Indícios para uma Sociologia dos móveis: sobre quando a ciência transborda.

 

Por Camillo César Alvarenga*

Para quando algo nos atravessa e nos transborda, a Sociologia existe. E em primeiro lugar, a sociologia não é res acadêmica, ela existe e acontece fora da academia, assim como a língua se transforma na fala, antes que na escrita. A sociologia é uma forma de pensamento e criação apolínea para um conteúdo de sentido dionisíaco, a vida em sociedade. Assim, para fazer sociologia é preciso ter talento, não digo dom, que fique claro, e se calhar, ser um sujeito de gênio, nem que seja de gênio ruim, como se diz. Ao lado desta quase (in) vocação, é uma condição de existência, procurar reaprender a escrever, quiçá, qual um Machado de Assis, sendo exigente, se for possível, ou então, considere desistir, por que senão, será muito difícil, além de torcer para possuir uma veia anárquica, uma dimensão espiritual zen-budista e um misticismo pessoano, senão ao menos como saber compreendê-lo.

Para quando se dedicar aos estudos, é mister saber driblar as más traduções, passar através das fronteiras das línguas estrangeiras, e assim através das fissuras teóricas por meio das precariedades metodológicas, substancialmente sair dos escombros epistemológicos das ciências, deuses meus, das ciências humanas e sociais, só assim poderemos explodir, as atomizadas estruturas de conceitos e categorias logicamente aglutinadas em formas de textos, teses de departamentos universitários que nos impedem de hipotecar essa tia velha, que se tornou a sociologia acadêmica, esta filha caçula e bastarda da Modernidade.
Que por ainda não atingir a puberdade, não pode ainda se livrar do paternalismo dos três porquinhos, da ação preceptora da escola de Chicago, este blefe da imperialista ciência norte-americana, para encontrar-se como sua atualidade em terras menos dogmáticas e universidades subvertidas, para exprimir em forma manifesta seu teor de uma revolução subvertedora como uma faiscante centelha incandescente na dimensão perpendicular da espiritual alienação do mundo horizontal, de uma ideologia ocidental estacionária, neste bus stop em que a modernidade – ficção mal escrita – nos encalhou, numa história que o autor sem saber ver aonde vai dar, não pode continuar.
Por isso, nos tornamos reféns de uma cultura das (re)tomadas, incessantes retornos à Grécia, depois ao Renascimento, ao primeiro modernismo das vanguardas que por isso, não são indícios de um novo tempo, mas sim os últimos sinais do que foi e o queria ser a civilização europeia centro-ocidental, que não foi mais nada depois das Guerras, e tornando-se um aparentemente conjunto labiríntico de escombros, e não um labirinto no sentido mítico de Dedalus, mas sim, um mundo empírico feito de ruas, avenidas e vielas. Por tudo isso, não haverá um novelo para nos conduzir para fora dessa fantasmagoria, por que ela foi construída por nossa inteligência racionalista instrumental, sobre a qual, só posso falar da arte, que mesmo absurda em alguns momentos, não parece assustada com os assombros da razão, esta que sublimada numa espécie de transe da loucura, foi apenas pelas artes conduzida ao nirvana.
É por esse conjunto, que se a sociologia quiser ser realmente necessária, ela tem que ser a precisa operação de uma razão nirvânica, deve elevar-se e ao homem no transe da razão alcançando, pela força gravitacional que rege as órbitas, a esfera em que se supere a reprodução, assim como na arte, que seja possível, não só repensar a sociedade, mas sim, e verdadeiramente, através de uma práxis da poiesis sociológica : 1) recriar; 2) reinventar e, só aí, fecundar e fundar uma vida sobre outros paradigmas, novos pressupostos e perspectivas genésicas e genéticas sociologicamente originais.
Neste momento, a vida social, se esfumaça diante do sociólogo, a modernidade enevoou as lentes, desfocou a luneta. O primeiro passo para a sociologia, agora, é o religare com a Literatura. Mas não aos modos da antropologia, mas como ao modo de escritura de um Guimarães pela sua vocação narrativa ou Ferrez, em seu realismo delirante, é preciso encontrarmos o grau zero da escrita sociológica. Os sociólogos, no seu afã de busca pela objetividade, distanciaram-se tanto da sociedade, que quando no retorno à ela, eles são tão estranhos à sociedade a que pertencem e ela tão diversa dos tipos ideias, que ele constrói para compreendê-la, que já se encontram suficientemente academizados que a desconhecem. Assim transformaram a sociologia, uma ciência em estado de anomia, por razões óbvias, em uma total anomalia intelectual, que virou um grande ornitorrinco do mundo científico, munindo-se de conceitos e formulações teóricas das mais variadas vertentes das ciências que se chegou ao ponto de encontra-se: 1) iludida pela modernidade; 2) confundida pela complexidade; 3) encastelada pela academia; 4) consumida pelo capitalismo.
