Pensamento social e questão de gênero

Por Joyce Miranda Leão Martins*
Émile Durkheim foi o primeiro professor da disciplina que hoje se conhece como Sociologia e que objetiva estudar as relações humanas e a organização das sociedades. Em seus estudos, que passaram pela religião até o suicídio e a divisão do trabalho, o sociólogo chegou à conclusão de que o crime era um “fato social normal”, posto que era encontrado em todas sociedades, em todos os tempos. De acordo com o francês, os acontecimentos de um grupo, bem como o trabalho de seus membros, tinham uma função dentro de uma estrutura maior, que era a
sociedade. Cada indivíduo possuiria um “papel” que ajudaria sua comunidade a funcionar harmonicamente.
 Incorporado posteriormente às Ciências Sociais, Karl Marx fazia uma análise diferente. Para ele, a sociedade capitalista não era nem poderia ser harmônica e seria rompida a partir de uma
revolução levada a cabo através dos trabalhadores mais explorados pelos detentores dos meios de produção. Marx fazia uma grande crítica aos economistas de sua época, que julgavam o sistema capitalista como um “caminho natural” da humanidade. Tinha em comum com Durkheim a percepção de que o social não era algo dado, mas construído historicamente.
Se como disse Wright Mills “não devemos esquecer que bebemos na fonte dos clássicos”, lembrar que o social é construção histórica é um dos maiores ensinamentos dos consagrados autores. É a partir disso que podemos estimular a imaginação sociológica e passar de uma perspectiva naturalizada a outra, de questionamento.
Em tempos que racismo, homofobia e machismo vêm sendo constantemente combatidos por movimentos sociais, cabe perguntar: funciona normalmente uma sociedade em que são
violentadas, por ano, 50 mil mulheres, de acordo com dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública? A exploração da força de trabalho é igual entre homens e mulheres, sendo a desigualdade de renda a única que afeta a humanidade?
As questões levantadas são quase retóricas, posto que são presumíveis as respostas esperadas. Mas se a Sociologia é – desde os seus princípios – “um esporte de combate” (ainda que de acordo com determinado contexto), não é difícil antever que essas questões precisem estar, cada vez mais, nas discussões da disciplina. Não apenas como um recorte específico dos estudos de gênero, mas também como forma de impedir que o conhecimento reproduza discursos dominantes e se restrinja a destacar os escritos do gênero masculino, algo corriqueiro na trajetória das disciplinas científicas. É necessário ampliar os espaços de atuação desse esporte de combate que são as Ciências Sociais e lembrar que os textos de Marianne Weber, Harriet Martineau e Beatrice Webb (além de tantas outras) devem ser conhecidos e revisitados. A tarefa faz parte de uma Sociologia da Sociologia (que coloca em xeque as verdades aceitas), proposta por Bourdieu (1989), indo no sentido do questionamento da restrição de canônes, e agindo em direção a novas epistemologias pós-colonias. Quem foram as mulheres que pensaram o social contemporaneamente aos clássicos, por que foram esquecidas e o que tinham a dizer? O que isso tem a ver com violência e desigualdade social?
Quando parcelas importantes da sociedade estão a descortinar antigas crenças e a questionar diversos tipos de violências (sejam elas relacionadas à mulheres, negros, homossexuais etc), colocam um desafio às Ciências Sociais: é preciso repensá-las para que elas caminhem junto ao seu tempo. Lembrando Boaventura (2000), que avisa aos sociólogos ser necessário “escavar o lixo da ciência moderna” pra ver o que lá havia de importante e foi relegado ao desconhecido, porque considerado inferior, é necessário revolver as próprias Ciências Sociais e buscar as suas protagonistas, que trazem luzes para o pensar da sociedade atual e problemáticas que ainda se fazem contemporâneas, pois foram deixadas de lado no passado.
Sobre as três pensadoras sociais citadas aqui, vale dizer: Harriet Martineau foi uma das grandes críticas do sistema político americano. Para ela, o país não podia ser considerado democrático, pois permitia a escravidão. Autoditada em Ciências Sociais, publicou artigos também em economia política, com a intenção de mostrar e simplificar princípios dessa disciplina. Como Durkheim, acreditava que a natureza e a sociedade possuíam leis; Marianne Weber, mais conhecida pela publicação da obra póstuma de seu marido Max Weber, estudou como as diferentes classes sociais, educação e ideologia contribuíam para a desigualdade relacionada à mulher. Em seus escritos, mostrou que a dominação patriarcal no matrimônio contradizia os valores liberais individualistas tão louvados em sua época; Por sua vez, Beatrice Webb foi autodidata na aprendizagem de filosofia e economia. Filha de um rico empresário da Inglaterra, passou a trabalhar nas fábricas de seu pai para compreender o dia a dia dos trabalhadores. Autora de vários livros, combinou o método pessoal com análises estatísticas, a curiosidade com o ativismo político.
As três autoras têm em comum o fato de tocarem na questão de gênero em seus estudos, como se ser mulher levasse sempre a uma dupla batalha: mostrar que seu trabalho é relevante; provar que é relevante, apesar de ser mulher. É difícil o acesso às obras dessas sociólogas, ainda parcamente traduzidas. Em 2004, o trabalho de Patricia Madoo Lengermann y Jill Niebrugge-Brantley, diretoras da seção de História da Sociologia, da Associação Norte-Americana de Sociologia, contribuiu para tirar do esquecimento aquelas sociólogas e outras da mesma época. Em 2009, a editora da Universidade Nacional Autônoma do México publicou, em espanhol, ensaios selecionados de Marianne Weber.
Enquanto o pensamento das mulheres for tido como menor – na ciência e no cotidiano – vão se reproduzir violências simbólicas, que acabam por gerar as justificativas para o agressor e a sociedade que se acostumou a naturalizar violências. Ademais, perde-se a chance de conhecer melhor um período histórico e de combater o que é desigual. Se o social é construção, como mostraram Durkheim, Marx, Marianne, Weber, Martineau e Beatrice, questioná-lo é fundamental para a Sociologia e a produção de sociedades mais igualitárias, seja na questão de gênero ou no tocante a outras problemáticas. Referências Ellas y la Sociología. Sociedad siglo XXI. Sitio en la web: https://sociedadsiglo21.wordpress.com/category/ellas-y-la-sociologia/ BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. GAVIRIA, Luz Gabriela Arango; PINILLA, Giovanna Arias. En busca de las sociólogas fundadoras: Marianne Weber. Sitio en la web: https://www.bdigital.unal.edu.co/16501/1/11397-27844-1-PB.pdf Las madres de la Sociología: el papel de la mujer en la teoría sociológica clásica. Refúgio Sociológico. Sítio en la web: https://refugiosociologico.blogspot.com.es/2013/03/las-madres-de-la-sociologia-el-papel-de.html SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São. Paulo: Cortez, 2000.
*Joyce Miranda Leão Martins é Mestre
em Sociologia pela UFC. Doutoranda em Ciência Política pela UFRGS. Pesquisadora-visitante
da Universidad Complutense de Madrid. Contato: joycesnitram@yahoo.com.br
























Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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