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O que é tecnocracia? Bases históricas da política dos covardes

A palavra tecnocracia é oriunda da junção de duas palavras tecno+cracia, cuja tradução livre seria algo como governo orientado pela técnica. Os princípios norteadores da tecnocracia se pautam na ideia de que especialistas técnicos e científicos tomam decisões melhores do que representantes políticos ou assembleias de democracia diretas porque se apresentam como neutros, objetivos e imparciais. Neste texto iremos discorrer sobre um breve desenvolvimento histórico da tecnocracia e suas respectivas características.

Por Roniel Sampaio-Silva

Precursores históricos da tecnocracia: dicotomia de ideias e classes

O iluminismo foi um movimento intelectual e político do século XVII, que trouxe, dentre várias contribuições; a premissa de que o homem é criador das próprias mazelas sociais (Andrade, 2017). Antes disso, o poder religioso fundamentava a crença que os problemas da humanidade tinham relação e solução com uma dimensão divina cujas forças eram metafísicas e sob as quais não poderia ter diligência. As instituições e ideias religiosas fundamentavam politicamente a nobreza e o próprio clero, sustentando a monarquia. Tal monarquia buscava fundamentar seu poder no direito divino dos reis, cujo base era a revelação divina, portanto, pautada na .

A classe emergente, a burguesia, que buscava fundamentos intelectuais para sustentá-la no poder, viu no iluminismo as bases de que precisava. Se por um lado a monarquia era sustentada pela teoria do direito divino dos reis, a nova classe dominante, que toma o poder nos séculos XVII e XVIII, tem como bússola a razão. Na perspectiva do iluminismo, fé e emoção estariam em campos diametralmente opostos ao da racionalidade e da lógica (Santos, 2016).

Na visão de um dos principais representantes do iluminismo, Voltaire (2007), em sua obra “Cartas filosóficas”, faz críticas à irracionalidade da nobreza e clero. Para ele, estes segmentos governavam cheios de emoção e deveriam dar lugar a um governo firmado no suporte técnico-científico. A burguesia, por sua vez, se apropriou dessas ideias para se colocar como paladinos da racionalidade em contraponto às paixões dos monarcas.

Saint-Simon, o pai da tecnocracia

A ideia de tecnocracia foi gestada no contexto das contradições geradas pela revolução industrial e capitalismo. Na ocasião, o estado deveria ser orientado por uma administração científica que afastaria as ideologias capitalistas e interesses privadas para satisfazer as necessidades emergentes e urgentes da classe trabalhadora.

Com a crescente complexidade das funções e relações da sociedade capitalista, o mundo se complefixica de tal modo que para o referido intelectual francês haveria a necessidade de gerenciar esse mundo complexo a partir dos instrumentos técnicos que a revolução industrial proporcionou, assim seria necessário “administração das coisas em substituição ao governo dos homens”, (Saint Simon, Apud Santos 2016, p. 12).

Não nos admira que Saint-Simon foi quem introduziu o positivista Augusto Comte na intelectualidade francesa, passando um legado que influenciou profundamente as ideias do segundo. Percebe-se, portanto, que a premissa da tecnocracia teorizada por Saint-Simon é transmitida para as ideias positivistas no sentido desses pensarem sempre como sujeitos acima das ideologias.

Tecnocracia Moderna: Weber, Hotellinge e Fayol 

Na obra “Economia e sociedade”, Weber (1999) demonstra a burocracia como forma de racionalização do estado com vistas a padronização de procedimentos, cristalização de hierarquias, impessoalidade, garantindo homogeneidade. Todos esses princípios são orientados para garantir que as decisões políticas são eficazes e eficientes. Neste sentido, a tecnocracia se apresentaria não apenas como um conjunto de decisões racionais, mas também impessoais, eficazes e eficientes.

Se por um lado Weber pensava a burocracia como forma de gestão racional, Hotelling se valeu da estatística e demais cálculos matemáticos para teorização de custos-marginais, algo próximo do que chamaríamos de custo-benefício. Esta visão é amplamente utilizada para orientações neoliberais que aparelharam historicamente a visão de tecnocracia. Inclusive, um dos grandes representantes do neoliberalismo, Milton Friedman, foi aluno de Hotelling.

A noção de eficácia e eficiência pode tornar-se mais complexa para uma gestão dependendo das variáveis envolvidas. Em uma sociedade capitalista, uma das principais tentativas de buscar mensurar a noção de eficiência é o dinheiro. Autores liberais desenvolveram a noção de eficiência em Weber para formular os pressupostos da noção de custo-benefício, tão comum no neoliberalismo que se impessoalidade e se camufla como não-ideológico, mas técnico e tecnocrático. Entretanto, a visão do custo-benefício baseado tão somente no aspecto quantitativo do dinheiro é um dos artifícios mais sorrateiros da tecnocracia.

