etnografias fatalistas são cheias de adjetivos “metatransbiônicos”. Suas omissões são pautadas ou no idealismo delirante ou em uma indiferença idealista de uma ciência supostamente neutra. Pois eu lhes digo, a história não acabou e tampouco o mundo, ainda.

    O mundo ainda não acabou. Nós é que acabamos.

    Nós acabamos enquanto projeto civilizatório porque o nosso modo econômico e de vida não é –  e nunca foi – compatível com a civilização. Muitos dos modelos civilizatórios sucumbiram diante dos incontáveis genocídios. O veneno foi apresentado como remédio. Nós falhamos miseravelmente e ainda temos chance de correção, embora o mundo tente dizer que não temos alternativa. O capital segue impune enquanto uma dúzia de bilionários brincam de roleta russa com o mundo cujas apostagem dobram dia após dia. Essa dúzia de pessoas rifam vidas com tragédias as quais poderiam ser evitadas.  Tais pessoas promovem fome,  guerra e desigualdade. Eles inspiram os burocratas, que por sua vez, se regozijam com o aumento da produtividade e ritmo da nossa própria destruição. O sentido teleológico do mundo tem sido “caminhar para a autodestruição”. Estes burocratas amolam os chicotes para se certificar que todos acelerem rumo ao precipício. Os burocratas ignoram o abismo para o qual estamos correndo, todavia se extasiam com  gráficos da velocidade, aceleração e rimo dos passos rumo ao desfiladeiro do fim.

    Esta humanidade acabou, precisamos inventar uma nova

    A humanidade deixou de sonhar. Precisamos inventar uma humanidade que sonhe, que acredite em um mundo melhor. Que faça dessa crença um horizonte para mudar radicalmente o modo que vivemos.  Resgatemos a diversidade de civilizações exterminadas. Elas nos dão  pistas de como agir. Quem sabe assim, temos teremos alguma chance de protelar o juízo final para pensar melhor no rumo que devemos tomar enquanto espécie. Precisamos resgatar urgentemente uma humanidade que partilhe coletivamente das conquistas materiais e imateriais da humanidade, que emancipe o trabalho, que incentive o ócio e a criatividade, que conviva de forma respeitosa com a natureza porque percebe que faz parte dela. Quero dizer a você que não você não está sozinho e que estamos trabalhando na construção dessa nova humanidade. O mundo não acabou, nós acabamos e estamos criando uma nova humanidade.

