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Lugar de fala, que lugar é esse? O contexto sócio-político e a polêmica obra de Djamila Ribeiro

Lugar de fala
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Lugar de fala, que lugar é esse? O contexto sócio-político e a polêmica obra de Djamila Ribeiro

Fabio Monteiro de Moraes[1]

O livro “Lugar de fala” foi lançado em 2017 no momento em que o Brasil enfrentava o início de uma crise iniciada em 2013, que culminou no golpe de 2016 com o impeachment da então presidenta da República, Dilma Rousseff. Foi o primeiro título a ser lançado pela coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro, mulher preta, brasileira, pesquisadora, graduada em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestra em filosofia política pela Universidade de São Paulo (USP), militante do movimento negro feminista e autora do livro Lugar de fala. Conforme foi esclarecido pela própria Djamila, a coleção Feminismos Plurais foi pensada visando “trazer para o grande público questões importantes referentes aos mais diversos feminismos de forma didática e acessível” (RIBEIRO, 2019, p. 14).

O contexto sócio-político

Com o avanço da extrema-direita no mundo, sobretudo nos Estados Unidos com os governos de Donald Trump e no Brasil com Jair Bolsonaro, marcados por suas características racistas, homofóbicas e sexistas, o tema do racismo e do sexismo já era um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, principalmente depois do assassinado do afro-americano Jorge Floyd, pelo americano Derek Chauvin, policial branco da cidade de Minneapolis. Em 2018, um ano após o lançamento do livro “Lugar de fala”, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras (VASCONCELOS, 2020). A mesma matéria, que apresenta dados a partir do Atlas da Violência (2020), organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), afirma que o caso das mulheres é ainda pior, reforçando um dos pontos destacados na obra Lugar de fala (2018), pois, no mesmo ano, 2018, a cada 2 horas uma mulher foi assassinada no Brasil, das 4.519 vítimas, 68% eram mulheres negras.

Em 2020, dois livros da coleção Feminismos Plurais estavam no top 10 dos livros mais vendidos do Brasil. O livro “Pequeno Manual Antirracista”, lançado em 2019 por Djamila Ribeiro, ocupava a primeira posição, enquanto o livro “Racismo Estrutural”, do professor Silvio Almeida, ocupava a nona posição entre os mais vendidos do Brasil. Vale ressaltar que em 2020, além do assassinato de Floyd, que chocou o mundo e impulsionou movimentos antirracistas e antifascista em todo o globo, como, por exemplo, o movimento Vidas Negras Importam, no Brasil, 78% das pessoas mortas pela polícia eram negras (PEREIRA, 2021).

Ao que tudo indica, a grande repercussão da figura de Djamila, bem como de suas obras, inclusive no exterior,[2] se deu, além de sua competência como escritora, militante e filósofa, pesquisadora, também, pela conjuntura política e social, sobretudo em um Brasil assolado pela Covid19, onde a violência doméstica contra mulheres negras foi escancarada (OLIVEIRA; SOARES; SOARES, 2021)

Lugar de fala, que lugar é esse?

Objetivando apresentar o termo Lugar de fala aos leitores de forma contextual, a autora recupera o famoso discurso contra-hegemônico “E eu não sou uma mulher?”, proferido em 1851, pela abolicionista, escritora e ativista dos direitos da mulher, Sojouner Truth, partindo daí para aquilo que parece ser um dos principais pressupostos do seu livro: o problema da universalização da categoria mulher, como uma espécie de não-marcação das diferenças existentes, isto é, como uma forma de silenciamento que oculta as intersecções. Nessa direção, a autora propõe aos movimentos feministas “abdicar da estrutura universal ao se falar de mulheres e levar em conta as outras intersecções, como raça, orientação sexual, identidade de gênero” (RIBEIRO, 2019, p.19). Outro pressuposto evidenciado pela autora é a existência de um feminismo hegemônico, feito por e para as mulheres brancas, que não incluem em suas pautas nem as mulheres negras, nem as indígenas, por exemplo.

