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  • Imaginário da República no Brasil -Resenha: “A Formação das Almas”

    Imaginário da República no Brasil -Resenha: “A Formação das Almas”

    Resenha: “A Formação das Almas: o imaginário de República no Brasil
    imaginário da República
    RESENHA: A FORMAÇÃO DAS ALMAS: O IMAGINÁRIO DA REPÚBLICA NO BRASIL
    Por Edinei Pereira*

    CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras: 1990

    José Murilo de Carvalho é graduado em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, com mestrado em Ciência Política pela Stanford University e doutorado em Ciência Politica pela mesma universidade. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, do Centro de pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. E atualmente é professor da UFRJ. É autor, dentre os vários livros já publicados, de Cidadania no Brasil- longo caminho, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, e A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. Sendo esta ultima obra o objeto de nossa análise.
    A quem pretende conhecer uma parte da história do Brasil não pode ficar sem ler duas obras primas do autor, uma é o livro ao qual ele intitulou de Os Bestializados, a outra obra é A Formação das almas. Aqui cabem algumas ressalvas. Na primeira obra o autor desmistifica a visão errônea de que o povo esteve presente num processo de transição política, mesmo não aceitando passivamente o que se passava ao seu redor, e põe em cheque o que naquele período entendia-se sobre cidadania. Enquanto a segunda obra referida- A Formação das Almas- é focada num processo em que a República busca sua consolidação, mesmo que para tanto façam buscas incessantes pela criação de mitos, heróis, e uma cultura de fácil absorção. E é desta forma que o autor procura compreender quais foram os elementos apropriados pela elite, tal qual a criação de heróis, hinos, bandeiras e simbologias. Objetivando, dessa forma, criar nas massas um sentimento de nacionalidade, um imaginário republicano.
    Formação das Almas é composta por seis capítulos, contendo, também, uma introdução e conclusão. E ao longo de suas 166 páginas enriquece a obra “imaginário da República” com várias pinturas da época, deixando evidente sua proposta, como a apresentação de personagens, símbolos, e até mesmo de correntes de pensamentos que travaram intensas lutas no interior de um regime que buscava um norte, uma afirmação no que se refere a aspectos de poder. E isso o autor relata de forma bem sucinta na introdução do livro. Já na capa o leitor mais atendo irá perceber que o autor introduz uma pintura de Pedro Bruno, denominada de A Pátria, onde mulheres estão envoltas pela bandeira do Brasil, bordando-a.
    No primeiro capítulo, Utopias Republicanas, o autor faz referência a um pronunciamento de Benjamin Constant, onde o tema central seria a liberdade, pois dado o momento de transição política pelo qual passava o país, segundo Murilo de Carvalho, estava na ordem do dia para os construtores da República brasileira a legitimação de tal regime perante a nação. Por isso é que o autor busca compreender e levantar questões relacionadas a grupos, nação, cidadania, dentre outros.
    Embora, com base nos escritos, o autor reforçasse a busca pela construção de uma identidade nacional, com participação de obras literárias, como O Guarani, de José de Alencar, e de políticos, como José do Patrocínio. O que vigorou, também, foram as correntes de pensamento, e modelos que estavam, como o próprio autor coloca, à disposição dos republicanos brasileiro. Os modelos citados no texto eram: o jacobinismo, o positivismo e o liberalismo. De forma que os dois primeiros de inspiração francesa e o ultimo norte americano. Sendo que os dois últimos, segundo Murilo de Carvalho, se voltavam suas bases ideológicas para a estrutura do poder, isso será, em capítulos seguintes analisada.
    Além disso, outro conceito chama muita atenção na obra “imaginário da República”, que é a estadania, onde o Estado aparece como um acolhedor das massa desprovidas de todo e qualquer sorte, como os desempregados, insatisfeitos com baixos salários.
    No segundo capítulo, – As Proclamações da República-, atém-se às preocupações que levaram os republicanos a descrever, criar e consolidar o novo regime. Para tanto, o autor descreve que houve “a batalha pela construção de uma versão oficial dos fatos” (grifos do autor), e logo tiveram três participantes no processo, que iria culminar na Proclamação da República, como os que iriam disputar o título de heróis maior da conquista.
    É nesse sentido que a obra busca descrever o perfil de cada um, tanto quanto os grupos e correntes de pensamento que influenciaram. Deodoro, por exemplo, é descrito como usas raízes nos militares, o que para estes, o exército tivera maior influencia nos fatos que precederam a proclamação que os civis. Enquanto a figura de Benjamin Constant, que representava a ala positivista não ortodoxo, fazia contraposição aos militares. E Quintino Bocaiúva, representava um setor liberal. Pendendo mais para o lado de Deodoro.
    O autor, ao final deste capítulo, coloca aquilo que pode ser entendido como sendo uma das principais ideias do livro. Expõe as dificuldades encontradas pelos lideres da proclamação em encontrar um gesto que simbolizasse o movimento através da arte. Enquanto ao povo, este estivera longe dos acontecimentos. Murilo de carvalho ainda coloca que as contradições da República se deu na mesma proporção que a escolha daquele que simbolizaria o herói da nação.
    O terceiro capítulo– Tiradentes: um herói para a república-, começa explicitando as dificuldades que o novo sistema de governo encontrara para construir a imagem do herói nacional, pois, apesar dos vários esforços em consolidar os nomes que participaram da transição do governo, mesmo como a ajuda dos positivistas, fora em vão. Os motivos foram vários, desde fatores estéticos, até mesmo a questões morais.
    Dessa forma, a figura de Tiradentes ganha força. Embora muitos não imaginassem que este seria um forte candidato a herói nacional, Campos Sales tinha um retrato deste em sua sala. Neste capítulo Murilo de Carvalho expõe tal fato com o intuito de mostrar que o personagem não era completamente desconhecido, o que, também, gerou conflitos em torno de sua imagem. Para tanto, dado as contradições em torno da construção do personagem, o autor descreve a participação de historiadores e literatos na exposição do imaginário que estava por vir, sendo que os segundos saíram na frente, como, por exemplo, com a publicação de As liras, de Gonzaga, publicadas em 1840. A disputa entre a figura de Tiradentes e Pedro I, segundo o autor passou a fazer parte da batalha entre republicanos e monarquistas, tal conflito não pode ser analisado apenas no período em que a República fora proclamada, e, sim, fora antes mesmo do novo regime, uma vez que A inconfidência mineira resultou na morte por enforcamento de Tiradentes, e no local fora construída uma estátua da pessoa que o enforcara, o então neto da rainha.
    José Murilo de Carvalho demostra com isso que a republica buscou uma figura com a cara da nação, e os fatores que possibilitaram tal façanha, segundo o autor, além dos já citados, foram vários. Como fato de Tiradentes ter participado dum espaço geográfico politicamente privilegiado, Minas gerais, não ter ido a nenhuma guerra. E a tradição cristã do povo facilitava a construção de um Cristo cívico, e as alusões, segundo o que fora descrito na presente obra pelo autor, vão desde a morte, assemelhando-se a Jesus no calvário, ao fato deste, assim também como Jesus, ter sido traído, até mesmo sua feição, a de Tiradentes, fora associado a de Jesus Cristo. Tal imaginário fora construído com total suporte dos positivistas, e transposto para quadros, monumentos, livros, e em 21 de abril de 1890 fora criado o ferido nacional. E ao longo do processo histórico, vários outros governos se apropriaram da figura de Tiradentes na construção e manutenção do imaginário da nação.
    Em República-Mulher: entre Maria e Mariane, o autor aborda a figura feminina nas Repúblicas francesa e brasileira. Primeiramente faz uma análise da República francesa e a transformação da imagem feminina ao longo das três fases do novo regime. Dessa forma, o autor demonstra domínio, não só sobre o contexto brasileiro, mas também, sobre o contexto histórico de outros países, nesse caso a França. E já no início do capítulo, coloca que após a queda da monarquia francesa, onde havia a figura do rei, o uso da alegoria feminina passa ter um patamar no imaginário francês. A alegoria feminina, que tivera inspiração da Roma antiga, ganha posteriormente maiores conotações, com o quadro de Delacroix, A Liberdade guiando o povo. Percebe-se nesta obra os traços belicosos da imagem, o que representava a própria revolução. Mas as fases da república fora transformando os interesses pelas simbologias republicanas, então, segundo José Murilo de carvalho, a imagem feminina ganhara novas características, como, por exemplo, aparece amamentando uma criança, e com ar mais serene, não lembrando nada aquela imagem feminina que simbolizava a mulher que participara dos levantes e combates.
    Embora o autor iniciasse este capítulo abordando a figura feminina nas republicas francesa, este frisa que seu foco é analisar a representação feminina na república brasileira. Para tanto, José Murilo faz referência em seus escritos a August Comte, pensador positivista que idealizava a mulher, como representação ideal para a humanidade. E este vai além ao descrever as características da mulher, como, por exemplo, com filho nos braços.
    Mas, diferentemente do processo republicano francês, a figura aqui no Brasil, por vários motivos não ganhara conotações relevantes. Pois na França, além das mulheres participarem diretamente das manifestações, o ar belicoso descrito nas pinturas do positivista Delacroix, e o ser politizado fizeram-se valer. Diferentemente da realidade do Brasil, onde nem o homem, muito menos a mulher foram agentes do processo político. Ao homem da elite era denominado de público, e, portanto, participante das questões políticas, enquanto à mulher, nas palavras de José Murilo de Carvalho “A mulher se pública, era prostituta”.
    Bandeira e hino: o peso da tradição, compõe o quinto capítulo da obra, e não diferente das demais simbologias, também, na definição do hino e bandeira oficial para a República, não se difere no sentido das competições internas, e, sob influencia francesa, ganharam contornos, entre idas e vindas.
    Antes da definição, tanto do hino quanto da bandeira, a Marselhesa, hino francês, que eram cantadas por todas as nações que se consideravam revolucionárias, também, fora adotada pelos republicanos até a consolidação do hino oficial. Porém, a bandeira tricolor, que também tinha significado na França, apesar de seu peso simbólico, não fora adequado a nova bandeira. Dessa forma, após várias tentativas, Décio Villares desenhara a bandeira que seria a oficial, com indicações positivistas “Ordem e progresso”, e que indicava a transição do regime. Também havia uma representatividade nas cores e estrelas.
    José Murilo de Carvalho descreve que apesar dos embates em torno do hino e bandeira, o impacto foi menor que a construção dos mitos e heróis da república. Os cartunistas da época fazendo uso de jornais e revistas expressavam de forma a criticar e elogiar os novos símbolos da nação.
    E, por fim, o sexto capítulo, Os positivistas e a manipulação do imaginário, que está subdividido em três subtemas, no qual o autor descreve um August Comte com pensamentos que não se limitava unicamente a elementos científicos. A esta transição, segundo José Murilo de Carvalho, se deveu ao relacionamento de Comte com Clotilde de Vaux. Dessa forma, tal pensamento chegou a desenvolver maneiras de alcançar os fatores estéticos. Então, constata-se a seguinte passagem na obra: “ Segundo a estética positivista, a imaginação artística deve ter por inspiração o sentimento, por base a razão, e por fim a ação…”.
    E no campo das doutrinas, onde a ortodoxia brasileira e o ideário comtista tinham como objetivo o convencimento da população. Enquanto os setores médio tinham acesso aos livros, jornais etc, aos proletários e mulheres cabia o uso de simbologias e rituais para o convencimento desses últimos.
    Dessa maneira, José Murilo de Carvalho, em seis capítulos, expõe em sua obra “imaginário da República” um processo onde a busca pela legitimação esta na ordem do dia. Assim, também, como a busca incessante pela afirmação de mitos, heróis, bandeiras e simbologias. Embora na historiografia os republicanos emplacassem a vitória sobre a monarquia, estes se depararam com o embate entre as principais correntes da época- liberalismo, jacobinos e positivistas-. Além disso, as figuras, segundo José Murilo, buscavam a consolidação do novo regime através daquele que seria o símbolo maior da nação. Porém, não contavam com os contratempos.
    A influencia francesa fez-se presente desde o início, haja visto que o simbolismo fora a corrente de pensamento que predominara ao longo das decisões que iriam culminar com as obras artísticas, tal qual a bandeira nacional, monumentos, quadros etc.
    O autor buscou apresentar nesta na obra “imaginário da República” aquilo que considerou como sendo os principais pontos responsáveis pela transformação de mentalidade de um povo, e para tanto, segundo José Murilo de Carvalho, fazia-se por parte da elite propagar, através do conhecimento, a proliferação de simbologias. Uma vez que os letrados absorviam os livros e jornais, restava agora convencer, ou tornar mais acessível aos não letrados, como mulheres e proletários em geral, através de simbologias criadas principalmente pelos positivistas. Então, o desafio da identidade republicana era, sobretudo, a absorção de novos saberes, e consequentemente a formação da alma.
    *  Graduado em Ciências Sociais pela Fundação Santo André. Atualmente está se especializando em História, Cultura e humanidades pela PUC-SP.

