Introdução: agricultura urbana em foco
A agricultura urbana, enquanto prática social multifacetada, tem se afirmado nos espaços urbanos como forma de resistência, reinvenção e enfrentamento das contradições produzidas pelo modelo hegemônico de urbanização. No Brasil, particularmente nas grandes cidades, sua presença desafia uma concepção dominante que associa a agricultura exclusivamente ao espaço rural. Como aponta Genaro (2020), esse deslocamento de sentido não é apenas geográfico, mas também político, histórico e simbólico. A presença de práticas agrícolas em territórios marcados por desigualdades urbanas revela uma dinâmica social que articula memória, pertencimento, sustentabilidade e direito à cidade.
A agricultura urbana não deve ser compreendida apenas como uma prática de subsistência, mas como fenômeno complexo que se insere em lógicas territoriais, redes de solidariedade, movimentos sociais e arenas públicas de debate. Ela mobiliza saberes tradicionais e técnicos, transforma quintais, vielas e terrenos abandonados em espaços produtivos e, sobretudo, reconecta o urbano ao rural, como bem demonstra a trajetória dos agricultores cariocas nos sertões, quintais e favelas do Rio de Janeiro.
É nesse contexto que a presente análise se inscreve, problematizando os sentidos e impactos da agricultura urbana a partir de uma perspectiva sociológica. A discussão parte da compreensão histórica dessas práticas, aprofunda suas interfaces com o campo das políticas públicas e com os movimentos sociais urbanos, e busca evidenciar como a agricultura urbana tem sido uma estratégia fundamental de resistência à invisibilidade, à expropriação e à desestruturação dos modos de vida que insistem em florescer mesmo entre o concreto e o asfalto.
Conforme destaca Santos (2011), os chamados “sertões cariocas”, historicamente marginalizados pelos planos diretores urbanos, foram palco de uma agricultura resiliente, constantemente pressionada pela especulação imobiliária e pelas transformações socioespaciais. Ainda assim, os agricultores urbanos resistiram – e resistem – tecendo redes, alianças e formas coletivas de reexistência. Genaro (2020) reconstrói esse percurso com rigor metodológico e sensibilidade etnográfica, revelando o entrelaçamento entre agricultores, ativistas, agentes públicos e instituições, que constituem a arena pública da agricultura urbana na cidade do Rio de Janeiro.
Ao mobilizar autores como Norbert Elias (1994), Michel Foucault (1996), Bela Feldman-Bianco (1987) e Max Gluckman (1987), Genaro estrutura uma análise crítica que associa o processo histórico à dimensão performática das interações em conselhos, conferências e redes de articulação. Essa abordagem permite perceber a agricultura urbana não apenas como prática, mas como discurso, identidade e projeto coletivo em disputa no espaço urbano.
Neste artigo, essa abordagem será aprofundada à luz da sociologia, com foco na agricultura urbana como fenômeno social total. Partiremos de um resgate histórico das agriculturas urbanas no Brasil, avançaremos para a análise das disputas políticas e territoriais que marcam essas práticas e encerraremos discutindo os desafios e as potências da agricultura urbana enquanto estratégia de transformação social e ecológica nas cidades contemporâneas.
Raízes históricas da agricultura urbana no Brasil
O fenômeno da agricultura urbana, ainda que intensificado nas últimas décadas, possui raízes históricas profundas que remetem às transformações territoriais, econômicas e culturais ocorridas desde o processo de colonização do Brasil. Ao longo dos séculos, práticas agrícolas coexistiram com os centros urbanos, compondo um cenário onde o rural e o urbano não se apresentavam como esferas antagônicas, mas como elementos articulados da formação social brasileira.
No Rio de Janeiro, por exemplo, desde o século XVIII já se observava uma agricultura consolidada em regiões como Jacarepaguá, Campo Grande, Guaratiba e Irajá. Essas áreas, conhecidas posteriormente como Sertão Carioca, desempenharam papel fundamental no abastecimento da cidade, sendo compostas inicialmente por grandes engenhos controlados por ordens religiosas, como os beneditinos e carmelitas (Genaro, 2020). Com o declínio dessas estruturas e a fragmentação das propriedades, emergiu uma configuração baseada na pequena produção agrícola, articulada por imigrantes portugueses e migrantes nordestinos.
