O que Chico de Oliveira fez com o diploma de sociólogo? Uma breve biografia-homenagem
Cristiano das Neves Bodart
O nordestino Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, mais conhecido como Chico deOliveira, nasceu na cidade do Recife no dia 07 de novembro de 1933. Filho dos católicos José Santanade Oliveira, comerciante, e Jovina Cavalcanti de Oliveira, dona-de-casa, teve dez irmãos, sendo o sexto filho do casal (MENDES, 2015). Seu nome é resultado de inspiração religiosa, mais especificamenteno santo São Francisco de Assis. Oliveira foi católico até seus 16 dezesseis anos, quando ingressou nauniversidade (OLIVEIRA, 2007).Chico de Oliveira começou a trabalhar junto ao seu pai aos 14 anos, desempenhando a funçãode ajudante na farmácia da família que se localizava na região Porto do Recife. Devido à crise nasimportações, causada pela II Guerra Mundial, o negócio da família foi à falência (OLIVEIRA, 2007).Chico de Oliveira cursou Ciências Sociais entre os anos de 1952 e 1956 na Faculdade de Filosofia daUniversidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. Em entrevista a Ruy Braga,afirmou: “Fiz um curso de Ciências Sociais na minha universidade que não me deu muita sociologia,mas me deu o socialismo, o que foi uma troca extremamente proveitosa para mim”. Foi justamente osocialismo que guiou sua trajetória de militante e intelectual. Destacou Schwarcz (1992) que “emvárias ocasiões Chico acertou na análise quase sozinho, sustentando posições e argumentos contráriosà voz corrente na esquerda”. A formação com “pouca sociologia” estava inserida em um contextomarcado por um curso onde,
[…] praticamente, todos ou quase todos os professores de Ciências Sociais e Econômicas daUR [Universidade do Recife] não passavam de egressos da Faculdade de Direito que, emtermos de Sociologia e Economia, se aproveitaram de poucas disciplinas um tanto quantodesprestigiadas em Direito e de um certo autodidatismo quase que inteiramente conduzidopelas suas nomeações como catedráticos interinos, quando da incorporação daquelasespecialidades à UR (PERRUCI, 1986, p. 513).
A despeito da formação intelectual – tida por ele como deficiente – , foi no curso de CiênciasSociais que Chico de Oliveira teve sua primeira experiência em movimentos coletivos, ingressando emum pequeno grupo estudantil, o Movimento Socialista Estudantil de Pernambuco, de origem católica(MENDES, 2015).Trabalhou como bancário dos 14 aos 21 anos, tendo atuado como técnico do Banco doNordeste. Cursando, na época, a graduação, acreditava que pouco ou nada se poderia com um diplomade Ciências Sociais da Faculdade do Recife.
Estava no 3o ano de Ciências Sociais e morava com meus pais. Estudava e trabalhava noBanco do Nordeste. Fui bancário dos 14 aos 21 [anos]. Quando entrei no Banco do Nordeste
me dei por satisfeito. Parecia uma carreira sólida. Tínhamos seis horas de trabalho, do meio-dia às 18 horas. Estudava ànoite e lia o que dava pela manhã. Não era dramático estudar e
Aos 21 anos de idade, Francisco de Oliveira não tinha certeza de seu futuro, sobretudo o quese poderia realizar com um diploma de Ciências Sociais. Sua trajetória responderia sua pergunta.Suas incertezas começam a se dissipar quando, junto ao Celso Furtado, conseguiu uma vagapara atuar na Sudene (1959 – 1964). Para ele:
Foi a melhor experiência pessoal que tive. Trabalhar no olho do furacão. Porque estava noNordeste, eram as Ligas Camponesas de um lado, o diabo-a-quatro de outro, a pressão sobrea SUDENE era violentíssima. A gente estava no meio de quatro ou cinco fogos, não eraapenas um lado. Tinha a Liga Camponesa de um lado e a Igreja Católica, que era muito ativa,do outro. E um movimento estudantil muito forte. A burguesia açucareira – que estavaquerendo retomar o tempo perdido – foi importante, os latifundiários. O Partido Comunistaera forte, com um pé atrás: desconfiava do Celso [Furtado], mas apoiava. Então era um pausó. (OLIVEIRA, 2007).
