O Sociólogo e a Crítica

Arte e Sociologia na Encruzilhada

Por Camillo César Alvarenga*

 

São bem diferentes, como se deve imaginar, as preocupações de um sociólogo e de um crítico de arte. Se este está primeiramente atento a questões formais, a aplicação de técnicas e adoção de estilos, ou seja, vocacionado a privilegiar aspectos artísticos ou até mesmo, por vezes, genuinamente estéticos. Por outro lado, o sociólogo preocupa-se com todos estes aspectos, além é claro de todos os elementos que lhe são inerentes e que inevitavelmente de certa maneira, posso dizer, que escapam aos críticos de arte de uma maneira geral.
No entanto, é óbvio que não é possível operar uma sociologia da arte, sem o expediente que é único do crítico e de sua inteira competência, que é a apreciação da obra de arte enquanto fenômeno artístico, além de ser reconhecidamente uma resultante da interrelação histórica e social. A sociologia da arte, dotada do instrumento teórico da crítica de arte, busca complementar-se ao passo que a crítica de arte aparelha-se da filosofia, da história e de outras Ciências Humanas e Sociais, para aprofundar suas análises.
Num ramo em que muitos poetas e escritores, cito desde Baudelaire ao Gullar, passando pelo Jorge Amado, se engajam como que uma atividade necessária à condição do artista moderno, como já apontaram Eliot e Paz, o regime da crítica, seja literária ou artística de forma geral, parece ser uma atividade necessária, logo esta não pode prescindir dos recursos também modernos de uma ciência social como a sociologia.
Na tradição brasileira, essa condição fica evidente nos trabalhos consagrados de Alfredo Bosi ou de Antônio Candido, como também no Silvio Romero ou no Otto Maria Carpeaux, alcançando o Roberto Schwartz ou mais categoricamente, o projeto intelectual empreendido pelo Sérgio Miceli. Se nomes da crítica especializada podem ser retomados como Rodrigo Gurgel ou Afrânio Coutinho, na atualidade aprofundou-se a tendência ao poeta ou artista, ser a principal voz crítica em sua área, como Almandrade nas Artes Plásticas na atualidade.
Considerando as ressalvas possíveis, a ambos os colegiados, sendo eles artistas e estudiosos ou intelectuais acadêmicos comprometidos, procuro notar o imbricamento das áreas, que em fusão respondem ao mundo da cultura, ainda que de maneiras bem específicas. Recordo-me do João Adolfo Hansen, no momento em que comenta sobre um poeta

 

Por exemplo, o baiano Manuel Botelho de Oliveira, em um dos sonetos de seu livro Música do Parnaso, de 1700, escreve que “A serpe é maio errante de torcida flores”. Ao produzir a metáfora, Botelho de Oliveira aproxima o conceito de /réptil/, “serpe”, e o de /tempo/, “maio”, definindo um pelo outro: “A serpe é maio errante de torcidas flores”. A ideia dominante no século XVII é a de que esse efeito é agudo porque a relação que estabelece entre duas coisas conhecidas, réptil e mês de maio, é, como disse uma relação inesperada e desconhecida que dá prazer ou que maravilha o ouvinte ou o leitor, que tem de traduzir a imagem para fruí-la. Evidentemente, será também muito agudo o leitor/ouvinte capaz de entender que Botelho de Oliveira compara “serpente” e “tempo” por meio da comparação entre duas outras ideias, “movimento físico” e “movimento temporal”, ou seja, capaz de entender que ele aplica uma analogia de proporção do tipo a:b::c:d, pela qual se a “serpente” tem movimento e desliza e se o mês de maio, porque é tempo, passa, pode-se dizer que a serpente é como o mês de maio e, portanto, que a serpente é maio.O leitor/ouvinte será um discreto, no caso, será um tipo superior na hierarquia dos valores, mesmo se institucionalmente for um plebeu.Caso não entenda a metáfora, será um vulgar, um néscio, um tipo que se espanta com os efeitos, mas que não é capaz de entender os modos como são obtidos.”

Ao produzir tal análise constrói um diálogo, não só com a filosofia e a história, como agem os críticos de arte geralmente, mas permite uma percepção sociológica sobre as ideias postas em questão com o verso a partir da qual a crítica adverti: ser um néscio, ou melhor não compreender a experiência estética, nada tem haver com ser plebeu, ou seja, ser “discreto” é o que significa ser “um tipo superior na hierarquia dos valores” sociais, políticos e culturais, nesse momento histórico em que a visão dominante era articulada por uma teologia política seiscentista.