Pensando com Linda Alcoff (2020), Ribeiro (2019) propõe que seja feita uma reflexão acerca das epistemologias, alertando para a necessidade de se pensar saberes-outros.

Pensando num contexto brasileiro, o saber das mulheres de terreiro, das Ialorixás e Babalorixás, das mulheres do movimento de luta por creches, lideranças comunitárias, irmandades negras, movimentos sociais, outra cosmogonia a partir de referências provenientes de religiões de matriz africanas, outras geografias de razão e saberes (RIBEIRO, 2019, p.22).

Para tanto, a autora propõe uma solução radical: “desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina, cis e heteronormativa e debater como as identidades foram construídas nesses contextos” (ibidem, p.23). Ou seja, como a noção de outro ou outridade foi e continua sendo ideologicamente construída como objeto.

É no segundo capítulo do livro que a questão sobre a construção do outro é abordada, e para isso, apoia-se no ombro de gigantes como, por exemplo, Patrícia Hill Collins, Lélia Conzáles e Grada Kilomba, partindo da premissa que há um olhar colonizador sobre os corpos, saberes e produções femininas, e que diante dessa realidade, não é suficiente apenas refutar os olhares colonizadores, é preciso partir de outros pontos, lugares e saberes. Com as contribuições de Grada Kilomba, considerando o que postula Simone de Beauvoir, partindo de uma concepção universal mulher, onde esta é constituída como o Outro do homem, infere-se que, nesse caso, em uma sociedade patriarcal e racista, a mulher negra por não ser nem mulher branca e nem homem, estaria, como disse Spivak (2010), numa situação muito mais obscura, o que faz com que Grada Kilomba afirme que a mulher negra não é o Outro, mas o Outro do Outro.

Nessa direção, é importante que se pense na mulher negra, separadamente da mulher branca, e por isso, Ribeiro (2019) defende a luta do feminismo negro, pois, olhando tanto para a história, quanto para a realidade contemporânea, podemos facilmente nos indagar sobre a seguinte questão: enquanto a mulher branca, numa sociedade patriarcal e racista estava lutando pelo direito ao voto, ao acesso ao mercado de trabalho, a mulher negra, onde estava? Por esses e outros motivos, a autora parece reforçar ao longo de todo o texto a necessidade da abolição do uso do termo mulher como uma categoria universal, dando a entender que todas as mulheres são iguais e que vivenciam as mesmas experiências ou as mesmas necessidades sociais. Não universalizar significa marcar as diferenças. Trazer a tona, deixar emergir as experiências existentes, produzidas como ausentes (SANTOS, 2002). “A insistência em falar de mulheres como universais, não marcando as diferenças existentes, faz com que somente parte desse ser mulher seja visto” (RIBEIRO, 2019, p.31). Nesse sentido, pressupõe-se que o não marcado ou o não situado seja marcado e visibilizado para poder emergir e ocupar o seu lugar social.

Para definir o que é lugar de fala, Ribeiro (2019) recupera uma citação oriunda do campo da comunicação que define o termo como

um instrumento teórico-metodológico que cria um ambiente explicativo para evidenciar que os jornais populares ou de referência falam de lugares diferentes e concedem espaços diversos às falas das fontes e dos leitores (RIBEIRO, 2019, p.39 apud AMARAL, 2005, p. 105)

A partir desse extrato, podemos inferir que o termo lugar de fala é apresentado como um instrumento teórico-metodológico que traz a tona a emergência e a existência de diferentes lugares de onde as pessoas falam, enfatizando que nem todos falam a partir do mesmo lugar.

Ademas, quando se fala de lugar, no contexto do livro Lugar de fala, que lugar é esse? Como resposta, a autora esclarece que esse lugar é um lugar social, que “não se limita a uma visão essencialista onde somente os negros poderiam falar” (RIBEIRO, 2019, p.44), conforme querem fazer crer alguns de seus críticos. Porém, adverte não haver uma epistemologia determinada sobre o termo lugar de fala e que sua origem é imprecisa. O termo Lugar de fala reúne dois fenômenos:

[…]as vozes do feminismo negro norte-americano, do feminismo branco tradicional e dos estudos subalternos. Trata-se, assim, da experiência vivida por mulheres negras e teorizadas por elas próprias, sem o uso de intérpretes, e da condição dessas mulheres em serem construídas como o “outro do outro (NASCIMENTO, 2021, p. 58).