     

    Como citar esse texto:
    PEREIRA,  Edinei.Resenha: A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. Blog Café com Sociologia. 2015. Disponível em: < https://cafecomsociologia.com/2015/11/resenha-formacao-das-almas-o-imaginario.html>. Acesso em: dia mês ano.
  • Rousseau e as mulheres

    Rousseau e as mulheres

    Rousseau e as mulheres
    EMILIO OU DA EDUCAÇÃO
    Por Cristiano das Neves Bodart
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    Rousseau e as mulheres: Rousseau buscou, no livro V de sua obra Emílio ou Da Educação, apontar o tipo ideal de mulher, tomando como exemplo Sofia.
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    “Sofia deve ser mulher, como Emílio é homem” (p.515). A partir dessa afirmativa, Rousseau busca apontar as diferenças existentes entre os homens e as mulheres. Para este autor, homens e mulheres são iguais em tudo, porém se diferenciando em tudo o que depende do sexo. Tais diferenças devem influir sobre a moral de ambos, por isso devem ter educações diferentes.
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    Para Rousseau, ele deve ser ativo e forte, ela passiva e fraca; “é preciso necessariamente que um queira e possa; basta que o outro resista pouco” (p.516).
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    A mulher, na óptica desse autor foi criada para agradar ao homem. O homem agradar a mulher não é uma necessidade direta. Seu agrado é natural e vem de sua potência, de sua força: Essa é a lei da natureza, afirmou Rousseau.
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    Cabem apenas as mulheres, via sedução, que lhes é própria, buscarem mexer com os sentidos dos homens, desde que de forma moderada, se não traria à ruína dos dois gêneros. A astúcia é um talento natural das mulheres. Como as mulheres são naturalmente mais fracas do que os homens, se eles se enfraquecerem elas tornarão mais fracas ainda, por isso a astúcia desse ver prevenida de abusos.
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    A beleza das mulheres é algo natural. Ou se é bonita ou feia. Os enfeites são apenas vaidade da posição social e não torna uma mulher feia em bela. Os benefícios dos enfeites não aqueles esperados, comparado com o tempo perdido na arrumação.
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    “A rispidez dos deveres relativos a ambos os sexos não é nem pode ser a mesma” (p. 521). Ao realizar esta afirmação, o autor defende que a mulher não deve reclamar da desigualdade existente entre os sexos. Para ele, isso não é fruto do preconceito, mas da razão.
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    O homem que trai sua mulher com outras é injusto e bárbaro, mas a mulher que assim procede acaba com a família. Não importa que a mulher seja apenas fiel, mas que o seja pelo marido e por todos. Rousseau defende que mulher deve ter uma preocupação com a sua aparência, com sua moral, com a forma como os outros a enxergam. O autor afirma que uma mulher que se passa um dia por infame possa um dia se regenerar, por isso deve ter um cuidado espacial com seu comportamento.
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    A mulher, afirmou Rousseau, vale mais como mulher do que como homem. Isso devido sua condição de fraqueza física. A esta deve se cultivar as coisas belas e frágeis, como o canto e dança, desde que aquele ensinado pelo seu pai e este por sua mãe.
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    As mulheres devem aprender a serem mães e esposas, essa é a lei da natureza, defendida por Rousseau. Devem ter pouca liberdade e isso é necessário ensinar desde tenra idade. A mulher deve desde cedo conhecer para amar a vida doméstica e tranqüila de um lar, para que esta possa ter uma vida dentro da moralidade que lhes cabe. Assim tornar-se-á mais bela e encantadora.

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    Obs: ao ler o texto desse autor, tomar cuidado para não cair no anacronismo.
     


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    Referência
    ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. Martins Fontes. 2ª Ed. São Paulo. Martins Fontes. 1999.