 

***

 

Agora, recupero o T. W. Adorno comentado pelo Jaime Ginzburg, no texto Sociologia e Crítica Literária. Considerando a Sociologia no âmbito dos estudos acadêmicos, esta possui um caráter multidimensional. Procurando distinguir a familiaridade com categorias e conceitos e do seu profundo entendimento e compreensão para seu aprofundamento e aproveitamento analítico.
Buscando dessa forma, desenvolver a capacidade de se produzir ideias bem como problemas sociológicos, aliando a noção de um conhecimento livre preservado independente da rigidez acadêmica, observando que se a sociologia tem como objeto a sociedade moderna, fragmentada e descontinua, ela mesma não pode se ossificar.
Frente à cobrança por “possibilidade e controle dos processos de produção do conhecimento” a sociologia é “marcada por períodos de dúvida, de incompreensão, em que o desafio da investigação não se resolve”. Sendo necessário avaliar a “competência investigativa” e o “controle do processo reflexivo” diante da visão na qual seria preciso “incompatibilizar estereótipos e conhecimento”.
A disjunção ou descontinuidade são incorporadas ao trabalho sociológico. Distinguindo primeiramente o estudo acadêmico do escolar – serializado e linear, enquanto o primeiro é caracterizado por lacunas e saltos. O “salto qualitativo” liga-se a uma questão temporal entre momentos de reflexão distintos e distantes no tempo onde ocorre a maturação da ideias.
Fundada na ideia de “liberdade acadêmica”, a conexão entre a atividade sociológica e rupturas com processos hegemônicos de reprodução de ideias já consagradas, seria alcançada. Já que em sociologia a “heterogeneidade” é a lógica e não há um denominador comum, a não ser o estranhamento ante a manifestação do fenômeno social. Dessa forma o intelectual fazendo jus a si mesmo, pode se colocar no lugar de “participar e não participar da cultura” assim como o crítico/sociólogo quando analisa a obra de arte.
A partir da revisão dos pensamentos hegelianos, heranças “oceânicas” até hoje retomadas pela crítica literária, da desestabilização dos cânones e da periodização proposta pela historiografia corrente, que não consideram variações históricas. Observando a natureza semântica e discursiva dos sentidos atribuídos às obras de arte, a libertação do cânone, sociológico e literário poderia dar margem a novas interpretações, o que romperia com as expectativas de reprodução de modelos ortodoxos pré-estabelecidos.
Se o descuido com a linguagem contribui para discursos conservadores, ao invés de buscar-se a crítica para a produção de uma visão que lance nova luz sobre velhos temas e objetos em análise, os intelectuais ficaram presos nas armadilhas da tradição e da sua noção estabelecida de clássicos.
A incapacidade de domínio ou desenvolvimento de uma linguagem crítica contribui para a dificuldade dos estudos literários, da crítica de arte ou da sociologia, por exemplo, superarem visões fixadas pela tradição clássica da modernidade que impedem a renovação de valores, principalmente por questões políticas, deixando de considerar que a sociedade, está em uma dialética constante, ou seja, produzindo uma sociedade “sem síntese” a qual carece de mais ainda alcance e profundidade.
E esta é a razão da crítica e seu fundamento, o sentido da crítica sociológica de arte encontrar uma visão de maior profundidade. Observa-se que nesse momento da modernidade, esse tempo da indeterminação e atualmente da circularidade e da retomada, apresenta-nos um cenário onde a posição ou o discurso do intelectual deve ser compreendido não apenas pelo seu valor acadêmico – destituído de validade – mas sim pelo seu ponto de vista político, melhor dizendo, crítico.

 

***
É neste instante que o sociólogo e o crítico de arte se afinam, neste momento em que a integração entre uma disciplina como a sociologia e o mundo da arte significa uma total recusa a uma concepção de modernidade que segrega as esferas sociais, assim como especializa os ramos do conhecimento levando o pensamento social a não penetrar na obra de arte nem mesmo apresentar um ponto de vista original. Refletindo uma investigação da expansão da capacidade de compreensão sobre a obra de arte e o mundo da cultura, esta que deve ser vista como aberta à discussão, por várias áreas do conhecimento por ser tomada enquanto uma totalidade sem síntese em suas contradições ante as transformações da/na história a crítica sociológica da obra de arte se apresenta, hoje, como uma possibilidade não tradicional aos estudos no campo da cultura.

*Camillo César Alvarenga é estudante do bacharelado em Ciências Sociais na UFRB. Escreve com frequência em Scombros.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

Sair da versão mobile