Esse processo deu origem a uma agricultura de subsistência e mercado, com destaque para a lavoura branca – expressão que designava o cultivo de hortaliças e legumes – responsável por abastecer feiras populares e centros comerciais da cidade (Galvão, 1957 apud Genaro, 2020). A dinâmica da agricultura carioca, ao longo do tempo, foi sendo atravessada por conflitos fundiários, pressões do capital imobiliário e disputas em torno do uso da terra. Como destaca Pedroza (2010), a partir das décadas de 1940 e 1950, a especulação imobiliária e o avanço da urbanização começaram a ameaçar de forma mais incisiva os territórios agrícolas, levando ao surgimento de formas organizadas de resistência por parte dos agricultores.
É importante frisar que essa história não é linear nem homogênea. A agricultura urbana no Brasil expressa múltiplas formas de existência e resiliência, assumindo diferentes significados em cada contexto socioespacial. Na década de 1980, com o processo de redemocratização e a valorização dos movimentos sociais, novas formas de organização dos agricultores urbanos ganharam força, articulando demandas por reconhecimento, políticas públicas e direito à cidade. Como observa Scherer-Warren (2007), os movimentos sociais se estruturam em redes mobilizatórias que criam sentidos coletivos de identidade e disputa social. Foi nesse período que emergiram iniciativas como as hortas comunitárias, os mutirões de plantio e as experiências agroecológicas em favelas e bairros periféricos.
Na virada para o século XXI, a agricultura urbana passou a ganhar visibilidade em políticas públicas federais, ainda que de forma fragmentada. Programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) possibilitaram a inserção da produção urbana e periurbana em circuitos institucionais de comercialização, ainda que essas iniciativas tenham enfrentado barreiras burocráticas e institucionais nos municípios, como demonstra a ausência de uma Secretaria Municipal de Agricultura no Rio de Janeiro até os dias atuais (Genaro, 2020).
A leitura sociológica desse processo evidencia a tensão permanente entre a lógica capitalista da cidade – pautada pela mercantilização da terra, pela segregação espacial e pela homogeneização do espaço urbano – e as práticas contra-hegemônicas de produção alimentar, territorialidade e pertencimento. A agricultura urbana, nesse sentido, inscreve-se como uma prática insurgente, que tensiona os modelos de desenvolvimento e impõe à sociologia o desafio de compreender as formas de reprodução da vida para além da economia de mercado.
Na análise de Ketyline Genaro (2020), a partir do caso carioca, torna-se evidente que os agricultores urbanos operam dentro de uma arena pública complexa, composta por conselhos, conferências, instituições acadêmicas e redes sociais. Essa arena, por sua vez, é marcada por disputas de discursos, reconhecimento e poder. A agricultura urbana, portanto, não é apenas um conjunto de técnicas agrícolas adaptadas ao espaço urbano, mas um campo de disputas simbólicas, políticas e territoriais, onde se confrontam diferentes projetos de cidade.
A tradição sociológica brasileira, ao tratar da questão agrária, frequentemente concentrou-se nos conflitos no campo, nas lutas por reforma agrária e nas estruturas do latifúndio. A emergência da agricultura urbana como objeto de estudo revela a necessidade de atualização dos referenciais analíticos, incorporando as transformações nas relações campo-cidade e os novos sujeitos sociais que emergem dos territórios urbanos. Como afirmam Costa e Almeida (2012), a agricultura urbana não pode mais ser vista como prática marginal, mas como expressão de processos sociais relevantes, que envolvem acesso à terra, soberania alimentar, protagonismo popular e justiça socioambiental.
Dessa forma, o panorama histórico da agricultura urbana no Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, revela uma trajetória de resistência, reinvenção e construção coletiva. São sujeitos, práticas e territórios que, mesmo diante da negação institucional e da invisibilidade política, seguem cultivando não apenas alimentos, mas também vínculos, autonomia e cidadania.