  • Habermas e a Constituição da União Europeia

    Habermas e a Constituição da União Europeia

     

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    Habermas e a Constituição da União Europeia

    Por Cristiano das Neves Bodart
    O objetivo desse texto é apresentar algumas considerações em torno de três obras do Filósofo alemão Jürgen Habermas, todas escritas no contexto de crise das instituições europeias (UE) (2000-2011).
    Em 2001, Habermas publicou a obra “Eras das Transições” (traduzido para o português em 2003), onde deixou claro que as duas gerações envolvidas na construção da UE possuíam objetivos diferentes. Para ele, a primeira geração tinha por objetivo garantir a paz e integrar a Alemanhã que esteve sob tutela durantes anos. Essa geração conduziu a integração econômica sob segundo plano. A segunda geração buscou garantir a paz interna e integrar as democracias e o mercado/a economia.
    Nessa mesma obra, Habermas aponta um diagnóstico que a sociedade não esteve muito interessada na criação da UE devido seu caráter meramente econômico. Para ele, a sociedade europeia buscava uma forma de vida unificada e não um mercado único. Habermas denunciava que a globalização não é um fenômeno natural, mas fruto de decisões políticas e econômicas, ou seja, produto de uma política intencional.

    Para Habermas,

    “[…] a União Européia apresenta-se como um megaespaço continental, densamente interconectado pelo mercado e pouco regulado verticalmente por aparelhos político-administratavios legitimados para tal” (2003, p. 117) .

    Habermas defende que o papel do Estado deve ser combater os efeitos indesejáveis da globalização. Para ele, os problemas (efeitos negativos) devem ser combatidos em uma esfera para além das fronteiras dos Estados. Nesta obra afirmou que a Europa não possuía uma cosmovisão neoliberal, acreditando que trata-se de medidas regionalizada e delimitada à Europa. O tempo mostrou que ele estava errado nesse ponto.
    Habermas defendia a criação de uma Constituição Europeia que tivesse como objetivo criar condições para ampliação da participação dos cidadãos na política. “O que precisamos é de uma constituição europeia”. Defendia, assim, que houvesse condições empíricas necessárias para a construção de uma constituição europeia produzida democraticamente. Para ele, era necessário primeiramente a constituição de um DEMOS para depois ter-se um FOLK. Para ele o Estado é uma criação e que precisaria criar uma cidadania europeia para criar uma espécie de “estado europeu”. Assim defendia a criação de: i) uma cidadania europeia; ii) impostos de nível europeu para dar mais autonomia a UE; iii) cultura política comum, mantendo orgulhos nacionais.
    Para Habermas a cidadania, atualmente, não mais é expressão utilizada

    “[…] apenas para definir a pertença a uma determinada organização estatal, mas também para caracterizar os direitos e deveres dos cidadãos […] O status do cidadão fixa especialmente os direitos democráticos dos quais o indivíduo lança mão reflexivamente, a fim de modificar sua situação jurídica material” (2003, p. 283).

    Em 2008 Habermas publica sua obra “Ach, Europa. Kleine politische Schriften XI”. Nesse momento apresenta-se menos otimista. Afirma que o tratado de Lisboa foi um projeto de elite, excluindo os cidadãos. Por isso, a não aceitação popular desse novo tratado. Para ele, as decisões, erradamente, são tomadas por burocratas ou por chefe de estado e não pelo parlamento e com a participação social. Continua a defender que a Constituição Europeia deveria ser democraticamente constituída e que garanta a democratização, assim como, uma constituição finalité, ou seja, que defina os objetivos e as fronteiras da UE. Desta forma, Habermas volta a defender uma Constituição para a UE. Nesta obra, denuncia a tendência de criação de governos técnicos que rejeitam a participação social. Para ele não existe decisões técnicas como afirmam os governantes. Todas as decisões são políticas por existir alternativas, por tanto, passível de participação social.
    Ainda nesta obra de 2008, Habermas defende um diálogo supra-estado, o que pode ocorrer por meio de troca de informação e opiniões via mídia de cada estado. Assim todos compartilham as opiniões de cidadãos de cada estado membro.
    Em 2011, publicou “Zur Verfassung Europas: Ein Essay” (que foi, em 2012, traduzido e publicado pela editora Unesp). Nesta obra, o filósofo se apresenta mais otimista por acreditar que os déficits democráticos são superáveis. Nesse ensaio ele amplia sua análise para além da Europa, por se render a ideia do cosmopolismo democrático. A UE passa a ser vista por ele como um modelo para a uma sociedade mundial.
    Para Habermas, o direito democrático possui uma força civilizadora e uma força racionalizadora (nota-se um influência weberiana em suas ideias). Tais forças podem produzir a “sociedade mundial”. Considera que a barbária seria entender as forças do mercado como forças naturais, defendendo mais uma fez que tratam-se de forças políticas pautadas em escolhas. Para ele, ou a Europa toma o caminho da democratização ou o caminho para a barbária.
    Nesta obra, é marcante dois conceitos: i) soberania nacional; ii) soberania popular. Aponta que só é possível uma soberania nacional ou regional (no caso a UE) se houver primeiramente soberania popular, se a vontade e as decisões do povo forem respeitadas. Se houver, afirma, uma soberania popular em nível regional, será possível construir uma soberania transnacional para a UE.
    Habermas volta nesta obra a defender a necessidade de reduzir a distância entre as instituições e os cidadãos. Para o alemão deve haver uma esfera pública marcada por uma incorporação da opinião pública. O parlamento não pode se fechar, mas incorporar e dialogar com o que está a sua volta (sociedade civil), não sendo possível uma democratização europeia sem uma esfera pública.
    Por fim, o filósofo alemão, aponta que ver avanços no sentido de se criar uma identidade europeia que reconhece as subjetividades particulares.
    Certamente este pequeno esboço das três obras habermasianas em torno da constituição da UE é demasiadamente superficial, tendo por objetivo apenas apresentar um rápido panorama de suas posições e aguçar o interesse do leitor por um filósofo que merece ser lido, relido, discutido e rediscutido.

     

    […] a dignidade humana … é a ‘fonte’ moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo. (HABERMAS, 2008, p. 10-1)

    Referências
    HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

    __________________. Direito e democracia : entre facticidade e validade, volume II. 2. ed. Rio  de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
    __________________. Ach, Europa. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008.
    __________________. Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: UNESP, 2012.
  • Sociologia dos Movimentos Sociais

    Sociologia dos Movimentos Sociais

    Resenha Sociologia dos Movimentos Sociais

     
     
    Resenha produzida por Cristiano das Neves Bodart

    Obra resenhada: GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos Movimentos Sociais. São Paulo, Cortez, 2013, pp. 127.

    “É impressionante a quantidade de manifestações de rua hoje. O sistema político roubou a voz dos jovens e a capacidade deles serem ouvidos. A rua se tornou o palco para a política, como em 68” (Saskia Sassen, in Carolina Montenegro, Folha de São Paulo, 21/8/2011:20).

     

    Na obra “Sociologia dos Movimentos Sociais”, Maria da Glória Gohn, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e estudiosa dos movimentos sociais desde os anos 70, busca “contribuir para a construção do campo de estudo da Sociologia dos movimentos sociais” (GOHN, 2013:7). O livro é parte de sua pesquisa sobre movimentos sociais transnacionais que vem sendo desenvolvido com apoio do CNPq.
    Nessa obra, Gohn tem por objeto de estudo as práticas e ações coletivas de alguns movimentos sociais selecionados, a saber: Primavera Árabe, os Indignados na Europa (especialmente na Espanha), o Occupy Wall Street, Maio de 1968 e os movimentos contemporâneos brasileiros.
    A metodologia de estudo adotada pela autora passa pelo seguinte procedimento: delimitação das características básicas do cenário sociopolítico, econômico e cultural do tempo histórico em análise, a fim de obter um retrato do contexto. Feito isso, do contexto analisa os textos noticiados ou comentados, objetivando analisá-los e compreender seus desdobramentos. Recorreu-se também aos sites dos próprios movimentos em estudo, reconhecendo suas limitações pelo teor “celebratório” que quase sempre possuem. Busca-se apresentar recortes interpretativo-teóricos “para capturar a natureza do associativismo civil e seu significado em termos de processos de mudanças sociais” (GOHN, 2013:7).
    O livro é composto por três partes ou capítulos, além de uma introdução e da conclusão. Cada parte está dividida em subcapítulos, os quais têm como foco de análise determinados movimentos sociais. No primeiro capítulo a autora analisa a Primavera Árabe, os Indignados na Europa (especialmente na Espanha), o Occupy Wall Street. Na segunda parte são analisados os movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Na terceira parte o destaque é para o Maio de 1968.
    O título da obra estampado na capa é, a nosso ver, bastante falho por ignorar o subtítulo proposto pela autora. O subtítulo “indignados, Occupy Wall Street, Primavera Árabe e mobilizações no Brasil” que não aparece na capa expõe de forma mais fiel a proposta da obra. Sem o subtítulo fica parecendo que o trabalho se debruça sobre uma avaliação da teoria sociológica dos movimentos sociais, o que não é sua proposta. O que observamos é a autora mobilizando diversas teorias para tentar fazer uma sociologia interpretativa dos movimentos selecionados, buscando identificar padrões e distanciamentos nas ações, nos repertórios e instrumentos utilizados em cada uma das análises realizadas. Para ela,

    Não se trata, portanto, de contrapor tipos de movimentos ou ações coletivas, nem paradigmas teóricos interpretativos como mais ou menos adequados, até porque todos eles continuam a coexistir com os novos. Trata-se de reconhecer a diversidade de movimentos e ações civis coletivas, suas articulações e os marcos interpretativos que tem lhes atribuído sentidos e significados novos, o que eles têm trazido à luz no campo da investigação de uma Sociologia dos Movimentos Sociais (GOHN, 2013:114).