  • Como escrever uma tese certa e vencer

    Como escrever uma tese certa e vencer

    Como escrever uma tese certa e vencer?  Um texto publicado em 1999 no jornal O Globo nos parece ser bastante interessante para (re)pensarmos a escrita acadêmica. José Murilo de Carvalho ao apresentar “dicas” de como ser bem sucedido na escrita da tese acaba, assim parece, realizando um crítica inteligente a esse “modus operandi” de produção da escrita científica. Segue o texto:
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    Como escrever uma tese?
    Como escrever a tese certa e vencer
    José Murilo de Carvalho 
    Ter que fazer uma tese de doutoramento na incerteza de como será recebida e na insegurança quanto ao futuro da carreira é experiência traumática. Quando passei por ela, gostaria de ter tido alguma ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira, a um hipotético doutorando, ou doutoranda, sobretudo das áreas de humanidades e ciências sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o caminho das pedras.
    Dois pontos importantes na feitura da tese são as citações e o vocabulário. Você será identificado, classificado e avaliado de acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar os autores e usar os termos corretos, estará a meio caminho do clube. Caso contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode vir tarde demais. Começo com os autores. A regra no Brasil foi e continua sendo: cite sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. É preciso identificar os autores do momento. Eles serão sempre estrangeiros. Atualmente, a preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Cito alguns, lembrando que a lista é fluida. Entre os franceses, estão no alto Chartier, Ricoeur, Lacan, Derrida, Deleuze, Lefort. Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará vinte anos atrasado, cheirará a naftalina. Se for para citar um marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F. Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação obrigatória. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas. Dentre os ingleses, Hobsbawm, P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis. Robert Dahl ainda é aposta segura, Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo para R. Darnton e Hayden White em história. Não perca tempo com latino-americanos (ou africanos, asiáticos, etc.). Você conseguirá apenas parecer um tanto exótico. Da Península Ibérica, só Boaventura de Souza Santos, e para a turma de direito. Brasileiros não ajudarão muito mas também não causarão estrago, se bem escolhidos. Um autor brasileiro, no entanto, nunca poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital. Você poderá ser aprovado na defesa da tese mas não terá seu apoio para negociar a publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele, ou ela. Se o orientador ou orientadora não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula, uma conferência, qualquer coisa.
    O vocabulário é a outra peça chave. Uma palavra correta e você será logo bem visto. Uma palavra errada e você será esnobado. Como no caso dos autores, no entanto, é preciso descobrir os termos do dia. No momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure encaixar em seu texto uma ou mais das seguintes palavras: olhar (as pessoas não vêem, opinam, comentam, analisam: elas lançam um olhar); descentrar (descentre sobretudo o Estado e o sujeito); desconstruir (desconstrua tudo); resgate (resgate também tudo o que for possível, história, memória, cultura, deus e o diabo, mesmo que seja para desconstruir depois); polissêmico (nada de ‘mono’); outro, diferença, alteridade (é a diferença erudita), multiculturalismo (isto é básico: tudo é diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar depois, melhor); discurso, fala, escrita, dicção (os autores teóricos produzem discurso, historiadores fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário (tudo é imaginado, inclusive a imaginação); cotidiano (você fará sucesso se escolher como objeto de estudo algum aspecto novo do cotidiano, por exemplo, a história da depilação feminina); etnia e gênero (essenciais para ficar bem com afro-brasileiros e mulheres); povos (sempre no plural, “os povos da floresta”, “os povos da rua”, no singular caiu de moda, lembra o populismo dos anos 60, só o Brizola usa); cidadania (personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo, reivindicou, etc.). Para maior efeito, tente combinar duas ou mais dessas palavras. Resgate a diferença. Melhor ainda: resgate o olhar do outro. Atinja a perfeição: desconstrua, com novo olhar, os discursos negadores do multiculturalismo. E assim por diante.
    Como no caso dos autores, certas palavras comprometem. Você parecerá démodé se falar em classe social, modo de produção, infra-estrutura, camponês, burguesia, nacionalismo. Em história, se mencionar descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma.
    Além dos autores e do vocabulário, é preciso ainda aprender a escrever como um intelectual acadêmico (note que acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à universidade). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de jornalistas ou outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não pode ser entendido por qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do editor S.T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por outra maior: não é ‘crítica’, mas ‘criticismo’. Segunda: nunca use só uma palavra se puder usar duas ou mais: ‘é provável’ deve ser substituído por ‘a evidência disponível sugere não ser improvável’. Terceira: nunca diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira complexa. Você não passará de um mero jornalista se disser: ‘os mendigos devem ter seus direitos respeitados’. Mas se revelará um autêntico cientista social se escrever: ‘o discurso multicultural, com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da rua’.
    Boa sorte.
    Originalmente publicado em O Globo com o título “Como escrever a tese certa e vencer”, em 16/12/1999, p.7.
  • Interdisciplinaridade e o cão sem raça definida