A construção da agricultura urbana como arena pública: conselhos, redes e disputas no caso carioca
A compreensão da agricultura urbana no contexto das Ciências Sociais exige o reconhecimento de que ela se constitui não apenas como prática produtiva, mas como processo político e cultural que se articula em múltiplos níveis. O conceito de arena pública, proposto por Fuks (2001), oferece importante ferramenta analítica para interpretar como diferentes agentes sociais disputam sentidos, recursos e legitimidade em torno da agricultura nas cidades. No caso do município do Rio de Janeiro, tal arena foi configurada por conselhos, fóruns, redes, conferências e articulações institucionais que expressam, simultaneamente, convergências e tensões entre os sujeitos envolvidos.
Segundo Genaro (2020), a criação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR-Rio), em 2002, foi um marco significativo nesse processo, revelando a tentativa de institucionalização da pauta da agricultura urbana na gestão municipal. Contudo, a ausência de uma Secretaria Municipal de Agricultura e a descontinuidade administrativa impediram a consolidação de políticas duradouras para o setor. Foi somente a partir de 2018 que o conselho foi reativado, desta vez com forte protagonismo da sociedade civil e articulação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Emprego e Inovação (SMDEI), demonstrando a centralidade das lutas por visibilidade e reconhecimento político-institucional.
A reativação do CMDR, como mostra a autora, não se deu de forma pacífica ou consensual. Ao contrário, foi atravessada por conflitos, desconfianças e disputas de interesses, sobretudo em relação ao papel do Estado e à definição das demandas prioritárias dos agricultores. O acompanhamento das reuniões pré-conferência e da Conferência Municipal de Política Agrícola e Desenvolvimento Rural (2018), descrito etnograficamente por Genaro, revela uma intensa produção discursiva em que os sujeitos – agricultores, técnicos, ativistas, pesquisadores – constroem e disputam narrativas sobre o que deve ser a agricultura urbana, quem a representa e quais políticas devem ser formuladas.
Esse processo remete às análises de Foucault (1996) sobre os discursos e as relações de poder. Ao participar das reuniões e acompanhar os debates, a pesquisadora observa como determinados saberes são valorizados em detrimento de outros, como certas formas de agricultura – como a agroecológica ou a familiar – ganham maior legitimidade simbólica, enquanto outras são desqualificadas ou invisibilizadas. A arena pública, nesse sentido, não é apenas um espaço de debate, mas de hegemonia e contra-hegemonia, onde se produzem verdades, identidades e hierarquias.
Além do CMDR, outros espaços e redes se articulam em torno da agricultura urbana no Rio de Janeiro. A Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), por exemplo, reúne coletivos, associações e projetos comunitários que compartilham experiências e estratégias, fortalecendo a dimensão colaborativa da agricultura urbana. A Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), por sua vez, conecta práticas agroecológicas urbanas e rurais, promovendo intercâmbios entre saberes tradicionais e científicos. Essas redes funcionam como estruturas flexíveis de resistência e mobilização, permitindo a articulação entre diferentes formas de ação política, conforme aponta Scherer-Warren (2007).
Genaro (2020) destaca ainda que a configuração dessa arena envolve uma pluralidade de agentes e interesses. Não se trata de um campo unificado, mas de um mosaico de experiências, disputas e colaborações. Em alguns casos, os próprios agricultores resistem a uma classificação única, reivindicando o direito de definir suas práticas e identidades a partir de suas vivências concretas. Em outros, há tensionamentos sobre o papel das instituições acadêmicas, das ONGs e dos agentes públicos nas decisões políticas. O que se observa, portanto, é a constituição de um campo dinâmico, instável e permanentemente em disputa, onde o que está em jogo é o próprio significado da agricultura na cidade.
Essa realidade é corroborada pelas análises de Feldman-Bianco (1987), ao afirmar que o estudo das interações concretas e situadas entre sujeitos sociais revela os sentidos contraditórios da ação coletiva. Ao observar as reuniões do CMDR, Genaro identifica não apenas os discursos oficiais, mas também os “interditos”, os silêncios, os conflitos latentes e as alianças improvisadas, aspectos que muitas vezes escapam às análises puramente institucionais. Esse olhar etnográfico possibilita compreender a política como prática cotidiana, como produção situada de significados e estratégias.