    Embora Gohn percorra diversas correntes interpretativas, algumas influências nos parecem ser marcantes, tais como a “Teoria das Oportunidades Políticas”, a “Teoria da Mobilização de Recursos” e o conceito de “Repertórios”, de Tilly e Tarrow (2007). Um autor central em sua obra é Alain Touraine, sobretudo para analisar os movimentos sociais pós 1968.
    A autora inicia destacando que a Sociologia dos Movimentos Sociais só veio a se consolidar a partir da última década do século XX e que dentre os temas mais estudados estariam, “as ações coletivas organizadas em movimentos sociais, associações e redes civis, grupos de interesses e de pressão, contestações, disputas e litígios políticos de vários sujeitos sociopolíticos” (GOHN, 2013:11). A autora busca deixar claro que sua obra parte de uma pergunta inicial, que é: “o que acontece quando jovens indignados entram em cena?” Nota-se ao longo de todo o livro a centralidade dos jovens nas mobilizações coletivas. Para as análises dos movimentos recentes, cujos jovens também estão no centro da cena, Gohn parte da premissa que “há um novo momento e um novo modelo de associativismo civil dos jovens”. Uma segunda questão da obra é: “que tipo de cenário econômico e político é sociocultural dá abrigo às manifestações selecionadas?” O leitor atento perceberá que a autora recorre, ainda que de forma superficial, por diversas vezes à “Teoria das Oportunidades Políticas” para compreender os contextos que deflagraram as ações coletivas e à “Teoria da Mobilização de recursos” para compreender os repertórios adotados em cada situação estudada.
    Gohn busca em sua obra identificar as diferenças dos campos temáticos tratados em cada época, assim como os repertórios utilizados em cada movimento social, suas formas de comunicação, suas identidades criadas, seu sentimento de pertencimento a um dado grupo sociocultural ou de classe, assim como identificar como aproveitaram as oportunidades políticas e socioculturais da época e como veem os partidos políticos e as organizações políticas. Nesse sentido, a autora desperta a atenção daqueles que estarão estudando os movimentos sociais para dimensões importantes e abrangentes.
    Grosso modo, Gohn identifica que os anos de 1960, mais especificadamente o ano 1968, foram marcados pelo uso dos muros como meio de comunicação, assim como as frases e cartazes. A televisão sendo o meio de divulgação dos fatos sociais, unindo e solidificando os sentimentos de jovens de lugares distantes. O combustível dos jovens protestantes eram as utopias revolucionárias. Os movimentos se consolidavam pela busca de um engajamento diferente na política, como por exemplo, a união de estudantes e camponeses em busca de uma nova sociedade. As identidades político-culturais estavam na pauta dos movimentos dos anos de 1960 e 1970. Para Gohn, nos anos de 1990 “os movimentos alter ou antiglobalização irromperam no cenário internacional”. Nesse período os repertórios teriam focalizado as questões macroeconômicas, sobretudo os processos de globalização e o modelo neoliberal, denunciando seus impactos sobre a sociedade. As formas de comunicação se alteram com o desenvolvimento da internet. “O chamado essencialismo da luta de classe foi substituído pelo pluralismo das lutas antirracionais, feministas, etc.” (Zizek, 2002:16 apud GOHN, 2013:14). De acordo com a autora, os anos 90 são marcados pela proximidade do Estado em relação aos movimentos sociais e pela criação de espaços participativos institucionalizados. Nos anos 2000, sobretudo a partir dos atentados as Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, os movimentos altermundialistas perderam força, dando lugar a outras formas de protestos transnacionais negando as políticas governamentais tradicionais, como as formas tradicionais “clássicas”, via partidos políticos e sindicatos (GOHN, 2013:16). “De fato, as novas mobilizações não são convocadas por partidos ou sindicatos, ainda que muitos deles peguem carona com o desenrolar das ações” (GOHN, 2013: 20). Os anos 2000 são marcados pela busca da justiça social, da valorização da moral e da ética, sobretudo para avaliação das atuações dos grupos dominantes. O foco continua sendo, para Gohn, o plano macroeconômico, porém de forma mais detalhista e diretamente ligado à vida cotidiana das pessoas. A comunicação passa a ter status de ferramenta principal para articulação das ações coletivas. Os repertórios utilizados são “antigas” estratégias, como marchas e ocupações, porém acrescido de novas ferramentas de atuação, como as redes sociais on-line, predominando as encenações, os dramas e as representações visuais na busca pela atenção da grande mídia. Os fatos sociais passam a ser divulgados, via diversos aparelhos [de modoinstantâneo], e os jovens continuam com os principais atores, embora não sendo os únicos.
    Ao analisar os movimentos sociais mais recentes, Maria da Glória Gohn, destaca alguns pontos comuns entre esses movimentos, como por exemplo, o uso do espaço público, tais como praças, parques e ruas, o uso da internet como meio de organização, de convocatória e de difusão dos fatos, a predominância de militantes jovens, forte presença dos ideias anárquicos, menor presença dos partidos políticos nos momentos iniciais, forte repressão policial aos movimentos, os organizadores são, em geral, pessoas pouco conhecidas e quase sempre de caráter pacífico. Para a autora “a capacidade de inovar e criar sobre o fato, do momento, é outra característica dos participantes, fortalecida pelo domínio dos meios de comunicação” (GOHN, 2013:43). Há algumas diferenças entre os movimentos apontadas pela autora. Destaca que enquanto os manifestantes de Sattle e os de Maio de 68 tinham alvos bem delimitados, o Occupy não elegeu um alvo fixo. Gohn destaca que alguns movimentos, como a Primavera Árabe, são marcados por grupos que escondem suas identidades, diferentemente dos movimentos sociais do século XX que se firmavam pela identidade. Nesse ponto, acreditamos que Gohn não leva em conta que a “não identidade dos indivíduos” pode ser uma forma de criar uma identidade coletiva, como os Anomymous.
    Gohn diferencia a motivação das revoltas árabes daquelas ocorridas na Europa. Esta tendo como força propulsora as condições socioeconômicas, aquela a busca pela liberdade. No caso do Brasil parece que nossas demandas mais básicas ainda continuam sendo temas das manifestações, ainda que novas demandas sejam apresentadas.
    A obra destaca, também, o papel de artistas e intelectuais como apoiadores dos movimentos sociais, seja o de Maio de 1968, seja as ações coletivas de contestações atuais. Recentemente o diretor Michael Moore, a escritora Noami Klein, o rapper Kanye West e o filósofo Slavoj Zizek colaboraram significativamente com algumas ocupações. Além do uso de figuras públicas, os manifestantes têm se utilizado de espaços públicos emblemáticos como forma de chamar a atenção para suas demandas. Gonh, ao longo de sua exposição dos movimentos selecionados para análise, busca destacar as possíveis influências intelectuais que tiveram os jovens, como por exemplo, a centralidade de Marcuse, do Socialismo Libertário, especialmente o anarcosocialismo, e de Nietzsche no movimento Maio de 68 e a influência de Touraine, Bourdieu e Zizek sobre os movimentos posteriores.
    Ao tratar dos movimentos contemporâneos brasileiros, na parte II do livro, a autora afirma que há, nos últimos anos, mudanças substanciais provocadas pelas oportunidades políticas e pelo contexto socioeconômico. Para ela, entraram em cena questões que antes não faziam parte das demandas dos movimentos, tais como a luta por igualdade e pela identidade, além das antigas reivindicações como as contestações por moradias e pela reforma agrária. Gohn destaca que o contexto político e social atual “contribuiu para a reconfiguração do cenário do associativismo civil brasileiro”. A descentralização dos recursos públicos e a maior democratização do país criaram novos espaços de participação social, agora institucionalizados e marcados por “parceria” entre Estado e sociedade civil. Para ela,

    Novos e antigos atores sociais fixarão suas metas na conquista de espaços na sociedade política, especialmente nas parcerias que se abrem entre governo e sociedade civil organizada, por meio de políticas públicas. Por tanto, ampliou-se o leque de atores sociais, assim como o campo da sociedade civil. Isso resultou um descentramento dos sujeitos históricos em ação, antes focado nas classes sociais e nos movimentos populares. Surgiram novas facetas à cidadania, como o exercício da civilidade, a responsabilidade social do cidadão como um todo etc. (GOHN, 2013:61).