É evidente que é preciso, na sociologia nascer alguém como o Niemayer foi para a Arquitetura. Já que o pensamento social europeu é senão uma panaceia, e em especial, os franceses são bons em si mesmos. Já que para um francês é fácil fazer sociologia relendo Durkheim, Levi Strauss, etc. não há como fazer pior. Nesse sentido, o Bourdieu construiu uma “jaula de ferro” para a sociologia moderna, tão estrutural e semântica, sintaticamente teórica que ao erguer as grades para o pensamento social, engendrou um não lugar para pensar reificadamente, um sem número de experiências sociais.
Os autores de uma velha sociologia, essa razão de temperamento sórdido, diante da qual só nos resta sermos irônicos, frente ao anacronismo de uma visão reduzidamente histórica, quase cômica, se a Modernidade não tivesse se tronado essa trágica experiência descontinua e transhistórica, em melhores termos, circular, cíclica. A conserva moderna se radicaliza em fantasmagoria, enquanto, paradoxalmente, se sublima e depura sedimentando fundações enferrujadas, extrapolando as barreiras legais e institucionais do capitalismo endógeno à modernidade.
A convulsão em forma de desgaste, tédio extraordinário de uma época parasitada pela retomada, pelo vintage que impede a fuga desse labirinto ideológico, psíquico, mas também material e miseravelmente monumental. O estruturalismo é a maior fraude moderna, já que as estruturas modernas estão em ruínas e suas causas e consequências são manifestas e seria demasiado cansativo expô-las aqui, apenas atento para a distorção do mundo real, como indicação da natureza dos fenômenos aos quais me refiro.
Por exemplo, se um mundo racionalizado, ou seja, pensado cientificamente pelo e para o individualismo, como se pode pensar ou observar uma sociedade em classes, grupos sociais, ou tribos identitárias? Ou seja, “toda tentativa de explicação histórica relativa esbarraria nas maiores dificuldades, e isto principalmente em razão daquele contraditório e raro sentimento coletivo de individualismo feroz que caracteriza sua gênese.”
O único aspecto, que importa hoje, é recobrarmos aquilo que nos distingue, a originalidade. Precisamos voltar a dar saltos, saltos qualitativos, o que a ciência evolucionista coisificou, já que a modernidade é, ou se tornou, a maior expressão da destruição da Europa por ela mesma, e isso amplificado ao mundo ocidental, e depois a todo o globo pelo imperialismo estadunidense.
Entretanto, seguimos carregando traumas, os mais cruéis, principalmente a colonização em África, Ásia, Oceania e América Latina. Sobre esse abalo profundo, derivado de um esmagamento cultural, o escamoteamento da personalidade e temperamento autêntico dos povos desses continentes, desvirtuados de seus aspectos originários, de modo a serem levados à uma combinação aleatória e a contragosto de uns com os outros, com seus modos operandi e cosmovisões por vezes incompatíveis e tão diversas, esfaceladas e reestruturadas em infinitas diásporas, estas irremediáveis e irreversíveis.
Toda essa síntese multiétnica, assim como a síntese epistemológica dos “clássicos” foi senão, a apoteose decadente de tudo o que a sociologia podia fazer e não o fez. A teoria social hoje foi incapaz de superar a “tradição” em escombros na qual insistem em se sustentar os atuais esforços em ritmo de teorias ditas contemporâneas, que de atualizadas nada possuem, além do rótulo que orgulhosamente carregam e os estandartes acadêmicos atrás dos quais covardemente se encastelam dentro do espaço e do tempo corrompidos e vistos pela persiana mais alta da torre em que de forma utensilhável se inutilizam, pouco a pouco, ou diria, aos bocados.
