Temas de introdução à Sociologia no ensino médio
Por Flávio Sarandy1
O texto a seguir é de finalidade exclusivamente didática para apoiar o ensino da Sociologia em cursos do Ensino Médio. Na verdade, é uma espécie de rascunho do que o autor explicava em salas de aula do Ensino Médio no início do ano letivo e nas primeiras três aulas (de 50 minutos cada); um material provavelmente ainda incompleto e que fez uso livre de leituras do autor. Ele precisa ser “preenchido” com exemplos e com o estilo de cada professor e professora. A intenção de publicá-lo é se servir de apoio na preparação das primeiras aulas do ano e, talvez, até mesmo como fonte de leitura complementar para os alunos – pode servir como base para um roteiro de aula, assim como pode ser enviado no todo ou em pequenos trechos para leitura e debate da turma. O objetivo didático era o de perturbar a perspectiva naturalizante da vida social e contrapor o conhecimento sociológico à perspectiva individualista, preparando os alunos e as alunas para aprofundar outras reflexões a partir de Durkheim, Marx e Weber, entre outros. Como está escrito o texto ainda é bastante teórico e não reflete os exemplos e atividades que o autor desenvolvia. Ficaria muito extenso fazer de outra forma. E esta é a razão pela qual deve ser apropriado, adaptado e completado por quem o desejar utilizar.
Sociologia é o quê?
Existem certas coisas que são evidentes aos olhos. Uma delas diz respeito à sociedade. Olhem pela janela, olhem quando andarem por aí, nas ruas, olhem dentro de suas próprias casas. E o que vocês veem? Que as pessoas que compõem a sociedade são diferentes. Elas não têm os mesmos gostos, não pensam do mesmo jeito, não vão à mesma igreja, não torcem pelo mesmo time, não votaram no mesmo candidato nas últimas eleições, não amam da mesma forma e talvez sejam tão diferentes que se torna quase impossível a convivência. É por isso que quando falamos de sociedade nos vêm à mente um montão de gente. E se as pessoas são assim tão diferentes, o que é mesmo a sociedade? Como permanecemos juntos? Será que existe esse algo que une cada um e todos? Na altura do campeonato você pode estar pensando: bem, talvez não exista algo que chamamos de sociedade, mas tão somente pessoas vivendo suas vidas juntas.
Mas é aí que a coisa fica intrigante: isso a que chamamos de sociedade é algo que já existia quando nascemos, que nenhum de nós planejou ou pretendeu, nem mesmo todos nós em conjunto e que, apesar disso, é formado por nós mesmos. Isso pareceu complicado? Nem tanto. A questão é a seguinte: sem dúvida a sociedade é composta por todos nós, que estamos vivos, mas também pelos que já se foram e não vivem mais entre nós. Ao mesmo tempo, nenhum de nós decidiu sobre essa sociedade, muito menos todos nós juntos: a sociedade não é algo que foi planejado, pensado, pretendido ou decidido em assembleia. E continuará existindo depois de nós. Ainda assim, ela só existe e permanece porque muitas pessoas continuam a tocar as suas vidas. É para resolver esse enigma que estamos convidando você: e a Sociologia é a ciência que nos ajudará nesta tarefa.
1. A sociedade é mais que uma coleção de indivíduos
Vamos voltar um pouco ao início dessa nossa conversa: nem sempre aquilo que vemos é exatamente como aparenta ser; algumas evidências, afinal, são apenas aparentes evidências. Talvez esse seja o caso da palavra sociedade. Sem dúvida alguma que uma sociedade não pode deixar de conter pessoas, de tal modo que podemos afirmar sem erro que uma sociedade é uma sociedade composta de indivíduos, e isso é básico. Se não há gente, não há sociedade. Parece realmente correto pensarmos que são as nossas ações de cada dia, de cada hora, de cada instante que fazem com que a sociedade se perpetue ao longo dos tempos. Só que as pessoas reunidas em sociedade não estão todas na mesma situação, certo? Cada pessoa vive em circunstâncias diferentes. Algumas pessoas têm mais oportunidades do que outras. É como se o jogo já começasse com algumas peças em posições melhores que as outras. É importante entender que essa desigualdade não é algo que acontece por acaso. Ela é como um fio invisível que está sempre presente nas nossas interações. O modo como a sociedade está estruturada acaba por favorecer uns e impor obstáculos difíceis de superar para outros.