Do ponto de vista sociológico, a arena pública da agricultura urbana configura-se como espaço privilegiado para observar a articulação entre estruturas e agências, entre processos históricos e ações situadas. A trajetória dos agricultores cariocas, marcada por invisibilidade e resistência, revela como sujeitos historicamente marginalizados constroem formas próprias de participação, negociação e reivindicação. Essa construção não é linear nem pacífica, mas atravessada por desigualdades, assimetrias de poder e disputas simbólicas que expressam as contradições da sociedade brasileira contemporânea.
Ao mesmo tempo, as experiências de organização e mobilização desses sujeitos indicam a potência da agricultura urbana como ferramenta de transformação social. A reativação do CMDR, a realização da Conferência, a produção de documentos coletivos e a criação de espaços de escuta e diálogo entre Estado e sociedade civil são exemplos de como a agricultura urbana pode provocar deslocamentos nas formas tradicionais de formulação de políticas públicas, incorporando os saberes populares e os sujeitos historicamente excluídos dos processos decisórios.
Em suma, a construção da agricultura urbana como arena pública no Rio de Janeiro demonstra a complexidade e a centralidade dessa prática na disputa por modelos de cidade, por justiça social e por sustentabilidade. Ela não apenas revela os conflitos entre diferentes projetos de urbanização, mas também aponta caminhos para a construção de alternativas que articulem produção de alimentos, justiça territorial e protagonismo popular.
Sentidos sociopolíticos e culturais da agricultura urbana: identidade, pertencimento e sustentabilidade
A agricultura urbana, como fenômeno social e político, ultrapassa sua dimensão técnica e produtiva, projetando-se como uma prática geradora de pertencimento, identidade coletiva e sustentabilidade territorial. Nos contextos urbanos periféricos, especialmente nas grandes cidades brasileiras, cultivar a terra significa resistir à homogeneização espacial imposta pela lógica mercantil da urbanização e afirmar modos de vida historicamente marginalizados. Ao plantar, os sujeitos urbanos reconstroem sua relação com o território e com o tempo, resgatando saberes, memórias e vínculos comunitários que foram deslocados pela modernização excludente.
Essa perspectiva está presente na análise de Genaro (2020), que demonstra como a agricultura praticada nas favelas e nos quintais do Rio de Janeiro mobiliza significados profundos de pertencimento e reconfigura o uso do espaço urbano. Em regiões como Vargem Grande, Jacarepaguá e Guaratiba, a permanência das práticas agrícolas ao longo de décadas revela uma continuidade sociocultural invisibilizada pelos discursos dominantes sobre progresso e desenvolvimento. Esses agricultores, embora muitas vezes desprovidos de reconhecimento institucional, têm produzido formas alternativas de urbanidade, onde a cidade não é apenas um espaço de consumo, mas também de produção e cuidado.
A produção agrícola nesses territórios atua como ferramenta de enraizamento e apropriação simbólica da cidade. Conforme destaca Fernandes (2005), a territorialidade é construída pela ação cotidiana dos sujeitos que habitam e transformam o espaço. No caso da agricultura urbana, essa ação é marcada pela criação de vínculos afetivos com a terra, pela valorização da coletividade e pela ressignificação de práticas ancestrais. O simples ato de cultivar hortaliças ou plantar árvores frutíferas no quintal ou numa horta comunitária é, nesse sentido, um gesto político que inscreve o sujeito no território e afirma seu direito de existir nele.
A identidade dos agricultores urbanos é moldada pela experiência do fazer agrícola em meio às adversidades da cidade. Não raro, esses sujeitos vivenciam situações de estigmatização, criminalização ou invisibilidade. Como ressalta Genaro (2020), muitos desses agricultores são confundidos com invasores ou ocupantes ilegais, mesmo estando há décadas no mesmo local, produzindo alimentos e contribuindo para a segurança alimentar de suas comunidades. A agricultura urbana, portanto, carrega também a função de afirmação identitária, de denúncia e de resistência simbólica frente aos processos de exclusão e apagamento.