Sua entrada na Sudene deu-se, em grande medida, pelo currículo que possuía: graduado emCiências Sociais, com experiência em órgãos de desenvolvimento regional, e com cursos deespecialização em economia ofertado pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe(CEPAL). Ali, Chico de Oliveira começou a ver utilidade no curso de Ciências Sociais. Eram seusprimeiros passos como sociólogo e começava a pensar questões importantes para o Brasil, em especialpara o Nordeste. Seu encontro com Celso Furtado foi narrado por ele da seguinte maneira:
Eu pedi uma entrevista com ele [Furtado], que me recebeu. ―O que queria?. Eu disse quetinha sabido disso [da criação da SUDENE] e que estava disposto a trabalhar. ―O que vocêfaz? ―Eu faço isso e tal, fiz o curso da CEPAL, fui bem sucedido, tive notas tais e taisǁ. Nãose comoveu, estava impassível. […] Disse ele então: ―está bem, vai falar com José Medeiros.Era o futuro chefe de pessoal, eu estava contratado! […] Eu, besta, assim, nunca conseguiemprego tão fácil (OLIVEIRA citado em PERRUSO, 2013, p. 182).
Após sua experiência na Sudene, Oliveira pensou, após breve conversa com FlorestanFernandes, em cursar o mestrado na USP, tomando por objeto de estudo essa instituição. Contudo,seu projeto se perdeu nas mãos de um amigo, Gabriel Bolaffi. Em 2012, em entrevista a Ridenti eMendes (p. 602), reconheceu que foi melhor não ter feito a pesquisa naquele momento. Segundo ele“[…] foi melhor, vendo em retrospectiva. Eu ia fazer uma coisa muito furtadiana. Eu não tinha aindao afastamento suficiente”. Tal projeto foi retomado anos depois, em 1977, por meio de um estudointitulado “Elegia Para Uma Re(li)gião” (publicado como livro em 1987 pela editora Paz e Terra e
reeditado em 2008 pela Boitempo), que se tornaria sua obra mais importante sobre o planejamentoregional no Brasil. Nela, deixou registrado ser resultante de sua paixão:
Este trabalho foi escrito sob o signo da paixão: paixão de Orieta, do Nordeste, paixão dosoperários, trabalhadores e camponeses do Nordeste. Paixão no mais amplo e estrito sentido.Paixão no sentido de Gramsci: o de colocar-se em uma posição e, mediante essa colocação epor causa dela, tentar entender uma tragédia. O processo social que se procura entender nãoé um objeto de investigação: é uma causa, uma paixão. Esse posicionamento causará arrepiose um dar de ombros por parte de muitos: é uma obra engajada, que não é, portanto, residênciada ciência. Haveria uma multidão de argumentos teóricos para replicar, mas prefiro nãoseguir esse caminho. Não indaguei, pois, do surgimento da paixão: apaixonei-me apenas; eentrei na corrente, deixei o barco correr (OLIVEIRA, 2008, p. 125).
Após o golpe de 1964, ficou preso por dois meses. Só não foi torturado por conta daintervenção de um de seus irmãos, que era capitão da polícia. Posteriormente, deixou a cidade doRecife e “exilou-se” no Rio de Janeiro por um curto espaço de tempo, tendo ficado ali de formaprovisória, sem emprego e fazendo bicos (RIDENTI; MENDES, 2012). Contudo, Oliveira não seafastou do pensamento de esquerda, antes passou no Rio a se reunir com um grupo coordenado porÊnio Silveira, composto majoritariamente por integrantes do Partido Comunista Brasileiro. Nesseperíodo, escreveu um artigo para a primeira edição da Revista Civilização Brasileira, cujo escopo foiuma oposição ao regime militar e ao governo Castello Branco (RIDENTI; MENDES, 2012).Após perder seu emprego na Sudene e ser preso, Oliveira – graças à rede que havia construídonaquela instituição – buscando sua subsistência trabalhou no Chile, na Guatemala e no México, alémde atuar em empresas privadas. Foi um período de muitas incertezas. Já aos 36 anos, em 1970, foiconvidado para atuar no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) com FernandoHenrique Cardoso e Octavio Ianni, trabalhando ali até 1983. No Cebrap, Oliveira ficou a cargo deproblematizar e pensar o planejamento regional, enquanto que Octavio Ianni o planejamento nacional(RIDENTI; MENDES, 2012). Dez anos depois, retornava para esse centro de pesquisa comopresidente (1993-1995). O Cebrap teve um impacto significativo no pensamento de Oliveira,chegando a afirmar ter sido um divisor de águas em sua trajetória intelectual. Em 2012, em entrevista,afirmou a esse respeito: “Eu acho que foi a grande aquisição que tive nos anos 1970” (RIDENTI;MENDES, 2012). Em nota de rodapé, no seu ensaio “A economia brasileira: crítica a razão dualista”,assim deixou registrado:
Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta às indagações de caráter interdisciplinarque se formulam ao Cebrap, acerca do processo de expansão socioeconômica do capitalismono Brasil. Beneficia-se, dessa maneira, do peculiar clima de discussão intelectual que éapanágio do Cebrap […] (OLIVEIRA, 1972).