Então aqui já temos duas observações importantes: sim, a sociedade é também uma coletividade de indivíduos, mas estes não estão na mesma situação nem contam com as mesmas oportunidades. No entanto, vamos um pouco mais devagar…
Se a sociedade é composta por aquilo que fazemos, pensamos e decidimos diariamente, então como se dá realmente essa construção? Sim, porque precisamos compreender como que algo construído pelas ações de pessoas tão diferentes e, por vezes, tão distantes, por pessoas que vivem em Porto Alegre e em João Pessoa, pode assumir, ao mesmo tempo, uma vida própria e acabar nos impondo e nos exigindo coisas que não desejamos.
Acompanhe um pensamento – que, aliás, não é nosso, mas de um importante sociólogo, Norbert Elias (1994, p.18):
O que une os indivíduos não é cimento. Basta pensarmos no burburinho das ruas das grandes cidades: a maioria das pessoas não se conhece. Umas quase nada têm a ver com as outras. Elas se cruzam aos trancos, cada qual perseguindo suas próprias metas e projetos. Vão e vêm como lhes apraz. Partes de um todo? […] funcionando nesse tumulto de gente apressada, apesar de toda a sua liberdade individual de movimento, há também, claramente, uma ordem oculta e não diretamente perceptível pelos sentidos. Cada pessoa nesse turbilhão faz parte de determinado lugar. Tem uma mesa à qual come, uma cama em que dorme; até os famintos e sem teto são produtos e componentes da ordem oculta que subjaz à confusão. Cada qual dos passantes, em algum lugar, em algum momento, tem uma função, uma propriedade ou trabalho específico, algum tipo de tarefa para os outros, ou uma função perdida, bens perdidos e um emprego perdido.
Pense um pouco sobre isso. Que ordem oculta é essa a que o texto faz referência? Podemos dizer que é uma ordem construída sobre a atividade dos indivíduos na sociedade. E também uma ordem fundada na função exercida por cada um. Mas esse contexto funcional pode variar bastante: entre uma sociedade de tipo feudal e uma sociedade industrial, por exemplo.
E o sociólogo Norbert Elias (1994, p.18) continua:
Como resultado de sua função, cada uma dessas pessoas tem ou teve uma renda, alta ou baixa, de que vive ou viveu; e, ao passar pela rua, essa função e essa renda, mais evidentes ou mais ocultas, passam com ela. Não lhe é possível pular fora disso conforme sua veneta. Não lhe é possível, simplesmente, passar para outra função, mesmo que o deseje.
O que, afinal de contas, liga cada um e todos? Uma resposta aproximada: para que exista algo que denominamos por sociedade é necessário que exista uma interdependência entre todos os indivíduos de uma determinada sociedade. Interdependência não significa, no entanto, igualdade. Quem fez o pão que você comeu hoje? Quem cuida para que nós tenhamos as ruas limpas? E quem lhe serviu o pão? Ah, então você entendeu o problema! Estamos numa relação de dependência mútua com as demais pessoas, conhecidas ou não, próximas ou distantes, vivas ou já falecidas. Mais que isso, essas relações não se dão em posições de igualdade. É essa estrutura de relações sociais que nos une em posições desiguais e é capaz de orientar o nosso comportamento.
Observe bem: não são as pessoas que estão em foco agora, mas as posições que ocupam numa determinada sociedade e, também, a função que desempenham. E se a cada um caberia um lugar na sociedade dependendo de onde se encontrasse nessa estrutura de relações sociais, esses lugares ainda que igualmente importantes para a existência ou manutenção dessa sociedade não seriam igualmente valorizados por todos, nem seriam indicadores de justiça social. Afinal, nas sociedades existe a disputa entre os seus membros ou a disputa entre grupos ou classes sociais, o que nos leva a um outro problema crucial: o da desigualdade e o da dominação de uns sobre outros.
Muitas vezes, caímos em um engano comum ao pensar que somos completamente independentes do ambiente social ao nosso redor, como se pudéssemos viver “desconectados” e isolados do mundo! Às vezes é difícil pensar sociologicamente justamente por estarmos por demais apegados a esse modo de pensar que coloca o indivíduo no centro de tudo. Mas uma porção de pessoas vivendo juntas na Índia formam um tipo de sociedade diferente da encontrada em outros países, nos ensina Norbert Elias (1984).