O intelectual pragmático se serve do banquete burocrático e inconfessadamente se desqualifica para a vida existente fora das redomas da corte fatigada das cabeças pensantes e pesadas pela ornamentação bibliográfica que se imobiliza nas transcrições mais inseguras de matrizes teóricas alheias e os mais gasosos métodos liquefeitos onde elas se dissipam sob a forma de uma reprodução assistida e insistentemente repetida nos últimos 200 anos.
Transformando-se, dessa maneira a ciência, num sistema social imperialista, atestando uma cena vegetativa de uma intelectualidade em coma induzido pela razão instrumental que, não se preocupa com outra coisa, além da manutenção da sociedade estabelecida. Então para deixar visível a dinâmica ambígua que aspirando à uma hiperciência da Era Moderna, os esforços de tais sociólogos em adornar de efeitos semânticos e metafóricos as construções, ou melhor, reconstruções de seus modelos teóricos e em geral hagiográficos, se mostra improfícuos.
Meu pensamento me leva a Joseph Beuys e a sua noção de “escultura social” à procura de condensação e deslocamento. Essa é a única ortodoxia que conheço, em todo resto, sou heterodoxo, não liberal, mas como dizem, libertário, ou seja, um mosaico mental, onde a sociologia deve construir uma obra habitável e sensível, mas não só, também orientada por um gravidade de ser ao mesmo tempo radar e satélite, e o fato social um ponto móvel capaz de ser capitado por um Gps sociologicamente fundamentado – nisto consiste a verdadeira sociologia.
Uma obra sociológica que, sob o efeito da impulsão da energia estética da descarga do relâmpago a um só tempo rígido e antiacademicista, seja capaz de plasmar um vetor criativo, no qual o melhor será sempre aquele algo que nos ensina o equilíbrio e a radicalidade combinadas numa potência intelectual transformadora capaz de romper as estéreis premissas e as fraturadas estruturas modernas, com fissuras tão latentes que a seiva escorre como um sangramento fetal.
Hoje em dia, somos obrigados a reconhecer Z. Bauman como referencial teórico para a sociologia, não há nada mais absurdo (!) do que estes intelectuais sectários adotados por seitas partidárias e grupos decadentes organizados por trás, ou na frente, de estruturas engessadas, que ossificam a descontinuidade e negam a circularidade ignorando a SOCIOLOGIA DOS MÓVEIS, a meu ver já tão evidente quanto as deficientes, inábeis e imprevidentes formas sociológicas instituídas, em franca bancarrota e já distantes de alguma chance de amortização de sua dívida com a sociedade.
Assim, a ineficiência da administração ou da economia em lidar com questões sociais, ou as contradições e a alma corrompida da ciência política, o imperialismo e o espírito colonialista da antropologia, sucumbem diante da falência da história, do jugo do totalitarismo das ciências duras, tudo isso se apresenta frente à sociologia, que tratou de complexificar os fragmentos, ou seja, torná-los impossivelmente reorganizáveis, e desde então se passou a tentar classificar, discriminar os homens e a humanidade em classes, raças, castas, etc. nunca mais encontrando um ponto comum no universo da ordem social, depois da sociedade moderna, que antes era arrebanhada em tribos, feudos, clãs, etc.
Antes do capitalismo de grandeza multiescalar, as sociedades em estado anímico. Depois ergueram os três porquinhos, suas casas, pouco ou a pouco, inabitáveis, fica-nos a questão: em qual tenda nos abrigar? Entre os três, quem sabe eu me pareça mesmo é com G. Simmel, que antes mesmo de Bourdieu e seus estudos sobre arte, o alemão fez do Rembrandt uma exemplo de antinomia. Entre o positivismo comteano ou materialismo histórico, o primeiro, pai mental do Durkheim, enquanto Weber vai aos poucos se neutralizando a si mesmo, tornado-se um expurgo ideal, a não ser pela sua religiosa visão sobre como os luteranos tinham uma vocação pra além-cristo e aquém-líder carismático, de guardar dinheiro. Eu estou mesmo é interessado em tipos móveis, desterritorializados, autônomos, mas, sobretudo prudentes e sóbrios distantes de engajamentos alienados e escolhas alienantes, vejo de forma eminente, os albores de uma nova sociologia no Brasil, uma sociologia por dignidade latino americana, criada pela nossa realidade para a compreensão de uma realidade maior, o mundo social, político e cultural, de forma imprudente, produzido pela modernidade, essa madrasta.
*Camillo César Alvarenga é estudante do bacharelado em Ciências Sociais na UFRB. Escreve com frequência em Scombros.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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