    No Brasil, os projetos em parceria entre Estado e sociedade civil passaram a ter também sentido propositivo e não apenas reivindicativo, assim como passaram a ser institucionalizados. “Mobilizar passou a ser sinônimo de arregimentar e organizar a população para participar de programas e projetos sociais” (GONH, 2013:63). Embora o cenário de institucionalização seja, no Brasil, uma realidade, as marchas e os protestos continuam sendo um repertório a ser mobilizado a qualquer momento. As marchas que demandam ética na política, liberdade de expressão, direitos identitários, políticas e benefícios públicos e que lutam contra o preconceito são exemplos mencionados pela autora.
    A autora destaca a importância de termos consciência de que “a história precisa de períodos mais longos para qualificar se as manifestações atuais são parte de revolução que demarcam o tempo em termos da longa duração, ou se são rebeliões, revoltas” (GOHN, 2013:31). Nesse sentido, Gohn não se arrisca a uma intepretação cabal. As sínteses “conclusivas” dos capítulos da obra apontam mais inquietações do que conclusões, embora marcados por caminhos interpretativos bastante significativos.
    Gohn (2013) consegue, em sua obra, apresentar de forma clara e concisa como os movimentos analisados se mobilizaram, qual o contexto de oportunidade política “aproveitado” e quais repertórios foram mobilizados, tornando sua obra de grande valia para aqueles que têm em sua agenda de estudo os movimentos sociais, ou simplesmente buscam compreender esse fenômeno social tão presente. Por outro lado sua indagação “o que acontece quando jovens indignados entram em cena?” parece não ter sido devidamente respondida ao longo da obra. A autora pouco explora os resultados das ações, optando por focar as próprias ações, suas origens e lógica de mobilização, mas em nada perde o brilhantismo dessa obra, que ainda que concisa consegue explorar de forma substantiva um tema tão complexo e objetos tão distantes no tempo e no espaço. Gohn nos desperta para a busca de novos recursos analíticos que superem as dicotomias reforma/revolução, ação/estrutura, unidade/heterogeneidade. Para ela, “trata-se de decodificar saberes não construídos e consolidados, mas saberes ‘em se fazendo’, em construção” (GOHN, 2013:112), e aí está o grande desafio da Sociologia dos Movimentos Sociais.

    Originalmente publicado na Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.3, n.6, jul-dez 2014

  • Resenha “Nova classe média?” de Márcio Pochmann

    Resenha “Nova classe média?” de Márcio Pochmann

    Existe uma nova Classe média?

    Por Roniel Sampaio Silva

    A obra do economista do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Márcio Pochmann tem por objetivo discutir conceitualmente e empiricamente a problemática da expressão em voga “Nova classe média” a partir da análise do trabalho na base da pirâmide social brasileira. Com base nisso, o autor analisa a estrutura social brasileira e o perfil do trabalho, principalmente com dados da década de 1980, 1990 e 2000. Logo no início da obra ele apresenta sua tese central de que não existe nova classe média:

    “Mesmo com o contido nível educacional e a limitada experiência profissional, as novas ocupações de serviços, absorvedoras de enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza, permitem inegável ascensão social, embora ainda distante de qualquer configuração que não a da classe trabalhadora. Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e atributos pessoais, o grosso da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser claramente identificados como classe média.” (POCHMANN, 2012, p. 20)

    Para o economista, a ideia de nova classe média foi criada artificialmente para fins de que um grupo de trabalhadores incluídos por meio das políticas de emprego fossem orientados politicamente e economicamente. Assim sendo “A interpretação de classe média (nova) resulta, em consequência, no apelo à reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil.” (idem). Desta maneira, a propaganda é que essas pessoas mudaram substancialmente na estrutura social e que por conta disso, e que agora deveriam buscar serviços privados de saúde, educação, assistência social em detrimento dos serviços públicos. Além disso, o discurso de classe média faz o trabalhador se distanciar do pertencimento de sua própria classe social, que aliado ao despreparo das instituições democráticas promove “o escasso papel estratégico e renovado do sindicalismo, das associações estudantis e de bairros, das comunidades de base, dos partidos políticos, entre outros.”(idem)

    Ecoverm suma, o livro preocupa-se em compreender o avanço das ocupações na base da pirâmide social brasileira e, para tanto, considera algumas das principais dimensões do trabalho que dizem respeito às ocupações de salário de base. Assim, baseado numa visão visão ampla inicial, a obra assenta-se na experiência recente de cinco ocupações centrais a absorver o trabalho na base da pirâmide social do país.

    Eis os principais tópicos do livro:

    Trabalho na base da pirâmide social brasileira Trabalho para as famílias Trabalho nas atividades primárias autônomas Trabalho temporário Trabalho terceirizado

    O que aconteceu com a economia para se falar em nova classe média?

    Durante muito tempo a economia brasileira tinha a seguinte expressão como lema: “É preciso crescer o bolo para dividi-lo depois” . Essa expressão foi popularizada no país durante o governo civil-militar de Figueiredo e até poucos anos atrás era muito forte. No axioma citado, significava que era primeiro crescer a economia, para depois haver distribuição de renda. Isso foi “cláusula pétrea” durante muito tempo no país. A partir do começo dos anos 2000, como podemos ver no gráfico abaixo, as macro políticas públicas e econômicas, impulsionando a economia e diminuindo o índice de desigualdade social (índice GINI), contrariando a tese anteriormente hegemônica.

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    Por fim, achamos mais oportuno que os leitores conheçam melhor a obra fazendo sua leitura de forna mais aprofundada. Na ocasião terão muitas informações sobre o panorama geral do trabalho no Brasil nas
    últimas três década. Recomendamos a leitura.POCHMANN, Márcio. Nova classe média? São Paulo: Boitempo, 2012.
    Para mais informações sobre sobre a obra acesse aqui

     

  • Pierre Lévy: conceitos-chave no estudo da cibercultura

    Pierre Lévy: conceitos-chave no estudo da cibercultura

    cibercultura: introdução e conceitos-chave

    cultura digital cibercultura midias sociais1
     Bruno dos Santos Joaquim1
    O filósofo Pierre Lévy, francês radicado no Canadá, é um dos maiores expoentes no campo de estudos da mídia cibernética. Em toda sua trajetória intelectual esteve dedicado à compreensão dos fenômenos de comunicação e produção de informação e conhecimento. Mas foi no final da década de 1990 que se consolidou como um dos intelectuais mais respeitados no estudo da internet como um fenômeno cultural.

     

    No livro Cibercultura, publicado 1999, traduzido para o português por Carlos Irineu da Costa (Editora 34), Lévy traça suas percepções sobre a o crescimento do ciberespaço, novo meio de comunicação que surge da interconexão de computadores e o consequente surgimento da cibercultura. Segundo ele, “a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer” (LÉVY, 1999, p. 15). Trata-se de um “novo dilúvio”, provocado pelos avanços tecnológicos das telecomunicações, em especial, o advento da internet. Os conceitos de cibercultura e ciberespaço são centrais na obra de Lévy e dele derivam todas as suas reflexões.

     

    O termo [ciberespaço] especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (LÉVY, 1999, p. 17).

     

    Neste sentido, estaríamos passando por um processo de universalização da cibercultura, na medida em que estamos dia-a-dia mais imersos nas novas relações de comunicação e produção de conhecimento que ela nos oferece.

     

    Outra tendência que acompanha o crescimento do ciberespaço é a virtualização. O autor utiliza um conceito de “virtual” que se distingue do senso comum, e até mesmo do termo técnico ou filosófico. Virtual não se opõe ao real, nem ao material. Ainda que não esteja fixo em nenhuma coordenada de tempo e espaço, o virtual existe, ele é real, mas está desterritorializado. Na verdade, ele ocupa apenas um espaço físico menor: o computador. Sendo assim, o computador se tornou mais que uma ferramenta de produção de sons, textos e imagens é um operador da virtualização.

