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O Estado, o ENEM e a ideia de meritocracia: um engano que culpa os “fracassados”

Enem e meritocracia

Por Cristiano das Neves Bodart – UFAL[1]

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A incapacidade estatal

Quero chamar atenção para o fato do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ter passado por uma transformação significativa ao longo dos anos. Inicialmente concebido como uma avaliação do ensino médio, o ENEM assumiu um papel de peneira, uma tentativa de o Estado lidar com a crescente demanda por vagas no ensino superior no Brasil, revelando uma triste realidade: a “incapacidade” do Estado em oferecer educação superior acessível para todos os que desejam. Incapacidade entre aspas por ser uma escolha política – um projeto, como dizia Darcy Ribeiro.

O acesso ao ensino superior deveria ser garantido a todos que desejam continuar seus estudos. No entanto, em países periféricos que são exportadores de alimentos e matéria-prima, a formação de mão de obra qualificada e o desenvolvimento do pensamento crítico não são prioridades. Como resultado, o Estado muitas vezes não oferece vagas em quantidade suficiente. Para disfarçar essa incapacidade, são criados processos seletivos acompanhados pela ideologia da meritocracia.

O Sistema de Seleção Unificada (SiSU) de 2024 disponibilizou um total de 264.181 vagas em 127 instituições públicas de ensino superior. Por outro lado, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023 teve mais de 4 milhões de inscritos. A diferença entre a oferta e a procura evidencia a incapacidade do Estado em ofertar educação superior aos interessados.

A transferência da culpa

Há outro ponto de atenção. Há uma ideologia prejudicial envolvendo o ENEM, na medida que culpabiliza os estudantes por notas fracas/ruins. Essa ideia, amplamente difundida na sociedade, sugere que o sucesso ou o fracasso no exame depende inteiramente do esforço individual, ignorando os inúmeros fatores sociais, econômicos e educacionais que influenciam o desempenho dos estudantes. Isso cria uma pressão insuportável sobre os ombros dos jovens, que geram muitas vezes transtornos psicossociais.

Pouco se discute sobre os danos enfrentados pelos jovens, e é essencial trazer essa questão à luz. Os estudantes, preocupados com a pressão de corresponder às expectativas familiares e sociais, estão sujeitos a desenvolver problemas de saúde mental, enfraquecendo sua saúde emocional e enfrentando crises recorrentes de ansiedade. A dificuldade em lidar com frustrações não é abordada em campanhas estatais, deixando os jovens sem apoio adequado.

Os impactos dessa culpabilidade não são apenas de cunho psicológico, mas também social. “Reprovar” no ENEM e não cursar o ensino superior geram prejuízos de sociabilidade e de trajetória profissional incalculável, inclusive sobre a sua produtividade e sobre o PIB do país – por isso, educação é investimento, não gasto.

O papel da grande mídia

É importante entender que a corrida individual para obter boas notas no ENEM não resolve o problema mais amplo do acesso à educação superior em nossa sociedade. A desigualdade persistente na distribuição de recursos educacionais, as disparidades econômicas e as limitações estruturais do sistema de ensino são questões que precisam ser abordadas de forma firme. Nesse sentido que a mídia poderia atuar. Culpar exclusivamente os estudantes por notas baixas é simplista e injusto, pois não leva em consideração o contexto em que eles estão inseridos. Igualmente, exaltar os esforços individuais “anormais” não é colaborativo. O certo seria denunciar a necessidade de tais esforços.

Em vez de enfatizar exclusivamente a responsabilidade individual, é fundamental que a mídia, a sociedade e o Estado colaborem para criar condições que promovam um sistema de ensino superior verdadeiramente inclusivo, oferecendo oportunidades igualitárias para todos os cidadãos que desejam continuar seus estudos.

Repensando os caminhos

A grande mídia poderia desempenhar um papel crucial na sociedade ao pressionar o Estado para oferecer mais vagas nas universidades públicas, aumente a contratação de professores, expanda o número de universidades e cursos pelo Brasil, especialmente nas áreas rurais e no período noturno. Embora o Programa Universidade Para Todos (Prouni) tenha seus méritos, é considerado um paliativo que beneficia, em proporção, mais o “mercado educacional” do que a sociedade em geral. Trata-se, em grande medida, de um programa de transferência de renda para as faculdades privadas.

Um esforço vimos com o programa Reestrutura o e Expansão das Universidades Federais (Reuni) criado em 2007 e que anos depois foi sendo esvaziado. Talvez seja o momento oportuno para exigir um programa de que reestrutura o e expansão das universidades e dos Institutos Federais robusto e que atenda às necessidades educacionais da população de forma mais abrangente. Retornar o Reuni com efetivo investimento é um dos caminhos, embora não único. É necessário também investir em pesquisa e extensão, bem como garantir a valorização financeira e social dos docentes.

Não estou me referindo ao Reuni Digital lançado recentemente, pois esta não é uma abordagem direta para enfrentar o problema. Isso não significa que não deva haver cursos de Educação a Distância (EaD), já que existem diferentes perfis e demandas para isso. No entanto, a solução não deve ser vista apenas como uma maneira de economizar recursos; aspecto mais enfatizado pelo governo no referido programa. A educação de qualidade não pode ser tratada como uma produção em massa, semelhante ao “modelo fordista” (só que com uso de tecnologias digitais). Ela requer tempo, experiências, interações sociais e acesso a professores qualificados que possam atender às necessidades específicas dos estudantes.

Espalhando a cortina de fumaça

Vamos direcionar nossa atenção para o que realmente resolverá o problema: as transformações das estruturas educacionais. O Brasil necessita de uma política que amplie significativamente a oferta do ensino superior e a qualificação da educação básica pública, visando a democratização do conhecimento e da profissionalização. Para isso, é crucial que haja vontade política para direcionar recursos que viabilizem esse objetivo sem comprometer a qualidade do sistema de ensino. Ampliar o acesso à universidade não deve ser interpretado apenas como “aumentar o número de estudantes nas salas de aula”. Isso demanda garantir a qualidade do trabalho docente e integrar os estudantes de forma significativa em atividades de pesquisa e extensão, são fundamentais para a vivência em uma universidade pública. Nesse sentido, programas de ingresso e de apoio à permanência dos estudantes são essenciais, especialmente aqueles que visam corrigir as desigualdades de acesso e conclusão dos cursos.

 

 

 

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. O Estado, o ENEM e a ideia de meritocracia: um engano que culpa os “fracassados”. Blog Café com Sociologia. fev. 2024. Disponível em: <https://cafecomsociologia.com/estado-enem-e-meritocracia/

 

 

Nota:

[1] Doutor em Sociologia pela USO. Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e editor do Café com Sociologia.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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