Chico de Oliveira levou ao Cebrap a experiência de vida socialista, marcada por atuações juntoà classe operária do Recife. Para ele, seus colegas do Cebrap ainda conheciam, no início, pouco o Brasilreal, embora dotados de um marxismo acadêmico de bom nível (RIDENTI; MENDES, 2012).No Cebrap atuou como bolsista, recurso originário da Ford. Segundo ele, “o dinheiro vinhavia Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Cândido Mendes transferia para o Cebrap. Era uma operaçãoarriscada. A ditadura sabia” (RIDENTI; MENDES, 2012, p. 603). Sua relação com a ditadura foibastante conflituosa. Sua prisão em 1964 não se constituiu na única repressão às suas ideias e ações.Em 1974, foi novamente preso pelos militares, acusado de participar de um grupo de leitura de “OCapital”, de Karl Max. Ficou preso por dois meses no DOI-CODI, em São Paulo, onde foi torturado.Nos anos de 1980, engajou-se politicamente nos movimentos de base, tendo sido um dosfundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo integrado a 1a Diretoria Executiva da FundaçãoWilson Pinheiro – fundação de apoio partidária instituída pelo PT em 1981, antecessora da FundaçãoPerseu Abramo.Em 1980, Francisco de Oliveira entrou para o quadro de professores do curso de pós-graduaçãoem Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e logo depois migrou para aUniversidade de São Paulo, fundando, em 1995, junto com diversos outros professores2, o Núcleo deEstudos dos Direitos da Cidadania (NEDIC), que em 2000 passou a ser denominado Centro deEstudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da Universidade de São Paulo (USP). Chico de Oliveirachegou a desempenhar a função de coordenador-executivo do Cenedic, permanecendo comointegrante/pesquisador até sua morte.Entre 1986 a 1990 Chico de Oliveira atuou no Comitê de Avaliação do Concurso paraDotações para Pesquisa da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa e Ciências Sociais(ANPOCS).Chico de Oliveira atuou cerca de 24 anos como professor de Sociologia do Departamento deSociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo(FFLCH-USP), onde ministrou diversas disciplinas, tais como “Estrutura de Classes”, “Estrutura deClasses e Estratificação Social”, “Introdução às Ciências Sociais” e “Classes médias e CapitalismoContemporâneo”, destacando-se como um dos mais importantes sociólogos brasileiros e autor de vasta
obra, sobressaindo “A economia da dependência imperfeita”, “Os direitos do antivalor”, “A noiva darevolução/Elegia para uma re(li)gião”, “O elo perdido”, “Crítica a razão dualista/O ornitorrinco”, “Anavegação venturas: ensaios sobre Celso Furtado” “Hegemonia ao avesso” e “O avesso do avesso”.Ainda que Chico de Oliveira tivesse trabalhado com Fernando Henrique, e suas críticas a seupensamento eram relativamente pontuais, foi bastante incisivo nas censuras às práticas neoliberais deFHC enquanto presidente da República e sua associação aos grupos oligárquicos mais reacionários dapolítica brasileira. Para ele, “[…] o sociólogo Fernando Henrique não podia nunca ter abdicado dosprincípios que o guiavam enquanto sociólogo (OLIVEIRA, 1996, p. 14)”.Sua divergência política também se estendeu ao ex-presidente Lula, que, segundo suainterpretação, deu continuidade ao projeto privatista de FHC. Por isso, em 2003, por acreditar queLula dava continuidade às práticas neoliberais do seu antecessor, deixou o Partido dos Trabalhadores,filiando-se ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).No ano de 2004 teve sua obra “Crítica à razão dualista/O ornitorrinco”3 reconhecida nacategoria Ciências Humanas com o prêmio Jabuti. Em prefácio a essa obra, Schwarcz (2003) escreveu:Ora, na esteira do próprio Marx, os argumentos de Francisco de Oliveira estão sempremostrando que nada ocorre sem a intervenção da consciência; porém… Presente em tudo,mas enfeitiçada pelo interesse econômico, esta funciona naturalmente e sustenta o descalabroa que ela poderia se contrapor, caso crescesse e mutasse.