Além do pertencimento, a agricultura urbana está profundamente conectada à ideia de sustentabilidade, entendida aqui em seu sentido mais amplo: ambiental, social e cultural. O cultivo de alimentos sem o uso de agrotóxicos, a valorização da biodiversidade, o uso racional da água, o reaproveitamento de resíduos orgânicos e a educação ambiental são práticas comuns nos projetos de agricultura urbana agroecológica. Essas práticas, por sua vez, não se limitam à técnica, mas integram um projeto ético e político de transformação das relações entre humanos e natureza.
De acordo com Leff (2001), a sustentabilidade é um campo de disputas epistemológicas e culturais, onde diferentes racionalidades se confrontam. A agricultura urbana, especialmente em sua vertente agroecológica, coloca em xeque o modelo produtivista e linear da agricultura industrial, propondo uma lógica circular, relacional e comunitária. Ao mesmo tempo, desafia a lógica espacial do planejamento urbano tradicional, propondo novas centralidades e usos para o solo urbano.
No Rio de Janeiro, experiências como o Projeto Hortas Cariocas, a Horta da Laje, a Horta do Batan, entre outras, revelam o potencial da agricultura urbana como estratégia de sustentabilidade social e ambiental. Esses espaços não apenas produzem alimentos, mas promovem encontros, fortalecem redes comunitárias, criam oportunidades de geração de renda e incentivam a participação cidadã. Como bem nota Genaro (2020), esses territórios cultivados tornam-se polos de articulação política, onde saberes populares, técnicas ancestrais e discursos de resistência se entrelaçam.
A presença da agricultura urbana nas favelas, nos sertões urbanos e nos quintais evidencia também a pluralidade de atores envolvidos nesse processo. Mulheres, idosos, migrantes, jovens e crianças participam ativamente dessas práticas, o que amplia a compreensão sociológica da agricultura como um fenômeno multigeracional, interseccional e profundamente enraizado na vida cotidiana. A agricultura urbana, assim, se insere como prática transversal, que toca temas como saúde, educação, alimentação, meio ambiente, cultura e justiça social.
Importa destacar, nesse contexto, a análise de Elias (1994) sobre o entrelaçamento das trajetórias individuais e coletivas nos processos históricos. A permanência das agriculturas nos territórios cariocas, mesmo diante da urbanização excludente, não se deve a uma “tradição inerte”, mas ao dinamismo das redes sociais e à capacidade dos sujeitos de adaptar-se e transformar seu entorno. A identidade do agricultor urbano, portanto, é histórica, relacional e processual, construída no cruzamento entre memória, resistência e projeto de futuro.
Essa construção identitária encontra, na agricultura urbana, um espaço de afirmação e expressão, sobretudo para populações historicamente despossuídas. Ao ocupar terrenos baldios, replantar áreas degradadas ou transformar quintais em pomares, esses sujeitos afirmam sua presença na cidade, reivindicam o direito ao território e projetam um modelo alternativo de desenvolvimento urbano, centrado no bem comum, na cooperação e no cuidado com a vida.
Em suma, a agricultura urbana, em sua dimensão sociopolítica e cultural, constitui-se como espaço de resistência simbólica, prática de cuidado e afirmação de pertencimento. Cultivar a terra em meio ao concreto é, ao mesmo tempo, um ato de denúncia e de esperança: denúncia de um modelo de cidade que exclui e apaga, e esperança em novas formas de viver, produzir e conviver. A sociologia, ao incorporar essa perspectiva, amplia sua capacidade de interpretar os conflitos urbanos contemporâneos e de vislumbrar alternativas para a construção de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas.
Considerações finais: agricultura urbana como horizonte de transformação social
A análise da agricultura urbana a partir da perspectiva das Ciências Sociais permite revelar não apenas um conjunto de práticas agrícolas em meio ao tecido urbano, mas sobretudo um processo social denso, político e culturalmente complexo. O que se apresenta, muitas vezes, como uma solução pontual para a insegurança alimentar ou como uma prática ambientalmente correta, é, na verdade, parte de uma engrenagem maior de resistência, reconstrução de vínculos comunitários e contestação às desigualdades urbanas.