Pensar de maneira individualista significa acreditar que somos livres para decidir o que fazer com nossas vidas sem interferência de nada exterior. E isso acontece porque vivemos em uma sociedade que valoriza o individualismo. Por isso, geralmente rejeitamos ideias que colocam a sociedade acima do indivíduo, ou seja, que sugerem que não somos tão livres assim, mas sim influenciados por forças sociais. Essa outra forma de pensar é o que chamamos de perspectiva sociológica.
Aliás, um outro sociólogo, Émile Durkheim (2007), nos ensina que por vivermos em sociedade temos a ilusão de sabermos tudo sobre ela – se fosse assim, a ciência Sociologia não seria necessária. Mas o fato de vivermos em sociedade, de experimentarmos as relações, normas, fenômenos e fatos da vida social geralmente torna difícil compreendermos as relações que orientam essas relações e fenômenos. Um exemplo disso que estamos dizendo – para que você entenda e que era o tipo de comparação que o próprio Durkheim fazia: nossa relação com a gravidade não nos leva a compreender as leis físicas que regem a gravidade. Todo mundo sabe que se você pular de um lugar alto isso vai te levar ao chão. Mas isso não significa que você sabe explicar exatamente porque. Esta é a diferença entre o que Durkheim chamou de senso comum e conhecimento sociológico.
Imagine um comerciante que decidisse usar um bloco de papel e não o computador para fazer suas faturas, notas fiscais e pedidos. Suas operações levariam muito mais tempo e ele perderia clientes. E se ele se recusasse a usar dinheiro, ou simplesmente decidisse não seguir as regras estabelecidas para as atividades financeiras, como usar moeda, crédito etc.? Ele iria à falência rapidamente.
Como nos lembra o sociólogo Marcel Mauss no livro Estudos de Sociologia (1981), há muitos aspectos da nossa vida econômica (ideias, leis, instituições, hábitos, valores e normas sociais) que não foram inventados por nós, mas que encontramos já estabelecidos desde o nascimento. Esses aspectos estão presentes até nas ações mais simples de um trabalhador ou de um comerciante. Eles não inventaram o lucro, o salário, o crédito, o preço ou o comércio internacional; eles simplesmente têm que se ajustar a essas coisas no sistema atual. Até mesmo sentimentos que parecem espontâneos, como o amor pelo trabalho, o gosto pelo empreendedorismo ou o desejo por lucro, não são universais e naturais para todos, pois não estão presentes em todas as sociedades ao longo da história.
Por um lado, é inegável que a sociedade existe como um agregado de seres humanos porque ela não é apenas uma ideia. Assim como qualquer grupo de pessoas – seja uma classe social, grupo profissional, partido político, sindicato, ou outros – a sociedade é formada por indivíduos que agem e reagem uns sobre os outros. Como vimos no exemplo do comerciante, nenhuma pessoa sozinha pode definir o que é a sociedade ou as suas normas e valores. E uma primeira necessidade que todos os seres humanos têm é a de definirem sua vida em conjunto, o que gera uma série de questões que não estão diretamente relacionadas às necessidades de abrigo e alimento. Em outros termos, é pela interação entre os indivíduos, pela inter-relação e interdependência de suas funções na sociedade, que podemos compreender a vida coletiva. Durkheim (1999) ensinou justamente isso: que essa interdependência gera a coesão social – que ele denominou solidariedade social.
Mas essa ordem subjacente à aparente confusão da vida coletiva não está apenas na estrutura de funções e papéis que envolvem as pessoas em uma sociedade. Para Karl Marx, outro importante intelectual para a Sociologia, que o que organiza nossa vida comum são as posições que ocupamos no modo como produzimos os bens necessários à nossa existência. Logo no início do livro O Capital, Marx (1980) nos sugere que o tipo de sociedade em que vivemos, capitalista, está organizada em torno da existência e da produção de mercadorias. E mais, ele define a mercadoria como algo que satisfaz as necessidades humanas, independente da “origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”; o que significa dizer que a sociedade está construída para responder a necessidades bastante concretas de nossas vidas, mas que também existe em função do que imaginamos, desejamos e valorizamos.
Dois exemplos para que você entenda bem este argumento: uma mercadoria pode ser uma utilidade que satisfaz nossa necessidade de comida, mas essa necessidade não explica todo o tipo de produtos da indústria de alimentos! Nossa necessidade básica de alimentação não justifica, por exemplo, a existência dos alimentos ultraprocessados, que contribuem para problemas como a obesidade. E continuamos a produzi-los. Portanto, a indústria de alimentos não existe porque precisamos comer, já que poderíamos dispensar determinados produtos em benefício de nossa saúde. Ela existe, segundo Marx, pela mesma razão de qualquer outra indústria produtora de mercadorias: para a acumulação sem fim de capital.
