Dia dos Pais poema de Vinícius de Moraes
Teus velhos sapatos manchados de terra
Meu pai,
dá-me os teus velhos sapatos
manchados de terra
dá-me o teu antigo paletó
sujo de ventos e de chuvas
dá-me o imemorial chapéu
com que cobrias a tua paciência
e os misteriosos papéis
em que teus versos inscreveste.
meu pai,
dá-me a tua pequena
chave das grandes portas
dá-me a tua lamparina de rolha,
estranha bailarina das insônias
meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.
Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes e a Influência de Seu Pai: Laços de Afeto, Cultura e Formação Intelectual
A trajetória de Vinicius de Moraes, um dos maiores nomes da literatura e da música brasileira, é marcada por uma sensível e profunda conexão com sua família, especialmente com seu pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes. A relação entre pai e filho não foi apenas afetuosa, mas constituiu um verdadeiro alicerce para a formação emocional, literária e filosófica do futuro poeta. Neste texto, exploraremos essa relação a partir de elementos biográficos, correspondências e relatos do próprio Vinicius, buscando compreender como a presença paterna influenciou sua sensibilidade, vocação artística e visão de mundo.
Infância e Formação: Um Lar Literário e Afetuoso
Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, no seio de uma família de classe média com inclinações intelectuais e artísticas. Seu pai, Clodoaldo, era um funcionário público e poeta amador, apaixonado por literatura, música e filosofia. Sua mãe, Lídia Cruz, era dona de casa e também bastante dedicada à formação dos filhos. Mas foi Clodoaldo quem teve papel decisivo na introdução de Vinicius ao universo da cultura, das letras e da música erudita.
Vinicius descrevia o pai com admiração. Em entrevistas e textos, referia-se a ele como um homem culto, sensível e dotado de uma visão generosa da vida. Clodoaldo era um autodidata que lia muito e incentivava os filhos a fazerem o mesmo. A casa da família Moraes era repleta de livros, discos e debates, um verdadeiro espaço de efervescência intelectual. Desde cedo, Vinicius pôde entrar em contato com autores clássicos e modernos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, e esse ambiente propício contribuiu para a formação de seu espírito crítico e criativo.
A Figura do Pai como Modelo de Ética e Estilo de Vida
Clodoaldo não era apenas um leitor entusiasmado, mas também um homem de convicções éticas firmes e sensibilidade social. Trabalhava no setor público com rigor moral, valorizava o conhecimento e não admitia injustiças. Transmitiu ao filho valores que Vinicius carregaria por toda a vida: a solidariedade, o amor pela liberdade e a aversão ao autoritarismo. Esses princípios viriam a se refletir nos posicionamentos políticos e sociais de Vinicius, inclusive em sua produção artística durante a ditadura militar.
Outro aspecto marcante na figura paterna foi sua leveza diante da vida. Clodoaldo cultivava o prazer pelas pequenas coisas: ouvir música, conversar longamente, escrever versos, passear. Vinicius herdou essa postura e a lapidou em sua própria forma de viver, intensamente voltada à estética, ao prazer e ao amor. O poeta costumava dizer que era essencial “viver com paixão”, uma lição que, segundo ele, aprendeu desde menino com seu pai.
Uma Relação Marcada por Diálogo e Liberdade
A relação entre Vinicius e Clodoaldo foi construída sobre o diálogo e o respeito mútuo. Ainda que o filho tenha seguido caminhos por vezes ousados e libertários para os padrões da época, como sua entrega ao mundo boêmio e ao amor livre, nunca houve rompimento ou rejeição por parte do pai. Pelo contrário: Clodoaldo parece ter compreendido e respeitado as escolhas do filho, mesmo quando estas divergiam das expectativas convencionais.
O apoio paterno foi decisivo quando Vinicius decidiu estudar Letras e, posteriormente, seguir a carreira diplomática. Embora a função pública já fosse um caminho tradicional na família, a literatura e a música eram vistas com certo preconceito por setores da sociedade. Ainda assim, Clodoaldo incentivou o filho a buscar seus sonhos, sem jamais reprimir sua veia poética ou sua ligação com as artes. Em uma sociedade patriarcal e conservadora, isso não era pouco.
O Pai nas Obras do Poeta
Clodoaldo é presença discreta, mas constante, na obra de Vinicius. Embora o poeta não tenha dedicado explicitamente muitos versos ao pai, há referências indiretas que revelam a influência de sua figura. Em poemas sobre a infância, como A Infância e Poética I, nota-se um tom nostálgico que remete à segurança e ao calor do lar paterno. Além disso, a valorização do afeto, da ternura e da convivência humana — traços centrais na poética viniciana — parecem ecoar a educação emocional recebida na infância.
Outro exemplo está na forma como Vinicius compreendia a vida: com lirismo, mas também com senso de realidade. Essa tensão entre o ideal e o real, o sublime e o cotidiano, pode ser vista como herança da convivência com um pai sonhador, mas ético; poético, mas responsável. O poeta soube equilibrar esses elementos com maestria ao longo de sua produção.
O Luto e a Saudade
A morte de Clodoaldo foi um golpe profundo para Vinicius. Embora não existam muitos registros sobre como o poeta lidou com essa perda, amigos próximos e familiares relatam que ele viveu um luto silencioso, respeitoso e cheio de gratidão. Em suas últimas décadas de vida, Vinicius passou a falar mais abertamente sobre o quanto o pai foi fundamental em sua formação como homem e como artista.
É possível perceber que, mesmo com toda a fama e os amores vividos, o poeta mantinha viva a memória do pai. A educação que recebeu e os princípios que lhe foram transmitidos continuavam a orientar suas escolhas, mesmo nas fases mais intensas da boemia. Isso reforça a ideia de que Clodoaldo não foi apenas o pai biológico, mas uma verdadeira referência existencial para o poeta.