O percurso histórico da agricultura urbana, especialmente no caso carioca analisado por Genaro (2020), mostra que essas práticas não surgem como inovação recente, mas como desdobramentos de continuidades históricas, trajetórias familiares, processos migratórios e disputas por espaço e dignidade. Desde os engenhos coloniais até os atuais quintais e hortas comunitárias, a agricultura na cidade tem sido elemento estruturante da vida de populações invisibilizadas pelo planejamento urbano hegemônico.
A sociologia, ao analisar esse fenômeno, cumpre papel fundamental ao deslocar o foco das grandes estruturas para as práticas cotidianas que produzem sentido, resistência e transformação. Como aponta Foucault (1996), o poder se exerce nas micro-relações, nos discursos e nos corpos; é nesses interstícios que a agricultura urbana se torna significativa. Ela desafia a normatividade urbana, não apenas por ocupar terrenos “impróprios”, mas por propor novas racionalidades para o uso do solo, para a relação com o alimento e para o próprio conceito de cidade.
No caso do Rio de Janeiro, a pesquisa de Genaro (2020) revela como a mobilização social em torno da agricultura urbana foi capaz de produzir espaços institucionais inéditos, como a reativação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural, as conferências e as redes de articulação. Ainda que marcadas por disputas e contradições, essas iniciativas sinalizam a potência transformadora da ação coletiva e do protagonismo popular. Trata-se de processos onde os sujeitos historicamente marginalizados não apenas reivindicam direitos, mas constroem novas formas de política, conhecimento e pertença.
A agricultura urbana também questiona a separação entre o urbano e o rural, propondo a coexistência entre produção agrícola e vida urbana. Como defendem Costa e Almeida (2012), é preciso abandonar a ideia de que a agricultura é um fenômeno exclusivamente rural. A cidade, com suas múltiplas expressões espaciais e sociais, é também lugar de cultivo, de cuidado e de experimentação. Nessa perspectiva, práticas como hortas comunitárias, agroflorestas urbanas, agricultura em telhados ou em pequenos quintais devem ser reconhecidas como formas legítimas de produzir alimentos, regenerar ecossistemas e fortalecer comunidades.
Entretanto, os desafios para a consolidação da agricultura urbana como política pública estruturante são diversos. O primeiro deles diz respeito à instabilidade institucional e à ausência de políticas continuadas que garantam suporte técnico, jurídico e financeiro aos agricultores urbanos. Como evidencia Genaro (2020), a falta de uma secretaria específica, o despreparo técnico das instâncias municipais e a descontinuidade das ações comprometem o avanço das iniciativas locais.
Outro desafio é o enfrentamento da lógica do capital imobiliário, que continua a pressionar os territórios agrícolas urbanos, especialmente nas periferias. A luta pelo direito à terra urbana e pela permanência dos agricultores em seus territórios torna-se, assim, central para o futuro da agricultura urbana. Essa disputa envolve não apenas a defesa de espaços físicos, mas também a valorização de modos de vida, saberes ancestrais e formas de sociabilidade que resistem à mercantilização da cidade.
Há ainda a necessidade de ampliar o reconhecimento da agricultura urbana como componente estratégico das políticas de segurança alimentar, de saúde pública e de educação ambiental. A produção local de alimentos frescos, sem agrotóxicos, associada a práticas educativas e culturais, contribui diretamente para a promoção da saúde e para o fortalecimento da soberania alimentar nas comunidades.
Por fim, é essencial fortalecer as redes, articulações e espaços de construção coletiva que têm sustentado as práticas de agricultura urbana no Brasil. A experiência da Rede CAU, das hortas comunitárias do Projeto Hortas Cariocas, da Articulação de Agroecologia e de outros coletivos pelo país demonstram que a cooperação, a troca de saberes e a auto-organização são caminhos promissores para a consolidação da agricultura urbana como prática cidadã e emancipatória.
Neste sentido, a agricultura urbana deve ser compreendida como um horizonte de transformação social. Ela articula o cotidiano ao estrutural, o individual ao coletivo, o local ao global. Mais do que cultivar alimentos, ela cultiva esperança, solidariedade e justiça. Cabe às Ciências Sociais continuar a revelar essas dimensões, contribuindo para o fortalecimento de práticas que, mesmo pequenas em escala, são gigantes em significado.
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