    Interdisciplinaridade e o cão sem raça definida

    Interdisciplinaridade é a integração de ideias, métodos e teorias de diferentes disciplinas ou campos de conhecimento para a compreensão de problemas complexos ou questões amplas. Ela envolve a colaboração entre profissionais de diferentes áreas de especialização e a utilização de uma ampla variedade de perspectivas e abordagens para abordar um problema ou questão. A interdisciplinaridade pode ser usada em muitos contextos, incluindo a pesquisa, a educação e a resolução de problemas práticos na vida cotidiana. Para refletir sobre essa questão, elaborei uma pequena crônica sobre o assunto.
    Por Roniel Sampaio Silva
    vira lata inteligente
    Certa feita, um cão rumava às margens das convenções. Este era determinado, astuto e experiente, porém o canino tinha uma trajetória, para muitos, conturbada. Tal flâneur – filho de pastores alemães premiados e conhecidos – era desdenhado tão somente porque não se reconhecia nem como Pastor Alemão, nem Fila Brasileira, nem Terrier ou Chihuahua. Embora não tivesse aberto mão da referência de seus pais, buscou reconhecer-se como cão. O seu cosmopolitismo não lhe deixava isolar-se em si ou entre o exotismo. Era muito solícito e conversava com todos independentemente de raça ou matilha, entretanto, os demais cães – territorialistas – o viam com desconfiança e ameaça. Sempre que seus espaços eram visitados pelo andarilho, este era prontamente enxotado sob alegação de não pertencer àquela matilha.
    Embora suas raízes fossem de pastor alemão, ele poderia transcendê-las de maneira a comungar de várias matilhas simultaneamente à medida que peregrinava. Indubitavelmente sua felicidade estava no nomadismo. Afinal, ser pastor alemão implicava numa religião e uma nacionalidade. Ele queria apenas ser um cão e trilhar seu caminho ao caminhar. Inventar e reinventar percepções e habilidades: caçar, pescar, correr e farejar sem especializar-se na habilidade da raça, cujo competência era pautada no crivo disciplinar da matilha.
    Desse modo, para cada necessidade e vontade far-se-ia uma visita para cada matilha diferente.Paradoxalmente, na medida em que ele passeava e sentia-se integrantes as elas mas estas o boicotavam. Sua condição de vida lhe tendencia a reconhecer-se “Canino” em condição de vida simular aos outros. Ele reconhecia as diferenças e também o elo canino que os caracterizava.
    No mundo havia muitas matilhas, cada uma com sua singularidade. Tais matilhas dedicavam-se demasiado tempo ao combate entre si uma vez que não se reconheciam mais como cães, reconheciam-se tão somente como dálmata, labrador etc.
    O Fato do canino não se associar a uma matilha o fez pagar o preço do ostracismo. Afinal, não existia maior estigma do que ser conhecido como “CSRD”: Cão Sem Raça Definida. Lamentavelmente, foi assim que o “Canino” ficou conhecido. Embora ele quisesse existencialmente ser o mais cosmopolita dos cães, passear entre todas as matilhas para entranhar experiências, habilidades e impressões sob os vários pontos de vista, o preço pago por ele foi ficar à margem nas taxonomias de modo que acabou por ser categorizado pelo afã dos outros como “cão sem raça definida” ou vira-latas por não se enquadrar em nenhuma raça. Interdisciplinaridade.
    Tamanho foi o estigma que ele passou a ser o perseguido pela inquisidora carrocinha, cujo trabalho fatídico se resumia a capturá-lo, categorizá-lo, encarcerá-lo junto aos demais cães de outras raças na esperança que um dia ele se fidelizasse restritamente à este grupo. Num desses momentos de perseguição, a leitura das contradições da realidade fez o cãozinho perceber que havia forças externas as quais subjugavam os cães…
    O cão se reafirmou cão pela sua labuta, diferente dos lobos, dos homens e dos cordeiros. Ele entendia que era diferente dos outros animais, mas ao mesmo tempo semelhante aos caninos. A suposta “vagabuntagem” lhe fez entender a totalidade da relação entre homens e cães.
    Tanto mais os cães se fechavam em si, tanto mais eram presas fáceis para seus algozes até então ocultos.
    Ao que parece, o cãozinho ainda sob ameaça de prisão, alguém está disposto a adotá-lo? Adore a interdisciplinaridade
  • Sobre ser professor: Doze posturas essenciais para ensinar

    Sobre ser professor: Doze posturas essenciais para ensinar

    Sobre ser professor traz uma retrospectiva pessoal da qual me orgulho. Minha experiência de vida e leituras no campo da educação me ajudaram a refletir sobre minha prática e pensar em alguns tópicos que podem ser aplicados para refletir sobre ser professor cujo magistério inspira.  Algumas das experiências foram conquistadas com muita leitura e reflexão e outras foi observando outros colegas a partir de toda minha tragetória acadêmica.

    Por Roniel Sampaio Silva

    Para ensinar  o professor deve ter um perfil diferenciado para ser um ótimo professor. Engajamento, curiosidade e dedicação são essenciais para transformar teorias, leituras em aprendizados e experiências de ensino marcantes.

    1- Domínio das teorias fundamentais
    Um bom professor de qualquer área precisa conhecer muito bem os clássicos do campo de conhecimento. No caso de nós da Sociologia deve ser Durkheim, Marx e Weber. Eles são bases teóricas fundamentais para compreender como se deu o desenvolvimento do pensamento do nosso campo de estudo.

    2- Didática
    Saber o conteúdo não é o suficiente para ser um bom professor. É necessário tornar o assunto compreensível e claro. O grande desafio do professor de sociologia é transpor os resultados de uma disciplina tradicionalmente “academicista” em uma “saber sábio”, primando pelo rigor teórico e ao mesmo tempo proporcionar a compreensão do assunto. Isso requer planejamento tendo em vista que um exemplo mal dado ou uma explicação rebuscada e não-linear pode comprometer o aprendizado.

    3- Contextualização
    Relacionar os conteúdos aprendidos com os eventos históricos do país e do mundo fortalecem o aprendizado e fomenta mais interesse para aprender a pensar sociologicamente. Relacionar com outras áreas do conhecimento Também potencializa a experiência de aprendizado.