Segundo o próprio Chico de Oliveira, sua obra buscava revisar o modo de pensar a economiabrasileira que tomou novos rumos com o processo de industrialização a partir dos anos de 1930.Oliveira denuncia a dicotomia existente entre modernidade e atraso, contudo destacando ser esta umacaracterística constitutiva do Brasil, uma espécie de “ornitorrinco”.Em 2006 lhe foi concedido o título de doutor por notório saber pela Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1992), consagrando o sociólogo que jámarcava profundamente as Ciências Sociais brasileiras.Em 2013, foi o homenageado do IV Curso Livre Marx-Engels, organizado pela editoraBoitempo e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc). Tratava-se de uma homenagem a um sociólogoque soube o que fazer com seu diploma.Sua última obra foi “Brasil: uma biografia não autorizada”, na qual compilou sua visão do país.Nela, deixou registrado uma descrição síntese que merece, como toda a obra, destaque: Desde logo, eis os elementos do truncamento que alimentou a autoironia dos brasileiros, àsvezes cáustica, mas baseada em fatos: uma independência urdida pelos liberais, que se fezmantendo a família real no poder e se transformou imediatamente numa regressão quasetiranicida; um segundo imperador que passou à história como sábio e não deixou palavraescrita, salvo cartas de amor um tanto pífias; uma abolição pacífica, que rói as entranhas damonarquia; uma república feita por militares conservadores, mais autocratas que o próprioimperador (OLIVEIRA, 2018).
Schwarcz escreveu, em 1992, num artigo a respeito de Chico de Oliveira afirmando que:O marxismo aguça o senso de realidade de alguns, e embota o de outros. Chicoevidentemente pertence com muito brilho ao primeiro grupo. Nunca a terminologia doperíodo histórico anterior, nem da luta de classes, do capital ou do socialismo lhe serve parareduzir a certezas velhas as observações novas. Pelo contrário, a tônica de seu esforço está emconceber as redefinições impostas pelo processo em curso, que é preciso adivinhar e descrever.[…] os meninos vendendo alho e flanela nos semáforos não são a prova do atraso do país, masde sua forma atroz de modernização. […]Algo análogo vale para as escleroses regionais, cujaexplicação não está no imobilismo dos tradicionalistas, mas na incapacidade paulista paraforjar uma hegemonia modernizadora aceitável em âmbito nacional. Chico é um mestre dadialética4.
Retomamos a pergunta de Chico de Oliveira, aos seus 21 anos de idade: o que poderia fazercom o diploma de sociólogo no Recife? Chico de Oliveira interpretou o Brasil como poucos,contribuindo com ações e reflexões impactantes. Autor da metáfora “ornitorrinco”, que faz alusão aoBrasil arcaico e moderno, tornou-se um dos mais importantes sociólogos brasileiros e um militanteque em muito influenciou a esquerda nacional. O nordestino Francisco Maria Cavalcanti de Oliveiraentrou no rol da História da Sociologia brasileira, deixando interpretações do Brasil, destacando ocaráter de sua modernização.Chico de Oliveira faleceu numa quarta-feira, em sua residência localizada em São Paulo, em10 de julho de 2019, aos 85 anos, vítima de pneumonia. Seu corpo, como não poderia ser diferente,foi velado no salão nobre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade deSão Paulo (FFLCH – USP), ato simbólico e digno do ilustre e grandioso sociólogo.
ReferênciasFOLHA DE SÃO PAULO. O sociólogo Francisco de Oliveira fala o que queria saber aos 21 anos.23/11/2009.