Nossas necessidades materiais e orgânicas também não explicam a existência da agroindústria. Segundo o censo agropecuário de 2017 do IBGE, 77% dos estabelecimentos agropecuários foram classificados como de agricultura familiar, embora a sua produção tenha sido de 23% do valor total da produção no período. Essa parcela menor no total é devida entre outros fatores à distribuição desigual de terras. Enquanto isso, o agronegócio domina a maior parte das terras agrícolas mesmo não produzindo, necessariamente, alimentos para a população, porém insumos e mercadorias para exportação. Utilizam grandes extensões de terra para plantar grãos para ração de animais ou cana que se tornará combustível para a indústria. E ainda assim, a agroindústria concentra a maior parte da renda no setor. Esta disparidade reflete uma estrutura social marcada por desigualdades e dominação, como evidenciado pelo ensinamento de Marx sobre a disponibilidade desigual de mercadorias, que não atende a todos, mesmo aos que delas necessitam.
Não podemos ser displicentes quanto ao fato de haver dominação de uns sobre outros. O fenômeno da dominação (econômica e política) é dos mais importantes para compreendermos as sociedades capitalistas modernas e ocidentais. O fato de seguirmos as normas sociais e os valores que predominam em nossa sociedade e que regem as relações sociais não exclui um outro fato, que é o dessas normas sociais e valores beneficiarem mais a uns do que outros indivíduos dentro da mesma sociedade. Em outras palavras, nem todos têm os mesmos privilégios: por exemplo, apesar das mulheres enfrentarem uma condição desvantajosa perante os homens (mesmo nas ditas sociedades livres e igualitárias, ocidentais), uma senhora de classe média alta, profissional liberal que dirige seu próprio carro a caminho do trabalho está em situação de vantagem sobre a empregada doméstica, pois ainda que ambas sofram discriminação por sua condição feminina, uma pode pagar a empregada para cuidar dos filhos enquanto trabalha.
Daí porque o modo individualista de pensar não é adequado ou suficiente para explicar a vida humana em sociedade. Essa visão nos diz que o homem age em função da perseguição de seus próprios interesses e da utilidade das coisas (e das pessoas), mas não explica como esses interesses surgem, nem esclarece como se define a utilidade de algo.
2. Da infância ao mundo dos adultos
Quando nascemos, não sabemos nada sobre o mundo, nem como sobreviver. Nossa experiência é caótica num certo sentido, e é por isso que todo bebê parece sempre curioso, atento a tudo e a todos. Essa primeira experiência de vida nos coloca em contato com outros seres humanos e com isso aprendemos nossa primeira de uma série de lições: a de que estamos “ligados” aos outros, que nos fornecem alimento e proteção. Dependemos de outras pessoas para sobreviver, dependemos de outras pessoas para crescer, dependemos de outras pessoas para nos tornarmos parte do grupo. Tudo o que somos e o que sabemos é aprendido ao longo de nossas vidas. É por isso que podemos afirmar que nosso comportamento vai se construindo pela interação com os outros: pais, amigos, namoradas ou namorados, professores, ídolos da televisão, craques do futebol, estranhos, livros, Instagram, TikTok etc.
Aprendemos a falar, a seguir as regras do trânsito, a usar o vaso sanitário, a andar, a agir dessa ou daquela maneira, a fazer nossa comida de um certo jeito e não de outro, a obedecer a determinadas regras de convivência pública, a trabalhar, a chorar e até mesmo a nos divertir. As coletividades sociais aprendem a partir dos problemas com os quais se deparam e transmitem esse aprendizado aos seus descendentes, às gerações que as seguem. Esse é um processo contínuo e ininterrupto.
E sempre participamos de algum grupo social, ou melhor, de vários grupos ao longo de nossas vidas, cada um com suas regras que devemos seguir – ou códigos de conduta e comunicação. Por isso podemos dizer que cada um desses grupos nos socializa, isto é, nos integra e nos ensina aquilo que é importante para a vida social. Muitos grupos dos quais participamos dão sentido a nossa vida – pensem no caso de uma pessoa religiosa, onde seu trabalho na igreja é a sua vida ou, ainda, em pessoas que fazem de seu trabalho em sua empresa o seu projeto de vida etc. Não é possível imaginarmos que os grupos dos quais participamos não influenciam em nosso modo de ser no mundo.