    4- Posicionamento
    Para o professor posicionar-se é importante. Isso encoraja outros alunos a manifestarem suas visões e refletir sobre elas.  Não de uma maneira cegamente militante, mas de uma forma crítica e flexível. Primeiro porque o posicionamento é uma forma honesta de mostrar aos alunos que o professor tem suas preferências e isso deve ser considerado pelo público para um filtro mais adequado. Segundo porque posicionar-se problematiza pontos de vista e fomentam um debate que enriquece e enaltece os envolvidos.

    5- Respeito aos pontos de vista
    Entender que existem pontos de vistas diferentes pode ajudar a enxergar vários cosmovisões diferentes de uma forma ampla é fundamental. É também fundamentalmente necessário que o professor tenha a compreensão que muitos dos estudantes são de realidades e têm referências distintas as quais lhes dão leituras e percepções diferentes. No bojo dessa dialética, o professor deve mostrar como seu campo de conhecimento pode contribuir para visualizar os problemas de forma mais ampla, sistemática e crítica.

    6- Disposição para buscar conhecer o que discorda
    O debate faz parte da natureza das ciências. Nas ciências sociais o debate é ainda mais intenso porque se relaciona com percepções e leituras de leigos e especialistas. Por essa razão, o debate faz parte do crescimento profissional do professor e para que haja um constante desenvolvimento a zona de conforto do fortalecimento de uma teoria predileta atrapalha. Portanto, torna-se fundamental que o professor de sociologia leia também o que ele discorda a fim de enriquecer seu repertório e conhecer outras leituras sobre a realidade a qual está acostumado.

    7- Gostar de ler
    Esse hábito não é apenas relativo a professores de sociologia, mas para todo e qualquer pessoa que deseja ser um bom profissional. Ler diariamente ajuda a expandir o repertório acadêmico tão necessário para ensinar bem qualquer assunto.

    8- Gostar de escrever
    Essa é uma das grandes vantagens de um bom professor de sociologia. Escrever ajuda a organizar ideias e exercita a imaginação e criatividade, fundamentais para qualquer atividade intelectual. Ler e escrever são habilidades relacionadas as quais potencializam o desenvolvimento intelectual.

    9- Criatividade
    “Criatividade é a inteligência brincando”. Quando o repertório de teorias, conceitos e categorias é marcante, o professor sente mais necessidade de compartilhar o que aprendeu de maneira criativa. A criatividade é a necessidade de fazer uma aula diferente, produtiva e inovadora. Isso além de motivar os alunos motiva o professor e dá um sentido diferenciado a sua prática.

    10- Curiosidade
    A curiosidade é uma vantagem não apenas para o excelente professor de sociologia, como também para qualquer profissional das ciências. A curiosidade é a força que move o indivíduo a buscar fazer perguntas cujas respostas se transformam em repertórios os quais serão debatidos e aplicados em sala de aula.

    11- Domínio do método científico
    A sociologia é uma ciência e como tal demanda uma problematização científica dos seus resultados. Para tanto, é necessário que as discussões incentivem os alunos a buscarem interpretação da realidade para validar os que está sendo ensinado. Tal validação não deve ser subjetiva, deve seguir o crivo do método científico: comparar e analisar dados, avaliar métodos de levantamento de dados a fim de ir além das percepções subjetivas.

    12- Valorização de experiências de vida
    Compreender que as nossas biografias pessoais interagem com a de outros indivíduos e também com a estrutura social proporcionam uma campo fértil para o desenvolvimento da imaginação sociológica. Neste sentido, as biografias podem e devem ser objeto de análise da sociologia, observando o método científico e buscando contextualizar o que está sendo aprendido não apenas de maneira geral, mas também a partir da vivência de cada sujeito social. Enfim, colocar fomentar a autonomia intelectual dos alunos para que eles consigam fazer boas leituras da realidade social.

  • Orgulho de ser hétero ou ser branco? Reflexão sobre do orgulho de ser.

    Orgulho de ser hétero ou ser branco? Reflexão sobre do orgulho de ser.

    Você tem orgulho de ser o que é? Ao longo da minha vida já fui questionado se eu sentia orgulho de ser hétero e branco. Algumas vezes a pergunta foi verdadeiramente curiosa e em outros em tom de provocação. As perguntas em tom de provocação partiam de pessoas que queria contrapor o orgulho de ser negro e ser LGBTQI+. Eles me faziam a provocação, se eles podem sentir orgulho, eu também posso. Será? Este texto vai refletir sobre os sentidos do orgulho de ser, especialmente no recorte racial e de orientação sexual.