     

    O crescimento do ciberespaço é orientado por três princípios fundamentais: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva. A interconexão, mundial ou local, é um princípio básico do ciberespaço, na medida em que sua dinâmica é dialógica. As comunidades virtuais “são construídas sobre afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos, em um processo mútuo de cooperação e troca” (LÉVY, 1999, p.127). Já a inteligência coletiva pode ser considerada a finalidade última do ciberespaço, pois ela descreve um tipo de inteligência compartilhada que surge da colaboração de muitos indivíduos em suas diversidades. “É uma inteligência distribuída por toda parte, na qual todo o saber está na humanidade, já que, ninguém sabe tudo, porém todos sabem alguma
    coisa” (LÉVY, 2007, p. 212).

     

    Entretanto, aquilo que mais chama atenção na obra de Pierre Lévy são suas proposições acerca da nova relação que o Homem estabelece com o saber, agora que está imerso na cibercultura. O ciberespaço amplifica, exterioriza e modifica funções cognitivas humanas como o raciocínio, a memória e a imaginação.
    O que é preciso aprender não pode mais ser planejado nem precisamente definido com antecedência. […] Devemos construir novos modelos do espaço dos conhecimentos. No lugar de representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas em ‘níveis’, organizadas pela noção de pré-requisitos e convergindo para saberes ‘superiores’, a partir de agora devemos preferir a imagem em espaços de conhecimentos
    emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se reorganizando de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa posição singular e evolutiva (LÉVY, 1999, p. 158).

     

    Neste sentido, Lévy coloca em cheque a organização do sistema educacional e o papel do professor. Ambos devem levar em conta o crescimento do ciberespaço e o avanço da cibercultura. O professor deveria deixa o papel historicamente construído de centralizador do conhecimento para se tornar um incentivador da inteligência coletiva. Essas reflexões Lévy podem ser questionadas, principalmente quando se considera a questão da exclusão digital. No entanto, ainda que a cibercultura não seja uma verdade universal, o caminho que a internet nos sugere é sem volta, portanto, precisa ser compreendido e sociologia tem muito a contribuir.

    Referências:
    LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
    LÈVY, Pierre. Inteligência coletiva: para uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2007.

     

    Graduado em Ciências Sociais pela Unesp/Araraquara.-
    brunosjoaquim@hotmail.com
  • Anatomia do poder – Wright Mills*

