Por Cristiano das Neves Bodart
Embora o que espera-se da Educação Básica possa ser variável de um grupo para o outro, nos regimes democráticos seus objetivos são definidos a partir de discussões na esfera pública e registrados – regulamentados – em forma de leis e demais normativas. No caso da Educação Básica brasileira, sua regulamentação em nível nacional dar-se por meio da Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB; 1996) e Resoluções aprovadas pela Conselho Nacional de Educação (CNE). A LDB é uma espécie de “Constituição” da Educação, a qual norteia todas as outras normatizações e orientações, inclusive nos níveis estadual e municipal. Dito isto, importa-nos compreender o que define a LDB para avaliarmos o lugar da Sociologia no currículo do Ensino Médio.
A Lei de Diretrizes e Base da Educação (1996) preconiza que o ensino deve ser ministrado com base nos seguintes princípios, destacados no quadro 1:
Além dos princípios apontados no artigo 3, em seu artigo 35, ao tratar das diretrizes para o Ensino Médio, a LDB afirma que este deve voltar-se à “preparação básica para o trabalhoe a cidadaniado educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores”.
Mais ainda, deve possibilitar “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Em síntese, podemos inferir que o Médio deve ser capaz de: i) formar cidadãos conscientes; ii) preparar para o mercado de trabalho e; iii) dar condições dos estudantes acessarem o Ensino Superior.
Passamos, então, a apresentar de quais maneiras o ensino de Sociologia colabora para que os objetivos traçados pela LDB sejam alcançados.
Formar cidadãos conscientes
A Sociologia ao abordar a sociedade contemporânea em suas múltiplas dimensões (social, econômica, política, cultural, etc.) contribui para que o aluno compreenda melhor as relações sociais e as instituições, o que é essencial para sua inserção no mundo do trabalho, bem como dotar os estudantes de maior consciência de seus direitos e deveres enquanto cidadãos.
Os conhecimentos sociológicos transmitidos aos alunos são fundamentais em um contexto de fake news. Já no ano de 1954 Florestan Fernandes apontava sua importância, destacando que a Sociologia proporciona aos estudantes “instrumentos de análise objetiva da realidade social”, dotando-os de “um conjunto de noções básicas e operativas capazes de dar ao aluno uma visão não estática nem dramática da vida social […] estimulando o espírito crítico e a vigilância intelectual que são social e psicologicamente úteis, desejáveis e recomendáveis numa era que não é mais de mudança apenas, mas de crise, crise profunda e estrutural”.
O conhecimento sociológico é um instrumento de emancipação social. Auxilia o estudante a reconhecer o seu lugar no mundo social e seus direitos, assim como o desperta à necessidade de fala, compreendendo as disputas pelas definições de “verdades”. Temas como movimentos sociais, cidadania, desigualdade social, Estado, Políticas Públicas tratados à luz dos conhecimentos sociológicos são fundamentais no Ensino Médio para o desenvolvimento da valorização do bem comum e da coletividade, assim importante para a emancipação social dos jovens e, consequentemente, do país.
Apreço à tolerância e consideração com a diversidade étnico-racial
É na juventude que os jovens passam a ter maior contato com a diversidade étnico-racial e de gênero, uma vez que é nessa fase da vida que a socialização secundária passa a ser mais intensa e constante. Por isso, o contato com a disciplina de Sociologia é tão importante nesse período, uma vez que compreender a pluralidade social e saber como se relacionar com esse “novo mundo” são fundamentais para sua plena inserção na sociedade.
Pluralismo de ideias e garantia de padrão de qualidade
Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais
O ensino de Sociologia está diretamente ligada às práticas sociais dos alunos e ao mundo do trabalho, isso porque a matéria prima do fazer sociológico é justamente a realidade social. Levar os alunos a compreender como suas biografias se relaciona com as demais biografias é um dos objetivos da Sociologia, assim como levá-los a compreender de quais modos as estruturas sociais influenciam suas vidas cotidianas. Ao contrário do que se divulga, a Sociologia é uma disciplina cujos conhecimentos transmitidos têm aplicações imediatas. Os alunos ao terem uma aula já saem da sala aplicando os conhecimentos adquiridos em suas práticas de sociabilidades diárias, assim como compreendendo um pouco mais o mundo que o cerca e seu lugar nele.
Acesso ao Ensino Superior
Atualmente o acesso ao Ensino Superior passa pela avaliação da capacidade dos estudantes em compreender os diversos fenômenos sociais, o que envolve problemas e avanços contemporâneos. Diversas análises evidenciam o papel dos conhecimentos sociológicos para um bom desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), sobretudo na produção de redações, nas intepretação de textos e nos próprios conteúdos cobrados no exame. Dito isto, a Sociologia é um componente curricular que, juntamente com os demais, colabora para que os objetivos preconizados pela Lei de Diretrizes e Base da Educação sejam alcançados.