    Falsa simetria

    Inicialmente vamos tentar entender de onde vem a necessidade das pessoas brancas e heterossexuais sobre esse contraponto ao orgulho de ser. Segundo Bandeira & Seffner (2013) “Os modos de construção das masculinidades no Brasil guardam íntima conexão com o futebol”. Nesse sentido, a cultura futebolística do brasileiro faz muitos de nós pensarmos que temos que torcer e ser intensamente um polo oposto do antagonismo futebolesco como forma de afirmação da própria identidade. Se alguém necessariamente é Palmeiras, eu tenho todo direito de ser corintiano roxo e me contrapor a um adversário que muitas vezes é visto como inimigo. A ideia do “nós contra eles” em muitos casos nos impede de fazer certas reflexões. Eu escolhi ser Palmeiras e em muitos momentos posso até renunciar disso, posso simplesmente ignorar as diferenças do futebol. Agora, em relação à raça ou orientação sexual, eu não posso suspendê-las ou escondê-las tão facilmente, muito menos se eu for uma pessoa negra e homossexual. A visão futebolesca do orgulho de ser cria uma falsa simetria entre os recortes de gênero, classe e raça como sendo escolhas autônomas e cuja suspensão pode ocorrer a qualquer momento.

    Orgulhe-se, levante a cabeça

    Muitas de nossas ações e existências tem incentivos e sansões. As hierarquias de poder criam existências, ideias e quem não se enquadra nesses padrões, sejam estéticos, éticos ou compartimentais, passam a ter resistências e desaprovações tão somente pela simples existência. Assim, grupos que pertencem à expectativa social dominante, como brancos e heterossexuais, são classificados socialmente como no padrão, enquanto os demais são impostos uma resistência social tamanha que se assemelha a nadar contra a maré. Neste sentido, apenas por ser negro você enfrenta resistências de conseguir um emprego, apenas por ser homossexual você é visto como um “defeito social” a ser combatido e não têm uma jornada social muito mais conturbada do que os demais.

    A “maré social” leva as pessoas brancas e heterossexuais a caminhos mais fluídos em relação aos pretos e LGBTQI+. Na “corrida social” a vantagem é invisível para os grupos que são favorecidos pela maré. Enquanto aos pertencentes aos grupos sofrem na pele as intercorrências de terem nascidos fora da expectativa social. Para estes a maré é impacavelmente forte.

    A palavra orgulho vem do latim, orculus, que significa olhos. Acredita-se que esta evoluiu no português em razão da ação de erguer os olhos quando alguém lhes subjuga, ou você sente que é encarrado como inferior. Neste sentido, penso que todo mundo tem orgulho de ser o que é, mas apenas alguns grupos realmente têm razões para sentir tal orgulho. Isso porque enquanto uns são levados pela maré e sentem um orgulho de serem carregados até os postos de destaques, outros precisam fazer um esforço colossal tão somente para firmar resistência sobre a própria existência.

    Se você pertence a grupos que luta de forma reiterada pela própria existência, você tem minha admiração.

    Considerações finais

    Você sentiria orgulho de vencer uma corrida na qual você fosse o único competidor? Obviamente não não porque o orgulho diz respeito a uma esforço e resistência que fosse teve para conseguir tal feito. Faz todo sentido pessoas que sofrem resistências cotidianas sentirem orgulho de serem o que são porque a existência implica uma luta para afirmar a existência. Felizmente ou infelizmene isso não se aplica a todos os grupos e também e nem a certos tempos e lugares.

    corrida homem versus mulher. Machismo cria vantagens.

    Ser um brasileiro entre os brasileiros no Brasil é uma ação pouco comum porque afinal tal existência é algo comum. É como ser humano entre os humanos. Agora, ser brasileiro em um contexto em que nossas riquezas são usadas para enriquecer estrangeiros em detrimento da fome e miséria dos nossos compatriotas faz jus ao orgulho.

    Referências

    BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. Futebol, gênero, masculinidade e homofobia: um jogo dentro do jogoEspaço Plural, v. 14, n. 29, p. 246-270, 2013.

  • Gostar de estudar? A necessidade de estudar o que não se gosta

    Gostar de estudar? A necessidade de estudar o que não se gosta

    Gostar de estudar tem se tornado um jargão que motiva reformas curriculares. Neste sentido, vamos analisar profundamente os sentidos e intenções políticas e algumas implicações práticas desse pensamento.