    Anatomia do poder – Wright Mills*

    Wright Mills: obra anatomia do poder

    thinking
    1956: em plena Guerra Fria, o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills publica “A elite do poder”. Suas pesquisas traziam à luz o conluio de interesses econômicos, políticos e militares. Mills identifica assim um grupo coeso de indivíduos que “podem realizar sua vontade, mesmo que outros se oponham a isso”
    Por Charles Wright Mills
    No interior da sociedade norte-americana, o essencial do poder nacional reside nas áreas econômica, política e militar. As outras instituições aparentam estar à margem da história moderna e, às vezes, parecem se submeter às três primeiras. Nenhuma família exerce nos negócios nacionais um poder tão direto quanto o de uma grande empresa; nenhuma igreja exerce na vida dos jovens norte-americanos um poder tão direto quando o da administração militar; nenhuma universidade pode tomar decisões tão carregadas de consequências quanto as do Conselho de Defesa Nacional. As instituições religiosas, escolares, familiares não são mais os centros autônomos do poder nacional; ao contrário, essas áreas, até pouco descentralizadas, estão cada vez mais submetidas ao poder das três grandes, que são as únicas a tomar decisões de importância capital e imediata.
    As famílias, as igrejas e as escolas se adaptam à vida moderna; são os governos, os exércitos e as empresas que a moldam; e justamente por aí eles transformam essas instituições menos poderosas em meios para atingir seus fins. Assim, as instituições religiosas fornecem capelães às forças amadas, que os utilizam para afirmar seu desejo de matar. As escolas selecionam e formam os homens em vista de seu futuro cargo na empresa e de sua futura especialidade no exército. Quanto à família estendida, há muito tempo que a Revolução Industrial a destruiu, e agora o pai e o filho são arrancados de sua família, à força, se necessário, todas as vezes que o exército do Estado os chama sob sua bandeira. E todos os símbolos dessas instituições inferiores servem para legitimar o poder e as decisões dos três grandes.
    O destino do indivíduo moderno depende não apenas da família em que nasceu ou entrou pelo casamento, mas também, e cada vez mais, da empresa onde passa as horas mais ativas de seus melhores anos; não apenas da escola onde recebe sua educação de criança e adolescente, mas do Estado que o mantém nas mãos por toda a sua vida; não apenas da igreja, aonde ele vai de vez em quando escutar a palavra de Deus, mas do exército, onde lhe ensinam a disciplina. […]
    Nessas áreas institucionais, os meios de poder de que dispõem os decisores aumentaram em proporções enormes; seu poder central executivo se ampliou; no interior de cada um, desenvolveram um sistema de administração moderno cada vez mais rígido.
    Àmedida que essas áreas aumentam e se centralizam, as consequências de suas atividades se ampliam e as relações com as outras duas ordens se tornam mais numerosas. As decisões tomadas por um punhado de empresas privadas influenciam não apenas a economia mundial, mas também os eventos militares e políticos.
    As decisões da administração militar afetam gravemente a vida política e o nível da atividade econômica. As decisões tomadas na área política determinam as atividades econômicas e os programas militares. Não existe mais de um lado a economia e do outro uma ordem política que contém um aparelho militar sem relação com a política ou com as potências do dinheiro. Há uma economia política unida por incontáveis ligações com as instituições e as decisões militares. Dos dois lados da linha de demarcação mundial que atravessa a Europa Central e passa pelos confins da Ásia, as estruturas econômicas, militares e políticas se permeiam progressivamente.
    Se há uma intervenção do governo na economia da empresa, há também uma intervenção da empresa no processo de governo. No sentido estrutural, esse triângulo do poder está na origem de um entrecruzamento de diretórios que desempenha um papel essencial na estrutura histórica do presente.
    […] No cume dessas três áreas ampliadas e centralizadas, aparecem os homens que constituem as elites econômica, política e militar. No topo da economia, entre os ricos da empresa, encontram-se os CEO’s; no alto da ordem política, os membros do diretório político; no topo do aparelho militar, a elite dos soldados-homens de Estado agrupados em torno dos chefes de estado-maior e do escalão superior do comando.
    Na medida em que essa três áreas coincidem entre si e que suas decisões se tornam totais em suas consequências, os chefes das três áreas do poder – senhores da guerra, dirigentes de empresa e diretório político – tendem a se unir para formar a elite no poder na América.
    Consideramos frequentemente as altas esferas que evoluem em torno desses cargos de comando em função do que possuem seus membros; estes têm mais acesso aos bens e às experiências mais procuradas do que os outros. Vista desse ângulo, a elite se comporia simplesmente de homens que têm mais de tudo aquilo que é preciso ter, quer dizer, geralmente dinheiro, poder, prestígio e todos os estilos de vida que essas coisas permitem.
    […] Mas a elitenão é composta simplesmente dos homens mais privilegiados, pois eles não poderiam “ser privilegiados” sem os cargos que ocupam nas grandes instituições, que são, de fato, as bases necessárias do poder, da riqueza e do prestígio, e ao mesmo tempo os meios principais para exercer o poder, adquirir e conservar a riqueza, e obter o alto grau de prestígio que se reivindica.
    Por poderosos, entendemos evidentemente aqueles que podem realizar sua vontade, ainda que outros se oponham a isso. Em consequência, ninguém pode ser verdadeiramente poderoso se não tiver acesso à direção das grandes instituições, pois é com esses meios institucionais de poder que os homens realmente poderosos exercem, em primeira instância, seu poder.
    […] Se tirássemos dos cem homens mais poderosos da América, dos cem homens mais ricos e dos cem homens mais célebres os cargos que ocupam nas instituições, se tirássemos deles seus recursos em homens, mulheres e dinheiro, se transferíssemos para longe deles os meios de comunicação de massa que centralizam atualmente a atenção sobre eles, eles ficariam sem poder, pobres e desconhecidos. Pois o poder não pertence de fato a um homem. A riqueza não está centralizada na pessoa do rico. A celebridade não é inerente a nenhuma personalidade. Para ser famoso, rico e poderoso, é preciso ter acesso às grandes instituições, pois os cargos que os homens ocupam ali determinam em grande parte sua chance de obter e manter esses valores aos quais damos tanta importância.
    […] Portanto, é preciso ressaltar um fato que todas as biografias e todas as memórias dos ricos, dos poderosos e dos grandes colocam em evidência: qualquer que seja sua diversidade nas outras áreas, os homens das esferas superiores estão implicados num conjunto de “grupos” que se sobrepõem, de panelinhas unidas entre si por ligações complicadas. Existe uma espécie de atração mútua entre os que “se sentam no mesmo terraço”, ainda que frequentemente esse fato só apareça claramente, para eles mesmos e para os outros, quando passam pela necessidade de traçar uma linha demarcatória; quando, para se defender, eles tomam consciência do que têm em comum e fecham, por consequência, suas fileiras às pessoas externas.
    […] Podemos considerar os homens que ocupam os cargos de comando como os possuidores do poder, da riqueza e da celebridade; podemos considerá-los membros da camada superior de uma sociedade capitalista. Podemos também defini-los em função de critérios psicológicos e morais, e ver neles certos tipos de indivíduos selecionados. A elite, assim definida, é simplesmente um conjunto de homens dotados de um caráter e uma energia superiores. […] Na verdade, sempre nascem ideias desse tipo numa sociedade onde alguns homens possuem, mais do que outros, o que há para se possuir. Aos privilegiados repugna pensar que são apenas privilegiados. Eles logo acabam por se definir como intrinsecamente dignos do que possuem; acabam se considerando uma elite “natural” e até vendo seus bens e privilégios como extensões naturais de seu eu superior.
    […] No entanto, àmedida que a elite floresce enquanto classe social ou conjunto de homens nos cargos de comando, ela escolhe e forma alguns tipos de personalidade e rejeita outros. O tipo de ser moral e psicológico que os homens se tornam é em grande parte determinado pelos valores segundo os quais vivem e pelos papéis institucionais que lhes são permitidos e que lhes são solicitados interpretar. Do ponto de vista do biógrafo, um homem da classe superior é formado por suas relações com os outros homens de seu meio, em uma série de pequenos agrupamentos íntimos pelos quais passa e aos quais poderá retornar durante toda a vida. A elite assim concebida é um conjunto de altas esferas cujos membros são escolhidos, formados, autenticados e autorizados a tocar de perto aqueles que comandam as hierarquias institucionais anônimas da sociedade moderna. Se existe uma chave que permite compreender a ideia psicológica da elite, é o fato de que seus membros, mesmo estando conscientes de quanto o processo de decisão é impessoal, partilham a mesma sensibilidade íntima. Para entender a elite como classe social é preciso estudar uma série de pequenos meios onde vivemos face a face; entre eles, o mais evidente do ponto de vista histórico foi a família de classe superior, mas os mais importantes são agora a “boa” escola secundária e o clube das grandes cidades.
    A “elite norte-americana” nos lembra um conjunto de imagens confusas e provocadoras de confusão, e, no entanto, quando pronunciamos ou ouvimos expressões como “classe superior”, “oficiais”, “clube dos milionários”, “poderosos”, temos a vaga impressão de saber o que elas significam, e frequentemente sabemos. Mas o que fazemos raramente é ligar essas imagens às outras; não fazemos mais esforços para formar no nosso espírito uma imagem coerente da elite no seu conjunto.
    Mesmo quando, às vezes, tentamos fazê-lo, geralmente chegamos a acreditar que não há uma elite, mas várias elites, e que elas não são realmente ligadas entre si. O que precisamos compreender é que, se não tentamos vê-la como um todo, nossa impressão é unicamente o resultado da nossa falta de rigor analítico e de imaginação sociológica.
    […] Quando os jornalistas sérios nos dizem: “São os acontecimentos, não os homens, que forjam as grandes decisões”, estão fazendo eco à teoria da história considerada como Sorte, Acaso, Destino ou obra da Mão Invisível. De fato, a palavra “acontecimento” é apenas um termo moderno para expressar essas velhas ideias que buscam separar os homens da sua história, porque nos levam a acreditar que a história acontece pelas nossas costas. A história seria algo à deriva; a área da ação, mas não do ato; seria o acidente puro, o acontecimento que ninguém desejou.
    O curso dos acontecimentos depende mais, na nossa época, de uma série de decisões humanas do que de um destino inevitável. O sentido sociológico do “destino” é simplesmente este: quando as decisões são incontáveis e cada uma, tomada separadamente, não tem grandes consequências, adicionam-se para formar uma soma que nenhum homem desejou – a história tomada como destino. Mas nem todas as épocas têm a mesma fatalidade.
    Como o círculo dos homens que decidem diminui, como os meios de decisão se centralizam e como as consequências das decisões tomam uma amplitude enorme, o curso dos grandes acontecimentos depende frequentemente das decisões tomadas por certos círculos determináveis. Isso não quer dizer necessariamente que o mesmo círculo de homens dirige o fio dos acontecimentos do início ao fim, a tal ponto de a história inteira ser o resultado do seu complô. O poder da elite não significa necessariamente que a história não é forjada também por uma série de pequenas decisões, das quais nenhuma é muito refletida. Não significa que a política em curso e o acontecimento vivo não sejam submetidos a mil pequenos arranjos, compromissos e adaptações. A ideia de uma elite no poder não implica nenhuma concepção do processo de decisão enquanto tal: é uma tentativa de delimitar os domínios sociais nos quais esse processo, qualquer que seja, se desenrola. É a pesquisa dos homens que estão implicados nesse processo.
    […] Se a história tem um sentido, somos “nós” que o daremos por nossos atos. No entanto, o fato é que, ainda que estejamos todos na história, não temos todos o mesmo poder de fazer a história. Pretender o contrário é um absurdo no plano sociológico e uma marca de irresponsabilidade no plano político. É um absurdo porque todo grupo e todo indivíduo são limitados, antes de mais nada, pelos meios de poder técnicos e institucionais dos quais dispõem; não temos todos o mesmo acesso aos meios de poder que existem nem a mesma influência sobre a utilização que deles é feita. Acreditar que “nós” fazemos a história é uma marca de irresponsabilidade política, porque isso nos impede de saber a quem cabe a responsabilidade das grandes decisões tomadas por aqueles que têm acesso aos meios de poder.
    Ao estudar a história da sociedade ocidental, mesmo de maneira muito superficial, vemos que o poder dos decisores é antes de tudo limitado pelo nível técnico, pelos meios de poder, de violência e de organização que existem em uma dada sociedade.
    Sob o mesmo ângulo, vemos também em toda a história do Ocidente uma linha ascendente e praticamente ininterrupta: os meios de opressão e exploração, de violência e destruição, como os meios de produção e reconstrução, foram progressivamente ampliados e centralizados.
    Como os meios institucionais de poder e os meios de comunicação que os ligam entre si são cada vez mais eficientes, aqueles que os dirigem estão na chefia de instrumentos de dominação sem precedentes na história da humanidade.
    Charles Wright Mills
    Ilustração: Daniel Kondo
    *Este texto foi extraído do livro L’élite au pouvoir[A elite do poder], Agone, Marselha, 2012.
  • RESENHA: ONGS e Neoliberalismo no Brasil contemporâneo

    RESENHA: ONGS e Neoliberalismo no Brasil contemporâneo

    ONGS E NEOLIBERALISMO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO COUTINHO, Joana A. ONGs e políticas neoliberais no Brasil. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011. 148 p. POR Jesus Marmanillo Pereira – Doutorando em Sociologia/UFPB

     

    Qual a relação entre Organizações Não-governamentais (ONGS) e as Políticas neoliberais no Brasil? O que se oculta sob a denominação de não governamental? Como se estruturam essas organizações? Quais suas propostas políticas?

    Partindo dessas questões e de um foco de análise sobre a relação Estado-Classes sociais ˗ de seus efeitos no processo de reestruturação do capital ˗ Joana Aparecida Coutinho, cientista social, problematiza o papel dessas organizações no Brasil contemporâneo e expõe o desenvolvimento dessas organizações sob aspectos históricos, discursivos, das

    relações de trabalho e de suas atuações junto ao Fórum Social Mundial.

     

    Demonstrando a polissemia do termo ONG, inicia o primeiro capítulo demonstrando a flexibilidade ideológica do mesmo. Para problematizá-lo, realiza um breve histórico demonstrando algumas mutações durante a década de 1990. Explica que as “ONGS cresceram na medida em que os movimentos sociais perderam sua força mobilizadora e passaram a adotar uma política integradora através de parcerias com o poder público” (p. 20).

    Outra discussão travada no capitulo se refere à descentralização da ideia de luta de classe, que paulatinamente perde espaço para outras lutas como: contra a pobreza, pela inclusão social, cidadania etc. Nesse âmbito, estabelece uma relação entre a percepção fragmentada de reivindicação defendida pela teoria dos novos movimentos sociais e o contexto totalizador do sistema capitalista.

     

    Para aprofundar esse aspecto, discorre sobre as ideologias pós-marxistas associadas às ONGS, a forma como se caracterizam no chamado Terceiro setor e como essas seguem a mesma lógica da atual reestruturação do capital. A autora demonstra que, de forma similar a uma empresa, essas organizações possuem um discurso que legitima as ações, possibilitando financiamentos, e que possuem uma lógica transnacional de divisão do trabalho ideologicamente orientada.