Vivemos integrados numa comunidade que é uma comunidade de valores, de crenças, de linguagem, de sentimentos e comportamentos que são compartilhados por todos. Ora, desde que nascemos, por toda a nossa infância e durante toda a nossa vida nós interiorizamos os valores, crenças e hábitos de nossa sociedade. Em Sociologia, chamamos isso de processo de socialização, ou seja, o modo pelo qual somos integrados à sociedade. É por isso que podemos afirmar que as crenças e os valores são construídos socialmente, porque são formados pela coletividade, pela rede de relações sociais da qual todas as pessoas fazem parte. E quando nascemos os valores e normas sociais já estão constituídos e são dados como prontos. Nós não inventamos a língua, por exemplo. Nascemos e aprendemos a utilizá-la sem questionarmos sua validade ou natureza. Quando crianças, o mundo é o que nos ensinam os adultos. Aliás, seguimos muitas normas sociais sem sequer nos darmos conta disso. É como amarrar o tênis: você faz isso todo dia sem pensar em cada movimento, em cada operação. Simplesmente faz. Por exemplo, a norma que diz que “não é qualquer um que pode tocar qualquer parte do corpo de qualquer outra pessoa, em qualquer momento e em qualquer lugar”. Ufa! Mas essa norma não está escrita em nenhuma lei. Apenas a seguimos. De modo que existe um modo que adotamos para nos cumprimentarmos que se restringe aos limites que a norma estabelece. Observe que a norma não diz que não se pode tocar o corpo do outro. O momento, lugar e o direito de tocar podem variar. Pense, por exemplo, numa sociedade patriarcal e marcada pela desigualdade de gênero, como a nossa. Claro que determinadas práticas estão mudando devido à luta das mulheres por igualdade (ainda bem!), de modo que homens não podem mais sentirem-se no direito (porque tinham privilégios) de tocar uma mulher quando bem entenderem.
Nosso comportamento – e até mesmo nossa personalidade – é, em grande medida, resultado do ambiente no qual vivemos e nos formamos. E porque nós temos uma mentalidade individualista (nossa sociedade dá ênfase às ações individuais, à subjetividade, aos desejos) isso nos cria certa dificuldade em perceber o quanto somos determinados pela configuração social na qual estamos inseridos. Mas não podemos deixar de perceber que, ainda que façamos escolhas, elas são sempre limitadas pelos padrões que aprendemos com os outros de acordo com os grupos dos quais participamos.
Para seguirmos um raciocínio de um outro sociólogo, Peter Berger (1976), observem que a criança descobre quem ela é quando descobre o que a sociedade é, ou seja, a sociedade e a personalidade são o verso e o reverso de uma mesma realidade. Na medida em que os outros significativos, isto é, as pessoas importantes para nós, que cuidam de nós na infância e às quais devotamos um grande afeto, vão dizendo para as crianças como elas devem agir, o que devem pensar, o que é o certo e o que é errado, ela vai aprendendo a agir em sua sociedade porque vai descobrindo como é sua sociedade. Os outros significativos vão se tornando o que, em Sociologia, denominamos de Outros Generalizados, isto é, a sociedade. Por meio do processo de socialização as estruturas da sociedade tornam-se as estruturas de nossa própria mente.
E as crianças vão, ao mesmo tempo, criando uma identidade, aprendendo a usar a linguagem e aprendendo os seus papéis sociais. Podemos afirmar que a “natureza” humana não surge no momento do nascimento. Ainda segundo Peter Berger, os homens adquirem uma “natureza” ou uma identidade por meio de suas associações e podem perdê-la (ou ela declina) quando se encontram isolados. Ou seja, podemos perder nossa identidade se ela não for, conforme a idéia de reciprocidade, reforçada e atualizada pelos outros de nosso grupo social.
O processo de socialização nunca é completo e perfeito. Se assim o fosse seríamos robôs, verdadeiros autômatos. E ninguém é capaz de ser socializado em todos os aspectos de sua sociedade. Imaginem em nossa sociedade complexa, tecnológica e industrializada: para a socialização ser completa teríamos que aprender tudo, vivenciar tudo, participar de tudo. Impossível! Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, a socialização nunca termina. Estamos sempre sendo socializados, sempre aprendendo. A cada vez que ingressamos em um novo grupo social, talvez num novo emprego ou numa nova escola, nesse momento se inicia um novo processo de socialização onde aprendemos os códigos para bem atuarmos nesse grupo social.