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    Por Roniel Sampaio Silva

    A palavra gostar tem origem do latim gustare, cujo significado remete a provar, experimentar ou saborear. No “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa” de José Pedro Machado, a palavra “saber” tem origem no latim ‘sapere’, que significa “ter gosto; um odor; perceber pelo sentido do gosto; fig., ter inteligência, juízo; conhecer alguma coisa, conhecer, compreender, saber”. Já a palavra sabor, segundo a mesma obra, deriva do latim ‘sapore-‘, que quer dizer “gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprio e figurado; no pl., coisas de bom gosto; odor, perfume; gosto, ação de provar. Assim, podemos perceber que sabor e saber tem origens próximas, que conhecimento tem a ver com a experiência sensorial de perceber o mundo. Tal processo de assimilação do mundo é captado pelos nossos sentidos e assimilados pelo nosso intelecto: sapere e sapore. Ambos têm relação recíproca.

    Tanto nosso intelecto quanto nosso paladar são aprimorados ao longo da nossa vida. Assim, quando crianças temos um paladar tão infantil que deseja tanto consumir açúcar que muitas vezes trocamos nossas refeições por doces. Desta maneira, o desejo primitivo do consumo de açúcar pode nos causar sérios problemas de saúde quando consumida em excesso. Neste caso, a afinidade gustativa pode nos trazer problemas. Consumir apenas aquilo que se gosta pode nos trazer problemas.

    Nutricionalmente falando, as substâncias ricas em açúcar têm alto valor calórico e muitas delas tem baixo valor nutricional. Na medida que nos desenvolvemos e aprimoramos nosso paladar aprendemos das mais variadas coisas para equilibrar nossa dieta. Se antes a azeitona em conserva era intragável, agora passa a ser apreciada como mais alto grau de refinamento pelo nosso paladar. Por quê? Porque nosso paladar vai se transformando na medida em que conhecemos as propriedades nutricionais dos alimentos, conhecemos novas culturas e costumes e temos experiências gastronômicas. Portanto, o aprimoramento da nossa consciência e vivência muda nossa vontade de sentir gustativamente o mundo. Nosso paladar e nosso intelecto vão sendo aprimorados para digerir simbolicamente e metabolicamente coisas mais sofisticadas para além de sacarídeos.

    Tanto nosso paladar como nosso intelecto estão em constante mudança. Ambos se transformam reciprocamente. A experiência superficial da digestão metabólica e simbólica cria um sujeito também superficial na medida em que tal sujeito não é lançado a desafios de comer o que não gosta ou de estudar o que não quer. A exposição daquilo que não se gosta e não se quer nos dá possibilidades do que Piaget(1977) chama do desequilíbrio, o qual nos faz adquirir novos gostos e sentidos. Fazer apenas o que se gosta ou o que se quer é ruim, porque o sujeito não têm oportunidade de conhecer contraditórios dos quais não vão ampliar repertórios e mostrar horizontes cuja vontade singela do ser não nos leva.  Além disso, o simples gostar inicial, sem aprofundamento do conhecimento refinado, não nos permite aprofundar nas profundezas do conhecimento sólido e robusto. É preciso conhecer o tutano para buscar a sustância nas entranhas do mais sólido cálcio encastelado.   Portanto, para gostar do tutano é preciso aprofundar o conhecimento para ter noção daquilo que se propõe. Outro exemplo: uma bebida amarga à primeira dose pode parecer intragável ou desagradável, mas com um pouco de paciência, insistência e treinamento pode se tornar uma supra sumo, porém é necessário se permitir além do que é inicialmente agradável e explorar o que é inicialmente desagradável.

    Considerações finais do gostar de estudar

    Um cálculo de geometria analítica ou uma dialética hegeliana à primeira vista pode se aparentar como chato, ou desagradável. Porém, com comprometimento ou dedicação intelectual é possível superar o véu do amargor e digeri-lo para apreciar a sua essência.

    Invés de buscar sentidos profundos para as questões estruturais da natureza e da cultura, é mais cômodo trocar todos esses conhecimentos sofisticados por operações de como fazer e vender bolo no pote. No entanto, aprimorar um cálculo diferencial, compreender as transformações sociais do mundo, compreender a hermenêutica de um de uma corrente filosófica tem um nível de sofisticação dos quais desvelam segredos do universo físico, metafísico e social com um sapere e sapore muito mais refinado, mas exige dedicação, energia, dinheiro e revela privilégios que devem ser camuflados. A consequência social de desbravar um universo sofisticado e se encantar saborosamente por ele é compreendê-lo tão bem a ponto de querer mudar a receita do bolo.

    Invés disso, os poderosos que querem mandar no currículo preferem adocicar a boca dos jovens com conhecimentos superficiais, mimá-los e acomodá-los a fim de garantir que uma geração se conforme e permanecer na superficialidade de um mundo de açúcar e algodão-doce, assim, estes jamais buscarão compreender as bases dos castelos que lhes encarceram e permanecerão a lamber o chão açucarado que a nobreza pisa.