    No segundo capítulo, é discutida a relação entre as ONGs e Estado, tomando como ponto de partida uma onda neoconservadora que implicou no estado mínimo na década de 1980 e conferiu às Organizações não Governamentais o status de parceiras ˗ situação que adquiriu legitimidade institucional no plano diretor da reforma do aparelho do estado, elaborada por Bresser Pereira.

    Considerando o Estado neoliberal enquanto “Estado-empresario”, que sempre objetiva menor custo e maior eficiência, e uma perspectiva teórica que substitui a luta de classes pela luta por democratização dos espaços públicos, a autora explica a dificuldade desse estado burguês em encontrar a suposta representação do interesse geral, ocorrendo então os processos de publicização do privado e privatização do público (BOBBIO, 1987).

     

    Nesse âmbito, enfatiza que “as instituições políticas do Estado capitalista ocultam o seu caráter político de classe apresentando-o, ao contrário, como a encarnação da vontade do povo nação.” (p. 54) Dessa forma, emergem as condições propicias para o desenvolvimento do terceiro setor, cada vez mais burocratizado (WEBER, 1994) em seus quadros profissionais, mais apto a receber recursos estatais e livres de impostos, por conta de sua denominação (escorregadia) de não- governamental e de utilidade pública.

     

     

    O terceiro capítulo, as ONGs de responsabilidade social e as Organizações Não Governamentais de Desenvolvimento (ONGDs) são analisadas em relação ao trabalho precarizado, à geração de renda, às ideologias e justificativas que surgem com a crise do capitalismo em sua forma neoliberal.

     

    Considerando o interesse de grandes empresas como a FORD/Rockfeller em preservar a America Latina dos ideais socialistas, a autora explica a relação entre as referidas organizações e as empresas na promoção da responsabilidade social. Percebe que tal relação se desenvolve numa lógica de doação, captação de recursos, geração de lucros e uma serie de isenções de taxas e reduções de impostos.

    Restante da resenha aqui

     

    Jesus
    Jesus Marmanillo Perreira publicou uma resenha na revista Mediações – Revista de Ciências Sociais – bastante apresentável da obra de Joana A. Coutinho “ONGs e políticas neoliberais no Brasil”, publicada pela Editora da UFSC (2011. 148 p.). Por sua qualidade, entramos em contato com o doutorando “resenhista”, a fim de, republicarmos aqui no Café com Sociologia  sua resenha.

     

     

     

     

  • Resenha: Peças e engrenagens das Ciências Sociais

    Resenha: Peças e engrenagens das Ciências Sociais

    Peças e engrenagens das Ciências Sociais de Jon Elster discute a Escolha Racional

    Por Cristiano das N. Bodart
    Peças e engrenagens das Ciências Sociais

    Jon Elster ao tratar da Escolha Racional afirma que esta é instrumental, sendo as ações avaliadas e escolhidas como meios mais ou menos eficientes para um fim anterior. Para Elster, a escolha racional objetiva encontrar os melhores meios para fins dados, sendo uma maneira de adaptar-se otimamente ás circunstâncias.

    Elster aponta que a escolha racional não se caracteriza como um mecanismo infalível, pois um indivíduo racional escolhe com base em suas crenças que lhe indicam a “melhor escolha”. Ou seja, o processo pode ser racional, mas mesmo assim não atingir a verdade. “A crença é uma relação entre uma crença e aquilo sobre o que é a crença” (p.41). Muitas vezes a crença coloca o indivíduo em mais de uma possibilidade de escolha. Nem sempre nossas crenças são “preto no branco”.
    Em torno da escolha racional Elster apresenta basicamente três perigos: i) a existências de poucas evidências para efetivar a escolha ótima; II) a demora para a tomada de decisão – devido a busca de evidências – pode tornar a escolha atemporal, ou seja, a ocasião para agir pode ter passado (como no caso de um médico que deve decidir se opera ou não seu paciente. A demora pela busca por evidências para basear a sua decisão pode levar tal decisão não ser mais necessária, no caso de o paciente não agüentar esperar e vir a óbto) e; iii) quando a deliberação possuir um custo muito elevado ao comparado com os resultados da escolha (o caso de uma criança que deverá esperar pela decisão judicial para saber se vai morar com seu pai ou sua mãe. O custo – problemas psicológicos, por exemplo – pago por ela pode ser superior ao benefício da decisão, mesmo que em condições ótimas).
    Agir racionalmente é fazer o melhor para si mesmo. Para Elster, quando dois ou mais indivíduos interagem, eles podem produzir resultados muito piores por si mesmo do que se agissem sozinhos (Nesse ponto Elster recorre ao dilema dos dois prisioneiros). Em suma uma ação racional deve basicamente ser resultado de três decisões ótimas: i) deve ser o melhor modo de realizar o desejo de uma pessoa, dadas as suas crenças; ii) as crenças devem ser ótimas e; iii) deve haver uma reunião ótima de evidências.
    Elster ainda aponta que “a teoria da escolha racional pode falhar através da indeterminação (p.49). Para ele existem duas formas de indeterminação: i) podem haver mais de uma ação que sejam igual e otimamente boas e; ii) pode não haver nenhuma ação que seja ao menos tão boa como todas as demais. “Quando a escolha racional é indeterminada, algum outro mecanismo deve preencher a brecha” (p.53). Elster aponta que este outro mecanismo pode ser o princípio de “satisfazer”, ou seja, escolher algo que seja suficientemente bom, mesmo não sendo a escolha ótima.

    O comportamento irracional, por sua vez, é derivado de crenças irracionais. Tratam-se muitas vezes de ações impulsivas, especialmente tratando-se de questões presentes. Elster aponta algumas alternativas para lidarmos com nossa irracionalidade. Um exemplo seria criar estratégias para tornarmos nossa irracionalidade custosa, como por exemplo, se marcamos uma consulta no dentista para o mês posterior (pois, racionalmente sei que me propiciará no futuro benefícios) há a possibilidade de quando se aproximar o dia da consulta eu a desmarque. Sabendo disso poderia combinar que se eu não comparecer terei que pagar a consulta. Desta forma Elster defende que, o lugar da razão deve exceder ao princípio moral ou a ação irracional. Mas torna-se importante compreender suas limitações, justamente para buscar superá-las.

  • Casa-Grande e Senzala: Resenha da obra de Gilberto Freyre

    Casa-Grande e Senzala: Resenha da obra de Gilberto Freyre

    Casa-Grande e Senzala

    Casa-Grande e Senzala trata-se de uma obra clássica de suma importância para a Sociologia Brasileira. Marcada por grandes elogios e críticas. Estas vieram de várias partes, como por exemplo, de Florestan Fernandes e Antônio Candido e Fernando Henrique Cardoso, mas estes nunca renegaram a sua importância para se pensar a origem do Brasil.

    A colaboração de Freyre, embora interpretada por seus críticos como um esvaziamento do conflito entre colonizador e colonizado, se deu por retratar em Casa-grande & senzala as relações sociais a partir do cenário do Brasil colonial e influenciado por sua formação de origem: a antropologia cultural norte-americana. Sua análise teve como plano de fundo a ótica do relativismo. Por isso valorizou a mestiçagem, antes depreciada, e a contribuição do negro, que até então era ignorada pelos estudos em torno da formação da sociedade brasileira. Ao descrever a intimidade da sociedade colonial, Freyre expôs o contexto de origem dos antagonismos que compõem a ordem social no Brasil da atualidade.
    Freyre destaca como a hibridação da sociedade portuguesa facilitou a “mistura” que originaria o brasileiro. Ele não parte de um Brasil já formado, mas resgata a origem do português para fundamentar seus argumentos, especialmente para apresentar que o que estalou aqui foi uma estrutura social pronta, acabada, completa. Tal estrutura deixou resquícios difíceis de serem apagados e que demorará um pouco para serem desconstruídas.
    O Brasil de Freyre é o Brasil do parentesco, da familiaridade, um Brasil escravocrata e patrimonialista. Um Brasil que se mostra a partir da sua cultura, onde esta, até mesmo por meio da culinária, exerce grande influência na vida social e em sua estrutura. É certo que essa abordagem é fruto de sua formação. Embora alvo de muitas críticas, possibilitou enxergar o Brasil com um ângulo diferente até então apresentado. Rompeu, de certa forma, com a interpretação baseada nas lutas de classe para entender as relações cotidianas a partir dos elementos culturais presente na época em análise.
    Por Cristiano Bodart
    Referência:
    FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Editora Global, 49ª ed. São Paulo. 2004.