A agricultura patronal no Brasil tem suas raízes fincadas nas estruturas coloniais de exploração da terra e da mão de obra. No decorrer do século XX, esse modelo consolidou-se especialmente na Zona da Mata Nordestina por meio do sistema de monocultura canavieira, estruturado sob o regime de grandes propriedades – os engenhos – e fortemente articulado à indústria sucroalcooleira. Com base nesse sistema, formou-se um padrão de dominação territorial centrado na figura do usineiro, cuja atuação extrapolava os limites econômicos e alcançava o controle político e social dos trabalhadores rurais (Melo, 1975; Andrade, 1986).
A denominada agricultura patronal, conforme apontado por Olalde (2010), caracteriza-se pela dissociação entre gestão e trabalho, centralização administrativa, uso extensivo da terra e ênfase na produtividade em larga escala, com forte apoio das políticas estatais voltadas ao agronegócio. Nesse modelo, o uso intensivo de mão de obra assalariada era comum, frequentemente em condições precárias, o que agravava a alienação cultural e a exclusão social no campo.
Com o avanço da crise da agroindústria canavieira nas últimas décadas do século XX, muitas usinas declararam falência, gerando desemprego em massa e deixando vastas extensões de terras improdutivas. Esse contexto abriu espaço para a atuação dos movimentos sociais e do Estado por meio da reforma agrária, o que possibilitou a transição, em determinados territórios, da agricultura patronal para a agricultura familiar. Essa transição, no entanto, não se deu de forma homogênea, mas em intensidades variadas conforme a especificidade de cada local.
No caso do Assentamento Ilhetas, situado na Zona da Mata Sul de Pernambuco, tal transição representa uma experiência emblemática. Trata-se de um território anteriormente ocupado pela Usina Central Barreiros, cuja falência permitiu a desapropriação das terras pelo INCRA e a instalação de um projeto de reforma agrária, resultando em significativas mudanças socioespaciais. A passagem do engenho ao assentamento, do patrão ao coletivo, configura não apenas uma mudança estrutural, mas simbólica e cultural, expressando uma nova forma de relação com a terra, com o trabalho e com a política rural (PDA, 2004).
A análise proposta adota a perspectiva dialética do espaço geográfico, conforme delineado por Milton Santos (1978; 2002), entendendo o espaço como simultaneamente causa e consequência das práticas sociais. Assim, este estudo busca compreender como a substituição do modelo patronal por um modelo familiar alterou as dinâmicas de poder, a estrutura fundiária, as formas de produção e as condições de vida dos agricultores assentados, oferecendo uma reflexão crítica sobre os limites e possibilidades da agricultura familiar como alternativa ao agronegócio tradicional.
O Caso Ilhetas: Transição, Território e Repercussões
O Assentamento Ilhetas, localizado no município de Tamandaré (PE), integra uma região marcada historicamente pela presença da monocultura canavieira, com forte concentração fundiária e exploração sistemática da força de trabalho. A usina Central Barreiros, que antes ocupava o território, foi durante décadas o principal eixo econômico local, empregando trabalhadores em condições precárias, sustentando uma estrutura hierárquica rígida e promovendo a alienação cultural dos camponeses, cujas vidas giravam em torno do “tempo da cana” e da autoridade do patrão (Silva, 2012).
Com a crise estrutural da agroindústria canavieira nordestina – causada, entre outros fatores, pela defasagem tecnológica, pela concentração de incentivos nas usinas mais competitivas do Sudeste e pela reestruturação dos mercados de açúcar e álcool – a falência da usina Central Barreiros criou um vácuo socioeconômico e territorial. Esse vácuo foi preenchido por uma reorganização dos atores sociais: antigos assalariados se engajaram em movimentos de luta pela terra, demandando a desapropriação das terras ociosas. Através da intervenção do INCRA e da atuação de sindicatos rurais e movimentos sociais como o MST, constituiu-se o Assentamento Ilhetas como uma experiência concreta de reforma agrária na Zona da Mata.
O processo de transição da agricultura patronal para a agricultura familiar provocou o que Silva (2012) denomina “repercussões sócio-espaciais”: alterações profundas na organização do território, nas práticas agrícolas e nas dinâmicas sociais. A terra, antes monopólio de um grupo reduzido, passou a ser redistribuída em minifúndios produtivos; o trabalho, antes subordinado, tornou-se autônomo; e a monocultura da cana-de-açúcar deu lugar a práticas mais diversificadas, ainda que, em alguns casos, mantendo a cana como cultura dominante, mas agora sob nova gestão.