    Os professores têm que ensinar que o aluno gosta? O gostar, o saber e o saborear exigem certo refinamento e aprimoramento que não é contemplado pela superficialidade. O gostar de estudar pelo gostar superficial engana e estagna.

    Conte como você aprendeu a gostar de estudar nos comentários

    Referências

    MACHADO, José Pedro (Ed.). Dicionário etimológico da língua portuguesa. Editorial Confluência, 1956.

    PIAGET, Jean. O desenvolvimento do pensamento: equilibração das estruturas cognitivas. Lisboa: Dom Quixote, 1977

  • Por que não cumpriremos nossas promessas de ano novo?*

    Por que não cumpriremos nossas promessas de ano novo?*

    Ano novo

    Por que não cumpriremos nossas promessas de ano novo?

     
    Ano novo e as mesmas promessas de sempre: vou estudar mais, irei dar mais atenção aos meus amigos, vou economizar dinheiro para comprar algo…
     
    Por que todos os anos as pessoas fazem promessas a si mesmas e não as cumprem? A Sociologia nos ajuda a entender isso.
     
    Nós possuímos habitus que nos faz agir de uma dada forma. O habitus seria a predisposição a agir de uma dada maneira. Este habitus adquirimos por meio do processo de socialização. Dependendo das experiências que temos ao longo de nossas vidas vamos construindo valores e crenças (que nos fornece uma perspectiva do mundo) que nos orientará em nossas ações (grosso modo, podemos dizer que o habitus seria essa predisposição motivada pelas nossas crenças e valores). Por exemplo, se eu tive um contato duradouro com pessoas pacíficas (ao longo de minha criação), frente a uma briga, quase que instintivamente buscarei evitar a confusão. Mas se, ao contrário, eu tiver tido contatos ao longo de minha educação mais duradoura com pessoas violentas eu, quase que instintivamente, agirei de forma violenta frente a uma briga (muitas vezes nem percebemos que fazemos escolhas de como agir, isso devido o habitus estar intrínseco em nossas vidas). Terei possivelmente a crença de que não posso “levar desaforo para casa”. Essas atitudes são, em grande parte, determinada pelo habitus que possuímos.
     
    Voltando as promessas do ano novo. Quando fazemos promessas para o novo ano, estão, geralmente, ligadas a algo que naturalmente não o fizemos. Muitas vezes não o fizemos por não ser parte de nosso costume, nosso habitus não nos “força” a agir ou fazer aquilo. Como o habitus é produzido ao longo de nossa educação mais duradoura, ou melhor, ao longo de nosso processo de socialização, teremos dificuldades para cumprir algumas promessas que fogem de nossas atitudes comuns ou habituais (veja que essa palavra vem de habitus). O ano pode ser novo, mas nosso habitus é antigo.
     
    Não conseguimos mudar nosso habitus de um dia para o outro. Por isso, não cumpriremos muitas de nossas promessas. Isso não será de propósito, apenas não estaremos predispostos (disposição prévia) a tais novas atitudes.
     
    *texto originalmente publicado aqui no blog em 2012.
    Usos de canções no ensino de Sociologia
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    Ciência Política para o ensino médio
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  • Eu quero, ao menos, tentar voar: Estrutura social e liberdade individual

    Eu quero, ao menos, tentar voar: Estrutura social e liberdade individual

    A liberdade individual é um conceito fundamental da filosofia e da teoria política, que se refere à autonomia e ao autodeterminação de cada indivíduo. É a capacidade de agir de acordo com suas próprias vontades e escolhas, sem ser impedido ou coagido por outras pessoas ou pelo Estado.

    A liberdade individual é considerada um direito fundamental e é protegida por diversos tratados internacionais e constituições. Ela é um dos pilares da democracia e da sociedade liberal, e é vista como fundamental para o desenvolvimento da personalidade e da cidadania de cada indivíduo.

    A liberdade individual inclui vários aspectos, como a liberdade de expressão, de consciência, de religião, de associação e de reunião. Ela também inclui o direito de cada indivíduo de tomar suas próprias decisões e de agir de acordo com suas próprias crenças e valores, desde que essas ações não prejudiquem os direitos e a segurança de outras pessoas.

    A liberdade individual, no entanto, nem sempre é absoluta e pode ser limitada pelo Estado ou pela lei em casos em que as ações de um indivíduo prejudiquem a segurança ou os direitos de outros. Por exemplo, o Estado pode restringir a liberdade de expressão em casos em que essa expressão incite à violência ou à discriminação.