Obviamente, existem algumas determinações genéticas, uma psiquê humana e outros fatores de influência sobre o comportamento humano tratados por outras ciências. Mas, para o pensamento sociológico, o principal fator de formação da personalidade de um indivíduo é a sua socialização.
Vamos acompanhar o que diz Peter Berger (1976, p.78):
Ao chegarem a uma certa idade, as crianças ficam profundamente admiradas com a possibilidade de se localizarem num mapa. Parece estranho que a vida familiar de uma pessoa tivesse transcorrido inteiramente numa área delineada por um sistema de coordenadas impessoais (e até então desconhecidas) na superfície de um mapa. As exclamações da criança – “Estive aqui!”, “Agora estou aqui!” – revelam o assombro pelo fato de que o local de férias do verão passado, um local marcado na memória por fatos pessoais como a propriedade do primeiro cachorro ou uma coleção de minhocas, tenha latitude e longitudes específicas (…) Esta localização do “eu” em configurações concebidas por estranhos constitui um dos aspectos importantes que, talvez eufemisticamente, é chamado de “crescer”. Uma pessoa participa do mundo real dos adultos por possuir um endereço. A criança que talvez recentemente poria no correio uma carta endereçada “A vovô” agora informa a um colega caçador de minhocas seu endereço exato – rua, cidade, estado e o que mais for necessário – e vê sua tentativa de ingresso na cosmovisão adulta legitimada espetacularmente pela chegada da carta do amigo.
Você se lembra de um dia, quando criança, ter se surpreendido com a descoberta de que todos temos um lugar no mundo? À medida que a criança ingressa no mundo dos adultos e continua aceitando a realidade que vão lhe ensinando, continua a colecionar “endereços” e outros marcadores que usará para elaborar a sua identidade. Dito de outro modo, o indivíduo vai se localizando no mundo e sua inserção num mundo social significa exatamente isso: adquirir uma localização particular. Desse modo, sou mecânico ou médico, moro numa região ou outra, sou católico, evangélico, candomblecista, umbandista etc. O adulto “normal” é aquele que vive dentro das coordenadas que lhe foram atribuídas. A localização de um indivíduo lhe informa o que ele pode esperar de sua vida. E o que a vida – a sociedade – espera dele. Isso não quer dizer que o mundo seja justo ou bom, mas simplesmente que não somos o que somos por obra do acaso, nem unicamente por escolha pessoal.
3. A socialização: uma estrada de mão dupla
Sabemos que socialização pode ser definida como o processo de tornar-se membro de uma sociedade (Berger e Berger, 1975). Nossas sociedades permitem diferenciações até ao nível individual, mas nem todas permitem. Desse modo, a socialização que ocorre em nossa sociedade é mais diferenciada do que em outras. O que significa dizer: também somos diferentes uns dos outros por termos uma história de vida diferente, pois ninguém é socializado exatamente da mesma forma, sendo que cada indivíduo participa de experiências distintas ao longo de sua vida.
E, dessa forma, desenvolvemos as qualidades humanas necessárias à sobrevivência. São essas qualidades que nos permitem resolver problemas, são elas que explicam a diversidade de costumes entre os seres humanos e são elas, também, que nos permitem ser autônomos e livres. Parece uma contradição, mas não é. Significa que é justamente porque dependemos de outros no início de nossa vida que conquistamos um certo espaço de autonomia e liberdade, ainda que limitada pelas normas sociais. Seria mais ou menos assim: na medida em que eu aprendo com o outro quem eu sou ou o que devo ser, aprendo a pensar sobre mim mesmo e, desse modo, me liberto em parte daquilo que o outro quer de mim.
Quando falamos em socialização dos indivíduos, estamos sugerindo que aquilo que nós somos é o resultado de um processo que aprendemos na convivência com outros seres humanos, com base em valores, ideias, atitudes e comportamentos comuns. Seus sentimentos, suas ideias, seu modo de falar e seu modo de vestir são aprendidos através do seu contato com as gerações anteriores. A primeira fase de socialização é chamada de socialização primária, ou seja, aquela que acontece com uma carga emocional forte, em relações pessoais diretas com pessoas muito importantes, significativas, a exemplo da socialização nas famílias. Já a aprendizagem junto a grupos de amigos, na escola, na igreja ou pela TV, por exemplo, é a chamada socialização secundária. Em todo o caso, socialização significa aprender a ser membro de uma sociedade.
