Por Cristiano das Neves Bodart
Quando comecei a lecionar Sociologia no Ensino Médio já tinha a compreensão de que não me cabia reproduzir fatos históricos, antes evidenciar porquê e para quê eram eles rememorados exaustivamente no interior de um dos principais Aparelhos Ideológicos do Estado: a escola. As contribuições de Foucault haviam me esclarecido as relação existente entre poder, discurso e a “verdade” e desejava que meus alunos também entendessem as relações existentes entre essas três categorias. Tentei chamar atenção para os aspectos e objetivos dos discursos oficiais e como os “narradores legítimos” eram sempre os poderosos. Não sei quantos dos meus alunos compreenderam meus propósitos pedagógicos naquele momento. Ainda que tenha sido poucos, valeu o esforço. Podemos iniciar o processo de conscientização a partir de poucos, desde que se desperte a disposição em colaborar para a conscientização de outros poucos; na esperança de que amanhã seremos uma multidão.
Um pequeno grupo, composto pelos compositores Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira, Manuela Oiticica e Danilo Firmino, certamente colaboraram para que esse grupo consciente dos perigos da “História única” se ampliasse. Por meio do samba enredo “A história pra ninar gente grande” (2019), esse pequeno grupo – usando a escola (de samba) – trouxe a público reflexões que questionam as “narrativas legítimas”, trazendo à tona outra narrativa: “A história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar”. Por certo as contribuições da Sociologia chegaram, em alguma medida, nos morros e no sambódromo. De forma dialética, levaremos para as aulas de Sociologia.
Uma história – não dos heróis brancos e poderosos – foi contada no sambódromo[1], no carnaval de 2019. A escola (de Samba) não instrumentalizada pelo Estado deu voz aos “heróis de barracões”, declarando em bom e alto tom que chegou a vez do Brasil dar voz àqueles que foram calados, que tiveram seu “sangue retinto pisado”.
A voz que se produziu no morro e que chegou ao sambódromo, precisa chegar às aulas de Sociologia. Passados alguns anos e não mais lecionando no Ensino Médio, continuo a acreditar que demonstrar aos alunos as relações entre poder, discurso e a “verdade” seja um caminho promissor para um mundo mais justo e aulas mais comprometidas com a equidade e a liberdade. Sendo assim, vamos levar a voz que ecoou no sambódromo às salas aula. Reflita com seus alunos a letra desse incrível samba enredo. Vamos tirar as poeiras dos porões. Ô abre alas…
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Segue a letra do samba enredo:
História pra ninar gente grande
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
Nota:
[1] Salve Darcy Ribeiro idealizador desse espaço e um dos grandes defensores de minorias.
Este belíssimo samba, que retrata um enredo tão sociológico, merece realmente ser levado pra sala de aula. Convido aos amigos que busquem na internet a sinopse do enredo e verão um belo texto. No meu caso, vou usar como material para minhas aulas sobre ideologia.