Do ponto de vista da estrutura fundiária, observou-se um processo de fragmentação do latifúndio e o surgimento de múltiplas unidades produtivas familiares. Essa mudança rompe com o histórico modelo concentrador de terras e representa uma inflexão nas relações de poder locais. Ao mesmo tempo, a figura do trabalhador rural assalariado cede lugar à do agricultor familiar, agente de sua própria produção, gestor de seu tempo e de sua terra.
Contudo, a transição não foi isenta de contradições. Como aponta a dissertação de Silva (2012), a mudança de modelo não eliminou por completo os resquícios da lógica patronal. Em muitos casos, a presença simbólica do engenho, o hábito da monocultura e as dificuldades de acesso a políticas públicas específicas ainda limitam o potencial da agricultura familiar como modelo plenamente emancipador. Persistem desafios ligados à infraestrutura, à comercialização, à assistência técnica e à organização coletiva da produção.
Ainda assim, o caso do Assentamento Ilhetas revela um importante deslocamento paradigmático: de um território controlado por uma lógica empresarial centrada na exploração e no lucro, para um espaço em que os sujeitos da terra se tornam protagonistas de suas trajetórias. A territorialidade do assentamento se define não apenas pela posse da terra, mas pelo uso social que dela se faz, pela diversificação das culturas, pela ressignificação do tempo e pela reconstrução da identidade rural.
Repercussões Sociais, Econômicas e Simbólicas da Transição
A substituição da agricultura patronal pela agricultura familiar no Assentamento Ilhetas produziu transformações significativas nas dimensões sociais, econômicas e simbólicas da vida rural. A análise dialética dessas mudanças revela uma reconfiguração do espaço agrário, que não é apenas produtiva, mas também cultural e política. Conforme destaca Silva (2012), as mudanças vão além da mera troca de atores ou de sistemas técnicos: envolvem a constituição de novas formas de pertencimento, de trabalho e de organização do tempo e do espaço.
No plano econômico, houve um redesenho das formas de produção agrícola. A diversificação das culturas, ainda que parcialmente condicionada pela persistência da cana-de-açúcar como herança do modelo anterior, permitiu a produção de hortaliças, frutas, milho e feijão em regime de policultura. Essa nova lógica produtiva não visa à exportação nem à maximização de lucros, mas sim à segurança alimentar, à geração de renda mínima e à sustentabilidade familiar. Com isso, as cadeias produtivas passam a ser organizadas com base em redes curtas de comercialização, como feiras locais e vendas diretas à margem das rodovias (Silva, 2012).
A propriedade da terra e dos meios de produção, agora em mãos dos próprios agricultores, inaugura uma lógica de autogestão e autonomia, ainda que essa autonomia seja relativa e permeada por novos desafios, como o acesso limitado ao crédito, à assistência técnica e à tecnologia apropriada. Como mostra a pesquisa de campo da dissertação, a ausência de políticas públicas consistentes limita o alcance transformador da reforma agrária. Apesar disso, a própria gestão comunitária dos lotes, o associativismo e o engajamento em cooperativas apontam para práticas de fortalecimento da economia solidária no território.
No plano social, a transição trouxe implicações expressivas para a vida cotidiana dos agricultores. A centralidade do trabalho familiar no cultivo da terra implicou uma revalorização dos vínculos de parentesco e da divisão do trabalho com base na colaboração. O tempo deixou de ser ditado pela lógica da usina e passou a ser regulado pelas estações, pelo ritmo da comunidade e pelas necessidades das famílias. A reocupação do território por sujeitos antes subalternizados implicou, portanto, um reposicionamento do trabalhador rural como produtor e cidadão.
Além disso, houve também repercussões simbólicas fundamentais. O espaço anteriormente dominado pelo engenho – símbolo da dominação patronal – foi ressignificado enquanto território de resistência e reconstrução de identidades. A escola comunitária, as casas autoconstruídas, os eventos culturais e as feiras de agricultura familiar se tornaram marcos materiais e imateriais de uma nova territorialidade. Como aponta Silva (2012), o território de Ilhetas tornou-se um espaço ativo e contínuo, que conserva elementos do passado (a presença da cana, a memória da usina), mas também projeta novos horizontes de vida rural.
