Sou um grande apreciador da literatura do tcheco Franz Kafka. Sempre li as obras desse escritor com muita dedicação e interesse; no entanto, ingressei em uma jornada que me afastou dessas leituras por alguns anos. Tornei-me professor. Mal sabia eu que tal ofício me conduziria à minha mais alucinante jornada kafkiana. Como? Descubra neste texto.
Por Roniel Sampaio-Silva
Tive o privilégio de conhecer “A Metamorfose” ainda durante a licenciatura. Fiquei maravilhado e chocado com o revés na vida do operário Gregor Samsa, que se dedicara tanto ao trabalho que se viu metamorfoseado em um inseto gigante. Nesse mesmo foco narrativo enigmático, também me deparei com a angústia de Josef K na obra “O Processo”. Na ocasião, o cidadão, protagonista da obra, viu-se processado por uma tecnocracia opressora tanto irracional quanto poderosa.
Após 12 anos na carreira docente, voltei a ler o autor e me reconheci como um singular personagem kafkiano no limbo entre essas duas obras. Na obra cujo protagonista é Samsa, pude constatar como a precarização do trabalho docente pode ser utilizada para desumanizar, revelando a face mais abjeta de como a sociedade pode nos enxergar. Assim, a alegoria de Kafka se encarna no proletariado docente, o qual percebe a real forma como o resto do mundo social o vê. Tão logo esse sujeito proletário toma consciência do projeto de sociedade para o qual foi cuidadosamente colocado, passa a ser combatido como um ser que precisa ser eliminado. Afinal, a consciência de classe é vista como monstruosidade.
Como se não bastasse tamanha inquietude, a atmosfera enigmática completa o sofrimento do docente, cujos dramas remontam à aventura kafkiana. O pesadelo de Josef na obra “O Processo” se apequena diante da vastidão tecnocrática na qual está subordinado o professor. Essa instituição tecnocrática, onipresente, onipotente e onisciente, está acima de qualquer razoabilidade, bom senso ou sentido pedagógico fundamentado. O processo de criatividade, inovação e criticidade dá lugar a um exaustivo turbilhão de tarefas enfadonhas, quantitativistas, arbitrárias e desmobilizadoras. Tais normativas são contraditórias, ambivalentes e são abençoadas enigmaticamente pelos sacerdotes da interpretação das escrituras legais. Essa tarefa tem por finalidade valer-se do tecnicismo para sobrepor uma vontade política travestida de pseudo-legalidade. Essa vontade, que não pode ser expressamente dita, precisa ser enigmática para que se cumpra dogmaticamente, ocultando assim o sujeito interessado no comando. Ordens processuais redundantes, conflitantes, tão urgentes, intensas e cansativas que apenas reproduzem ordens desumanizadoras.
Por fim, o objetivo da tecnocracia à qual estão submetidos os docentes é produzir e reproduzir sujeitos tão kafkianos à sua imagem e semelhança de quem os programou de acordo com sua vontade política. Portanto, talvez nossos legisladores e gestores sejam mais fãs de Kafka do que eu, atribuindo a uma categoria inteira a tarefa de perpetuar a jornada kafkiana.
Referências:
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1985.
KAFKA, Franz. O Processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1988.