Já um papel social é um comportamento esperado de um indivíduo que ocupa uma determinada posição na sociedade, um comportamento padronizado. Existem os papéis de ser mãe, ser professor etc. Mas quer dizer, então, que cada um de nós não tem liberdade para decidir o que pensar ou o que fazer? Somos os papéis sociais que representamos? Não é bem assim. Para o sociólogo Durkheim (1999), por exemplo, à mediade que as sociedades vão se tornando mais complexas os papéis sociais vão se especializando e a sociedade alcança um grau muito alto de diferenciação interna, isto é, os indivíduos se individualizam cada vez mais. Fascinante, não? Portanto, no tipo de sociedade em que vivemos precisamos nos diferenciar uns dos outros, e isso seria uma exigência de nossa própria estrutura social – segundo os estudos de Durkheim.
Existe um processo que os sociólogos denominam por objetivação e subjetivação. Parecem palavras complicadas, não é mesmo? Mas, nem tanto. Por objetivação os sociólogos querem falar da construção da vida social por parte dos indivíduos membros de uma determinada sociedade. Já por subjetivação, do modo como esses mesmos indivíduos apreendem ou interiorizam os códigos, normas, valores e símbolos produzidos numa determinada sociedade. Essas palavrinhas, objetivação e subjetivação, têm tudo a ver com o que você leu anteriormente, e por quê? Simplesmente porque o mundo que conhecemos é construído dia a dia por nós mesmos. Há cinquenta anos suas avós não poderiam nem pensar em ir à praia de biquíni. O que mudou desde então? Por diversas razões que não cabem discutir agora, outras ideias foram emergindo e se disseminando na vida social de um tal modo que as pessoas foram valorizando outros comportamentos, outras práticas. Daí que se a sua irmã ou namorada for à praia, hoje, de maiô de peça inteira, daqueles que suas avós usaram, que cobriam das coxas até quase o pescoço, com muita certeza seria objeto de risadas.
A subjetivação também não é difícil de compreendermos, pois é justamente o fato de introjetarmos aquele traço de personalidade que a sociedade deseja para nós. Porque introjetamos aquilo que Durkheim (1999) denominou de “o meio moral no qual vivem os indivíduos”, isto é, os modos de ser, pensar e sentir próprios de nossa sociedade, naquele momento de sua história. E, obviamente, quem nasce numa determinada região do país ou numa classe social vai aprender coisas diferentes de outros indivíduos, de outras regiões ou de outras classes sociais. A cada lugar na sociedade correspondem aprendizagens distintas a que são submetidos os indivíduos. Em outras palavras, introjetamos uma sociedade “diferente” de acordo com o lugar social em que tivemos a sorte – ou o azar – de nascer.
Existem “componentes” da estrutura social que servem exatamente ao processo de subjetivação discutido antes e esses são as instituiçõs sociais. As instituições, segundo o sociólogo por Peter Berger (1976), têm uma influência muito forte sobre os indivíduos, moldando-os com suas regras, normas e mecanismos de controle, que variam desde sanções até mesmo o uso da violência. No entanto, os indivíduos também têm o poder de atualizar ou mesmo de modificar essas instituições no seu dia a dia. Elas se constituem como complexos de papéis sociais e mecanismos reguladores da vida humana. Elas são independentes de nós e determinam em grande medida as nossas ações e expectativas, levando-nos a cumprir determinados papéis sociais sob o risco de enfrentar uma variedade de recursos de controle e sanções, incluindo isolamento, exposição ao ridículo, privação e, em casos extremos, violência.
As instituições sociais, no entanto, são parte do modo como existimos. Por que somos seres sociais. Ao invés de instintos, temos instituições sociais. Elas fornecem mecanismos de controle e autocontrole. E também mudam. Vejamos o que os sociólogos Hans Gerth e Charles Wright Mills (1973, p.25-26) nos dizem sobre as instituições sociais:
A função principal de uma instituição tem enorme importância para a vida psíquica dos demais membros da instituição. O que o chefe pensa a respeito deles (…) ou o que eles imaginam que pense, é interiorizado, isto é, absorvido (…) se em decorrência de mudanças na organização das instituições de uma sociedade, a família patriarcal perde a sua importância, a influência do pai como um fator de controle social na vida interna dos membros da família também declinará. Deste modo, o centro institucional de controle social no interior de nós mesmos, também pode variar. É isto o que acontece à medida que a criança atinge a maturidade, que cresce.