A presença da Sociologia no Ensino Médio dá-se também pelo seu papel de despertar o interesse dos futuros universitários para as Ciências Sociais, seja em se tornar cientistas sociais ou para que se atentem para a importância dessa grande área para as demais presentes no Ensino Superior e sua futura profissão. São imensuráveis as contribuições da Sociologia para a solução de diversos problemas sociais, demográficos, econômicos, culturais etc.
Especificidades da Sociologia, sua impossível substituição e pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas
Embora outras disciplinas de Ciências Humanas tratem de fenômenos sociais, a Sociologia tem especificidades que a tornam insubstituível no Ensino Médio. Os conhecimentos sociológicos a serem ensinados são resultantes de rigorosos conceitos, teorias, perspectivas e métodos próprios, capazes de desvelar facetas do social que não são preocupações centrais de outras áreas, tais como a Geografia e a História. A Sociologia volta-se, grosso modo, para uma análise que visa à compreensão das relações entre indivíduos e sociedade, assim como as relações entre os indivíduos, desvelando as coerções, os conflitos, as acomodações, as ressignificações, os discursos, os interesses, os sistemas de dominação, etc. É justamente por ter conceitos, teorias, epistemologias e métodos próprios, que a Sociologia não pode ser “dissolvida” no interior de outras disciplinas em forma de “estudos” e “práticas”, como indicado na Lei nº 13.415/2017, que reforma o Ensino Médio. O professor não empregando as teorias, os conceitos, os métodos e as perspectivas próprias da Sociologia estaria a ensinar qualquer outro saber, mas não o sociológico, nem lecionando Sociologia. É possível (e desejável) o diálogo entre Sociologia e as demais Ciências. Contudo, como afirmado, o seu ensino não é passível de ser dissolvido no interior das demais disciplinas. Ao “diluir” deixará de ser Sociologia.
As ameaças ao ensino de Sociologia
Em tempo de Fake News, a Sociologia vem sendo acusada de ser um instrumento de ideologização usado pela esquerda, de associação ao comunismo, ao feminismo e outras correntes políticas, assim como de defender criminosos e práticas ilegais. Essas associações são decorrentes de basicamente três situações: i) desconhecimento da disciplina e; ii) da dificuldade das pessoas diferenciarem “explicação” de “justificação” e; iii) incômodo por ver que a disciplina preza pela democracia social e política (o que é, para a elite, uma afronta ao status quo).
Esse cenário de desconhecimento e de resistência às mudanças do status quo propiciam a propagação de Fake News e, consequentemente, ações concretas de visam retirá-la do currículo ou inviabilizar seu bom desenvolvimento em sala de aula – o que é feito reduzindo sua carga-horária.
A maior parte das Secretarias Estaduais de Educação está, nesse momento, reformulando o currículo do Ensino Médio. Discute-se quais disciplinas serão ofertadas e quais suas respectivas carga-horárias. Estranhamente ao discurso em voga de ampliação do acesso ao conhecimento e da carga-horária desse nível de ensino, há agentes políticos que, por desconhecimento de causa ou má fé, defendem a redução de carga-horária da Sociologia. Sua importância é racionalmente inconteste. Quanto a carga-horária, afirmamos que a Sociologia deve estar presente nos três anos do Ensino Médio. Sua presença em uma (1) ou duas (2) séries do Ensino Médio seria a materialização de uma concepção de educação depositária, aquela que ignora a educação como processo. A aprendizagem dá-se como processo diretamente imbricado ao desenvolvimento psicossocial dos alunos. Nos é claro que o ensino de Sociologia deve acompanhar as experimentações sociais dos estudantes, auxiliando em suas descobertas e estar no mundo. Por isso, e por diversos outros motivos, deve estar presente em todo o Ensino Médio.
A presença da disciplina Sociologia no Ensino Médio importa aos que desejam uma formação de cidadãos capazes de “ler” o mundo a sua volta, de se valorizarem e se reconhecerem, de respeitar os diferentes, ter apreço pelas causas coletivas e comuns, capazes de atuar sobre seu espaço social e contribuir para o futuro do país a partir de seu lugar.
A Sociologia é uma disciplina que foi incluída no Ensino Médio devido ao reconhecimento de suas potencialidades e colaboração para que os objetivos traçados pela LDB sejam devidamente alcançados. Excluir ou reduzir o número de aulas dessa disciplina no Ensino Médio é um retrocesso imensurável.
Nota:
* Uma versão preliminar (mais sintética) foi publicada inicialmente no Jornal GGN (AQUI)
Dica de palestra sobre o ensino de Sociologia no Brasil: