Shopping center: um espaço de análise sociológica
Por Valquíria Padilha**
Quem nunca ouviu falar em shopping Center? Ou nunca passeou pelos corredores deste centro de consumo? Quantas vezes não viajamos para outra cidade ou país e desejamos visitar o shopping Center local? Atualmente o shopping Center concorre com a televisão e o computador entre as atrações mais citadas pelas parcelas privilegiadas da população como preferências de ocupação do tempo livre. Por que isso acontece? Quais são os sentidos desse sucesso?
O que conhecemos no Brasil com o nome de shopping center pode ser entendido como um espaço privado – que se diz público – criado para ser uma solução dos problemas da cidade onde reinam desajustes, desigualdades, contradições, imprevistos. Por isso, consideramos a cidade como o ‘mundo de fora’ em contraposição ao shopping center como o ‘mundo de dentro’. O ‘mundo de fora’ é a realidade-real, o espaço urbano e seu caráter público. Esse mundo contém outra realidade construída artificialmente, o ‘mundo de dentro’, limpo e isento dos fatores que agem no ‘mundo de fora’ – chuva, sol, frio, neve, mendigos, pedintes, trânsito, poluição etc.
Ao mesmo tempo em que desencadeia uma série de problemas para muitos, a cidade real possibilita alternativas para poucos, como a criação do shopping center, a ‘catedral’ onde uma parcela da população idolatra as mercadorias e vivencia lazeres que se distanciam da autonomia e da criatividade. O shopping center é hoje um dos empreendimentos mais rentáveis e com uma das maiores taxas de crescimento em todo o mundo.
O sociólogo norte-americano Richard Sennett, em seu livro O declínio do homem público, entende a formação dessa cultura de consumo a partir da análise histórica do declínio da vida pública, associado ao aumento da importância da esfera do privado. O capitalismo impulsionou um deslocamento do foco das pessoas para as coisas, fazendo com que elas buscassem significados pessoais em objetos. Nessa nova vida urbana, as condições materiais tornaram-se mais conhecidas e mais constantes para as pessoas enquanto a vida pública foi ficando cada vez mais frágil.
Nas sociedades capitalistas, o homem não produz mais apenas para satisfazer suas necessidades originais. Existem outras necessidades em jogo que são as de valorização do capital. A produção de mercadorias converteu-se em uma fonte de lucro, dado que cada trabalhador produz, para os donos das empresas, muito mais do que precisaria para a satisfação de suas próprias necessidades. A produção capitalista gera excedentes que não são calculados com base nas necessidades naturais do homem e sim nas do capital, o qual, por sua vez, precisa criar novas necessidades para estimular a demanda e o consumo. Assim, a produção deve visar a um consumo descartável, uma cultura do desperdício, o que reflete o princípio da ‘obsolescência planejada’ (os objetos são feitos para serem obsoletos). Esse sistema precisa sempre aumentar a produção de mercadorias em quantidade e variedade, mas não em qualidade e durabilidade.
Partindo dessa concepção, também podemos refletir sobre o lazer enquanto um fenômeno social importante da dinâmica dessa sociedade. Nesse espaço, que denominamos shopping center híbrido – hoje com características de ser mais um centro de compra de lazer, serviços e símbolos do que um centro de compra de produtos úteis –prevalece um certo encantamento das pessoas que ali ocupam o seu tempo supostamente livre. A subordinação do lazer a essa lógica dá-se basicamente pelas várias maneiras de mercantilização da diversão, que é produzida industrialmente, divulgada pela publicidade e trocada por dinheiro.
Os shopping centers são símbolos de uma sociedade que valoriza o espetáculo do consumo de bens materiais e do lazer-mercadoria e que, além disso, oferece a uma parcela da população o direito a esse consumo e a esse lazer, enquanto exclui dessa possibilidade a maioria da população. Assim, esses centros comerciais configuram-se como espaços de lazer alienado, reduzindo a identidade social ao universo do consumo, tanto dos que freqüentam tais espaços quanto dos que não os freqüentam mas desejariam freqüentá-los.
Os diversos equipamentos de lazer disponíveis – como mais um produto à venda – levam seus freqüentadores a encontrar diversão em torno da celebração de mercadorias, de modo que, mesmo no lazer, o ‘ser’ permanece subjugado ao ‘ter’. Não há espaços livres, vazios; cada centímetro é preenchido para direcionar a ocupação monetarizada desse centro de consumo. Assim, concebemos o lazer oferecido nesses centros como alienante porque leva ao distanciamento dos sujeitos deles próprios, da obscurecida essência humana, ao mesmo tempo em que não possibilita a livre criatividade, a autonomia, a convivência desinteressada (do ponto de vista financeiro) com os outros. O shopping center – e toda a complexa rede psicossocial que se forma com a ‘sociedade de consumo’ – baseia-se em uma lógica que não possibilita aos homens desenvolverem suas capacidades e seus sentidos em plenitude.
É preciso reconhecer que essa privatização do lazer nos shopping centers acontece porque, entre outros fatores, não existem políticas públicas que confiram ao fenômeno do lazer o caráter de direito social. O shopping center vem aumentando sua participação na esfera do lazer urbano por causa da brecha que a inexistência ou ineficiência dos espaços públicos de lazer vem abrindo. A ausência de políticas públicas favorece também a segregação social, uma vez que o poder aquisitivo acaba sendo um dos determinantes principais para a tomada de decisões diante das escolhas
existentes. Quem tem dinheiro tem mais opções.
existentes. Quem tem dinheiro tem mais opções.