Ribeiro (2019, p.55) chama atenção para que, apesar de haver uma confusão entre lugar de fala e representatividade, não se trata da mesma coisa. Por exemplo, diz ela “uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa”. Assim, compreende-se que todos tenham seu lugar de fala, porém, nem todos estão na posição de representarem ou falarem por-e-pelas outras pessoas.

Todavia, “é preciso distinguir o lugar epistêmico e o lugar social” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL 2016, p.19). Pois, o/a subalternizado/a nem sempre fala do seu lugar social, isto é, do seu lugar de fala, por isso os autores chamam atenção para a necessidade de desassociar um conceito do outro. Ocorre que muitas vezes o(a) subalternizado(a) ocupa um lugar social diferente daquele de onde ele reproduz os discursos dominantes ou hegemônicos.

Por fim, infere-se que a solução proposta por Djamila no livro Lugar de fala é embasada por uma perspetiva pós-estruturalista que objetiva “desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina, cis e heteronormativa e debater como as identidades que foram construídas nesses contextos”. Em outras palavras, a autora propões que não só é possível agir através das rachaduras causadas pelas resistências das vozes dissonantes, como também é possível rever a noção de outridade ou a condição de subordinação que foi e continua sendo, em grande medida, constitutiva das subjetividades dos(as) subalternizados(as), porém, esse é assunto para uma próxima reflexão.

Referências

ALCOFF, Linda. O problema de falar pelos outros. Tradução de SILVA, Vinícius Rodrigues Costa da Silva; ZEFERINO, Hilário Mariano dos Santos; & CHAGAS, Ana Carolina Correia Santos das. Abatirá – Revista de Ciências Humanas e Linguagens, v. 1, n. 1, p. 409-438, jan./jun. 2020.

BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado, v. 31, v.1, p. 15-24, Jan./Abr. 2016.

SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, Out. p. 237-280, 2002.

OLIVEIRA, Cláudia Rodrigues. de; SOARES, Elaine Oliveira; SOARES, Jaqueline Oliveira. Pandemia escancara violência contra população negra. Nexos Políticas Públicas. 19 de abril de 2021. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2021/Pandemia-escancara-viol%C3%AAncia-contra-popula%C3%A7%C3%A3o-negra. Acesso em: 29 de agosto de 2022.

PEREIRA, Júlia. Segundo pesquisa, 78% dos mortos pela polícia são negros. Rede Brasil Atual, 23 de abril de 2021. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/04/segundo-pesquisa-78-dos-mortos-pela-policia-sao-negros/. Acesso em: 29 de agosto de 2022.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.

VASCONCELOS, Caê. Homicídios de pessoas negras aumentaram 11,5% em onze anos; os dos demais caíram 13%. Ponte Jornalismo, 27 de agosto de 2020. Disponível em: https://ponte.org/homicidios-de-pessoas-negras-aumentaram-115-em-onze-anos-os-dos-demais-cairam-13/. Acesso em: 29 de agosto de 2022.

Notas:

[1]Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Especialista em Filosofia, Conhecimento e Educação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) E-mail: fabiocienciassociais@gmail.com

[2]Em 2019 Djamila Ribeiro foi escolhida pelo governo francês, como Persoalidade do Amanhã. Projeto que seleciona importantes figuras não francesas, valorizando sua projeção atual e impacto no futuro. No mesmo ano a autora teve um de seus livros publicado em francês.

 

Como citar este texto:

MOARAES, Fabio Monteiro. Lugar de fala, que lugar é esse? O contexto sócio-político e a polêmica obra de Djamila Ribeiro. Blog Café com Sociologia, dez. 2022. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/lugar-de-fala-que-lugar/

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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