    Alguns filósofos, como John Stuart Mill, defendem que a liberdade individual é fundamental para o progresso e o desenvolvimento humano, e que o Estado deve garantir o máximo de liberdade possível para os indivíduos, desde que essa liberdade não prejudique a segurança e os direitos de outras pessoas. Outros filósofos, como Jean-Jacques Rousseau, defendem que a liberdade individual deve ser limitada em favor da coesão e do bem-estar da sociedade.

    Em resumo, a liberdade individual é a autonomia e o autodeterminação de cada indivíduo, e inclui vários aspectos, como a liberdade de expressão, de consciência, de religião, de associação e de reunião. Ela é protegida por diversos tratados internacionais e constituições e é um dos pilares da democracia e da sociedade liberal. No entanto, a liberdade individual nem sempre é absoluta e pode ser limitada pelo Estado ou pela lei em casos em que as ações de um indivíduo prejudiquem a segurança ou os direitos de outros.

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    Cristiano bodart perfil
    Cristiano Bodart é doutor em Sociologia (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas.

    A descoberta da existência da “lei da gravidade” parecia, a princípio, que estava-se dizendo que o homem não poderia voar e que estaria fadado a permanecer no solo. Passado algum tempo, o homem venceu a gravidade e alçou voos altos e duradouros, tendendo a ter o avião, se já não é, como o meio de transporte mais usado em grandes distâncias.

    Nas Ciências Sociais…

    Com o surgimento e desenvolvimento da Sociologia descobriu-se uma lei social: a de que somos frutos da sociedade a qual vivemos. Inicialmente acreditava-se em algo do tipo “filho de peixe, peixinho é” ou ainda, “uma fruta não cai longe da sua árvore”, “filho de pobre, pobre será” e outros pensamentos deterministas. Em outras palavras, o indivíduo era visto como produto do meio a qual está inserido, portanto, será semelhante aos indivíduos de seu meio, sobretudo nas condições socioeconômicas.

    Passado alguns anos, tem-se a ideia de que o raciocínio do peixe ou da fruta não cabe dentro do saber das Ciências Humanas, sobretudo da Sociologia, o que não significa dizer que a “lei social” de que o indivíduo é fruto da sociedade a qual está inserido foi invalidada, da mesma forma que o avião não invalidou a lei da gravidade. É consenso hoje na Sociologia, que a lei social é uma regra e que existem, como toda regra, exceções, e estas são muitas e variadas.

    Remar contra a maré…

    Em outros termos, você e eu estamos sujeitos, com grande possibilidade, de sermos uma reprodução do que são nossos pais e grupo social, especialmente nas condições socioeconômicas. O jovem que nasce na favela tende a continuar residindo nela até o fim de seus dias. O filho de um empresário bem-sucedido tem diversas disposições sociais favoráveis a seu futuro econômico.

    A estrutura social a qual estamos inseridos nos fornece as mesmas oportunidades dadas aos nossos pares, assim como também nos priva das mesmas oportunidades. Há em nosso entorno uma estrutura social que nos conduz a sermos moldados e limitados por ela. O jovem que estuda em boa escola tende a ter uma condição social posterior melhor do que o indivíduo que não teve acesso a essa escola. Essa é a “lei social”.

    Mas dizer que existe uma lei social que influencia a sermos uma reprodução dos nossos pares não quer dizer que seremos ou que estamos fadados a ser. No caso da vida social, uma “fruta” pode sim “cair longe do pé”. Assim como a gravidade não impede de voarmos. Podemos tomar trajetórias diferentes, embora exija esforço (grande para uns e menores para outros), como ocorre na tentativa de romper com a gravidade ou remar contra a maré. Não foi fácil voar e certamente não será fácil para muitos “cair longe da árvore”. Mas precisamos ser resistência!

    Você pode mais do que imagina. Olhar ao redor e deixar a vida “te levar” – como diz uma canção brasileira – é tornar o futuro previsível; é abandonar a possibilidade de você ser uma exceção; é se contentar em “cair próximo da árvore”. Ainda que não tenha asas, você pode voar. Mesmo que suas condições materiais não sejam animadoras, você pode alçar voos mais promissores do que imagina. Certamente não dependerá apenas de “força de vontade”, mas sem ela a Lei social será, mais que uma regra, será absoluta sobre você.

    Eu, particularmente, quero ao menos tentar. Quero ser resistência à maré! Quem sabe eu consiga voar…

    Originalmente publicado em: https://www.portal27.com.br/eu-quero-ao-mesmo-tentar-voar/