Outro elemento simbólico relevante é a reconstrução do sentimento de pertencimento. Enquanto o trabalhador das usinas era subordinado, invisibilizado e descartável, o agricultor familiar assume a condição de sujeito histórico. A terra, que antes era propriedade de poucos, torna-se fonte de identidade coletiva, espaço de luta e expressão cultural. Essa reapropriação do território representa uma profunda ruptura com a alienação herdada do sistema patronal e configura uma nova racionalidade no uso do espaço agrário.
No entanto, o estudo não idealiza essa transição. Como ressalta o autor, há permanências importantes: a cana ainda domina parte da paisagem; os desafios estruturais persistem; e a dependência de políticas públicas evidencia a fragilidade do modelo familiar diante das forças do mercado e do capital. A coexistência dos dois modelos no espaço rural – agricultura patronal e agricultura familiar – torna o território híbrido, instável, mas também potencialmente transformador.
Considerações Finais
A transição da agricultura patronal para a agricultura familiar no Assentamento Ilhetas não representa apenas uma mudança na forma de produzir, mas uma inflexão profunda na estrutura social do campo. A análise desenvolvida por Silva (2012) permite observar como a reforma agrária, embora limitada e marcada por tensões, produziu efeitos concretos na vida dos trabalhadores antes submetidos ao regime da monocultura e do assalariamento.
Sob a perspectiva de Karl Marx, o modelo patronal reproduz as lógicas clássicas da exploração capitalista: separação entre o trabalhador e os meios de produção, alienação do tempo de vida e organização do trabalho em função da mais-valia. Já para Kautsky, o pequeno produtor tende a ser absorvido pelo capital, tornando-se apenas uma variante da racionalidade burguesa. Em Ilhetas, contudo, observa-se uma zona de tensão entre essas duas perspectivas. A agricultura familiar ali instalada não corresponde integralmente ao modelo camponês autônomo idealizado por Marx nem ao pequeno capitalista descrito por Kautsky. É, antes, um espaço de síntese entre resistência e adaptação.
A perspectiva de Chayanov, que compreende o camponês como agente de uma economia moral, baseada na organização familiar do trabalho e na busca pela reprodução social, parece dialogar mais diretamente com o que se verifica em Ilhetas. A centralidade da família, a gestão autônoma da produção e a resistência à lógica do lucro imediato compõem elementos desse paradigma. No entanto, as dificuldades impostas pelo mercado, pela política agrária e pelas heranças do modelo patronal indicam os limites dessa forma de resistência.
Do ponto de vista geográfico, a contribuição de Milton Santos (2002) é fundamental. A noção de espaço como totalidade, como algo dinâmico, reprodutor, ativo e contínuo, ajuda a compreender Ilhetas como um território híbrido, onde passado e presente se entrelaçam. A coexistência de práticas patronais (como o cultivo da cana em moldes tradicionais) com experiências agroecológicas e autogestionárias revela que o espaço não é estático, mas campo de disputa e possibilidade.
As repercussões socioespaciais observadas no assentamento demonstram que o território é, acima de tudo, produto da ação humana em contexto de conflitos e negociações. A superação do modelo patronal não se dá por decreto ou ruptura súbita, mas por um processo contínuo de transformação, onde permanências e mudanças se entrelaçam. O reconhecimento dessas ambivalências é essencial para evitar leituras idealizadas tanto da agricultura familiar quanto da reforma agrária.
Assim, o caso Ilhetas nos ensina que a transformação social no campo requer mais do que redistribuição fundiária. Exige o fortalecimento das políticas públicas, o incentivo à agroecologia, o acesso a crédito e mercados, a valorização dos saberes locais e a construção de uma nova cultura territorial. Em última instância, trata-se de reconhecer que o direito à terra é também o direito de produzir, de viver e de pertencer.
Referências Bibliográficas
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SILVA, Heverton Ralph Arcanjo Batista da. Repercussões sócio-espaciais na Zona da Mata Pernambucana: a transição da agricultura patronal para a agricultura familiar no Assentamento Ilhetas. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.