Espaços como os shopping centers afastam as pessoas de qualquer experiência de “formação”, conforme nos ensinou o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969). Para ele, a “formação” deveria corresponder a uma sociedade de seres livres, iguais e conscientes. Essa formação supõe uma humanidade sem exploração e, mais do que isso, a libertação da imposição dos meios e da utilidade, o que significa a autonomia do ser social. Nesse sentido, o shopping center dificulta ainda mais a superação do que o filósofo chamou de “semiformação” – que é a “formação” incompleta,
manipulada por interesses exteriores a nós. No shopping center híbrido, parece-nos clara a ausência de pessoas autônomas interligadas. Nesse espaço, os sujeitos estão ainda mais destituídos de liberdade, de forma que a vida em conjunto com os outros não se articula como verdadeira. Não há possibilidade de uma sociabilidade consciente, refletida, afastada das artimanhas que acabam reduzindo cidadãos a consumidores.
manipulada por interesses exteriores a nós. No shopping center híbrido, parece-nos clara a ausência de pessoas autônomas interligadas. Nesse espaço, os sujeitos estão ainda mais destituídos de liberdade, de forma que a vida em conjunto com os outros não se articula como verdadeira. Não há possibilidade de uma sociabilidade consciente, refletida, afastada das artimanhas que acabam reduzindo cidadãos a consumidores.
Diante disso, olhamos para o shopping center como uma referência para pensar a ‘sociedade de consumo’ e de lazer, vista como um mundo encantado que, num interessante delírio coletivo, obscurece a consciência dos seres sociais para a plena (e difícil) vida em coletividade. Em outras palavras, nos shopping centers os sujeitos estão afastados de si mesmos. Mergulhados nesse universo do consumo, sentem-se autorizados a permanecer alheios à vida pública, o que se agravaainda mais quando se percebe que seu comportamento e suas relações com o mundo são mediatizados por coisas. Nos shopping centers, até o lazer – que deveria ser tempo de liberdade – torna-se algo a possuir, consumir, usar e gastar. Não
há espaço nem tempo para a espontânea fruição do tempo livre.
há espaço nem tempo para a espontânea fruição do tempo livre.
O shopping center é um centro de comércio que se completa com alimentação (normalmente do tipo fast food), serviços (bancos, cabeleireiros, correios, academias de ginástica, consultórios médicos, escolas) e lazer (jogos eletrônicos, cinema, internet). Ali, o consumidor de mercadorias se mistura com o consumidor de serviços e de diversão, sentindo-se protegido e moderno. Fugindo dos aspectos negativos dos centros das cidades e da busca conjunta de soluções para eles, os shopping centers vendem a imagem de serem locais com uma melhor ‘qualidade de vida’ por possuírem ruas cobertas, iluminadas, limpas e seguras; praças, fontes, bulevares recriados; cinemas e atrações prontas e relativamente fáceis de serem adquiridas – ao menos para os que podem pagar. É como se o ‘mundo de fora’, a vida real, não lhes dissesse respeito…
O que essa catedral das mercadorias pretende é criar um espaço urbano ideal, concentrando várias opções de consumo e consagrando-se como ‘ponto de encontro’ para uma população seleta de seres “semiformados”, incompletos, que aceitam fenô-menos historicamente construídos como se fizessem parte do curso da natureza. O imaginário que se impõe é o da plenitude da vida pelo consumo. Nesses espaços, podemos ocupar-nos apenas dos nossos desejos – aguçados com as inúmeras possibilidades disponíveis de aquisição. Prevalece a ideia do ‘compro, logo existo’.
Concluímos que esse mundo de sonhos que é o shopping center acaba reforçando nas pessoas uma visão individualista da vida, onde os valores propagados são todos relacionados às necessidades e aos desejos individuais – ‘eu quero, eu posso, eu compro’. Assim, colabora para uma deterioração do ser social e o retardamento do projeto de emancipação de seres mais conscientes, autônomos, prontos para a sociabilidade coletiva – que exige a capacidade da troca desinteressada, da tolerância, da relação verdadeiramente humana entre o eu e o outro, entre iguais e entre
diferentes. Compreendemos que um ser social emancipado identifica as necessidades individuais com as da coletividade, sem colocá-las em campos opostos. Assim, o ser emancipado sabe agir pensando nos outros, no presente e no futuro.
diferentes. Compreendemos que um ser social emancipado identifica as necessidades individuais com as da coletividade, sem colocá-las em campos opostos. Assim, o ser emancipado sabe agir pensando nos outros, no presente e no futuro.
O shopping center híbrido representa hoje o principal lugar da ‘sociedade de consumo’, contribuindo para a sacralização do modo de vida consumista e alienado, um modo de vida em que há uma evidente predominância de símbolos como status, poder, distinção, jovialidade, virilidade etc. sobre a utilidade das mercadorias. Vale ainda lembrar que não é somente o shopping center que gera emprego. Centros culturais, esportivos e de lazer, escolas, postos de saúde, teatros, cinemas, praças públicas com animação cultural também. O que se pode concluir é que o sucesso da fórmula atual do shopping center híbrido como lugar privilegiado para a realização da lógica consumista traz consigo o fracasso da plenitude do ser social, distanciando-o de qualquer projeto de emancipação e de humanização do ser humano. Como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no poema Eu, etiqueta: “Já não me convém o título de homem./Meu nome novo é coisa./Eu sou a coisa, coisamente.
* Publicado originalmente em Maio de 2007 na Revista Ciência Hoje. O artigo da revista é mais completo e pode ser baixado AQUI. O texto é fruto do livro “A Sociologia vai ao Shopping
Center: reflexões sobre a
catedral das mercadorias”, Col. Mundo do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2006. 224p.
Center: reflexões sobre a
catedral das mercadorias”, Col. Mundo do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2006. 224p.
** Professora do Departamento de Administração- USP
Excelente artigo! Usarei para dicussão sobre Imaginário Urbano!