Neste sentido, os intelectuais da tecnocracia do século XX, sinalizam que a racionalidade reivindicada pelos iluministas estariam no mercado. Assim, lógica do mercado do mercado pautariam tecnicamente as ações governamentais de maneira inequívoca. Se por um lado, a concepção de razão pensada pelo humanismo iluminista estaria de braços dados com a ciência, matemática, política e arte; a noção de racionalidade consolidada no cavalgar da história estria reduzida a técnica, em uma matemática esvaziada e em leis de mercado tidas como inexoráveis, inquestionários e acima da política, aprisionando a razão em o que descreveu como  “gaiola de aço” :

[…]talvez o futuro reserve ao homem a mecanizada petrificação, falsamente embelezada pela convulsiva soberba de criadores de coisas e máquinas. No último estágio dessa viagem estaria o especialista sem espírito, o sensualista sem entranhas, podendo então esta nulidade se vangloriar de haver chegado ao ponto máximo da civilização.  (Faoro, p. 153, 1979).

Além disso, ao longo da história os debates têm sido muito mais iluminados em termos da gestão, muito mais do que as escolhas e as demandas políticas. O ideal de “o que fazer?” tem sido subjugado pelo “como fazer”. Neste sentido o debate sobre a participação democrática e anseios públicos legítimos têm sido direcionados para uma racionalidade técnica que despreza a democracia. É nesse sentido, que as ideias de Fayol (1989) tornam-se um cânone para os políticos muito mais que sua sensibilidade em relação às demandas da população trabalhadora, quais sejam: “planejamento, organização, comando, coordenação e controle” (Fayol, 1989) estariam acima da capacidade de dialogar e mobilizar setores sociais com suas respectivas prioridades.

Considerações finais

Enquanto o inimigo dos precursores da tecnocracia no iluminismo eram as paixões e a fé que seriam contrárias à noção de racionalidade; nos séculos seguintes, o inimigo declarado da preterida tecnocracia seria a ideologia e ineficiência. A ideologia como um inimigo da dimensão política e a ineficiência da dimensão econômica. A tecnocracia, hoje bem consolidada, encontra-se de braços dados com o positivismo no sentido de se achar acima da ideologia e que a técnica seria um instrumento totalmente autônomo e imune às vontades dos homens. Além disso, a tecnocracia encontra na noção de eficiência presente na economia capitalistas suas bases de orientação para a gestão pública, sendo uma instrumentalização sutil da gestão a partir do neoliberalismo. E qual é o espaço para a democracia?

A tecnocracia despreza as vontades democráticas em nome de princípios e valores que colocam acima dos homens. Para que mais ideológico do que aquilo que se nega ser? A tecnocracia é uma forma de esconder a realidade para aceitarmos como única, viável, possível e racional. A tecnocracia pode ser apresentadas de várias formas no espaço público, desde interpretações legais disfarçados de pautas técnicas, até sistemas de informática sob o qual nossas aspirações democráticas mais legítimas não sejam compatíveis. É esse o pressuposto fundamental da tecnocracia, esconder as vontades políticas de agentes políticos que se escondem nas sombras com meio de se indispor ao debate democrático.

Cabe destacar que não estamos ignorando ou menosprezando a dimensão técnica da política, ela teve importância histórica e tem sua importância até hoje. Porém o que faz a tecnocracia contemporânea é esvaziar aspirações e reivindicações legítimas em favor de interesses travestidos de racionalidade acima de tudo e todos.

Como citar este texto:

SAMPAIO-SILVA, Roniel. O que é tecnocracia? Bases históricas da política dos covardes. Blog Café com Sociologia. maio. 2023. Disponível em:<https://cafecomsociologia.com/o-que-e-tecnocracia-bases-historicas-da-politica-dos-covardes/>.

 

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Érico. A opacidade do iluminismo: o racismo na filosofia moderna. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 58, p. 291-309, 2017.

FAYOL, H. Administração industrial e geral: Previsão, organização, comando, coordenação, controle. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1989).

FAORO, Raymundo. Tecnocracia e política. Revista de Ciência Política, v. 7, n. 3, p. 149-163, 1973.

SANTOS, Flávio Reis dosCapitalismo, tecnocracia e educação: da utopia social saintsimoniana à economia (neo) liberal friedmaniana. Paco Editorial, 2016.

VOLTAIRE. Cartas filosóficas. Márcia Valéria Martinez de Aguiar (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999.

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

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