Isso é estar localizado na sociedade, ou seja, estar na interseção de forças sociais específicas. Existem muitos meios de coerção social que agem para garantir esse processo de localização. Talvez o mais antigo, e bastante eficaz, seja a violência física. Não existe um Estado político que não esteja fundamentado nele. Estes meios servem para que elementos indesejáveis sejam eliminados e para que outros sejam “educados”. Claro, existem outros meios de coerção social e o próprio sistema político e jurídico (Leis, Constituição, Poder Judiciário etc.) exerce outras formas de controle. Mas existem meios ainda mais eficazes. A moralidade, os costumes e as convenções sociais são, provavelmente, os mais eficazes instrumentos de coerção social de que dispõem as sociedades. Isto porque nós internalizamos as regras morais de nossa sociedade. Por isso elas têm mais força, não aparecem como imposições, mas nos aparecem como aquilo que nós mesmos desejamos. Nos aparecem como o “normal”, o que deve ser. Nesse sentido, a sociedade está em nossas cabeças, não fora delas. Como o ridículo, a vergonha, a difamação, o disse-me-disse e o embaraço que frequentemente surgem na vida cotidiana, são eles também uma forma de coerção social. Os indivíduos controlam-se uns aos outros, tanto quanto cada um possui um mecanismo de autorregulação. E nem por isso devemos deixar de reconhecer o tanto de violência e intimidação que existe nesses processos. Afinal, todos esses meios de controle social indicam claramente os conflitos que regem as sociedades. Poderíamos, ainda, citar vários outros meios de coerção social como o de natureza econômica (desemprego, greve etc.), a religião, a educação, a psiquiatria – o indivíduo que não satisfaz os critérios de normalidade ou é isolado ou é submetido a tratamento “para se ajustar” – e o próprio sistema ocupacional ou profissional – porque, afinal, é o emprego ou a ocupação de uma pessoa que decidirá o que ela poderá fazer na maior parte de sua vida.
Observe que a própria Sociologia, ao nos ajudar a compreender melhor a sociedade em que vivemos e as relações sociais das quais participamos, tem o efeito de aumentar a nossa liberdade. Assim como em toda a ciência, o conhecimento aumenta a nossa liberdade. No início do século passado os humanos viviam muito menos. Mas com investimento em medicamentos, vacinas e saneamento básico, aumentamos a expectativa média de vida: isso devido à ciência.
4. A sociedade como reciprocidade
Para mostrar como interagem esses dois pólos – sociedade e indivíduo – e como são faces de uma mesma moeda, mais uma vez vamos seguir as pistas do sociólogo Marcel Mauss (1981); especialmente vamos analisar seus dois conceitos fundamentais: a idéia de fato social total e a noção de Dádiva ou Dom.
Para Mauss, o que ele chama por Dom ou Dádiva explica boa parte das relações sociais. E o que é a dádiva senão tudo aquilo que contribui para a coesão social, isto é, para que se mantenham os laços sociais existentes? Desse modo, Mauss, ao estudar longamente as sociedades tribais australianas, americanas, entre outras ditas “arcaicas”, percebeu que em todas sempre existiu uma espécie de troca que ele resumiu na “obrigação de dar, receber e retribuir”. E essa troca se dá de modo ritualizado, com cerimônias especiais onde tribos trocam presentes, ou simplesmente os consomem, como em algumas festas em que toda a produção de um ano é totalmente consumida ou simplesmente destruída. Muitas vezes essas cerimônias contém um forte componente de luta, de conflito travado entre as tribos ou agrupamentos humanos, o que Mauss denomina por dádiva agonística (conflituosa). Pela troca se estabelecem alianças que evitam guerras. Pela troca cria-se uma obrigação recíproca e constante, já que quem recebe deve dar mais do que recebeu. Pela dádiva, enfim, fundam-se as sociedades.
Segundo Mauss, o que define a vida humana coletiva é, digamos, uma “lei”, que nos leva a estabelecer trocas com outros indivíduos, grupos ou tribos, isto é, que nos leva a dar, a receber e a retribuir. E não apenas em sociedade tribais encontramos os ritos da dádiva, porém entre nós mesmos, como nas trocas de palavras e saudações, tanto quanto nos casos da doação de órgãos, de sangue, na troca dos presentes de natal ou, para não ficarmos nos exemplos óbvios, na disputa política. Sim, pois é sabido que a política se define em grande medida por essa relação em que se trocam lealdades, votos e benefícios de todo o tipo.
Ficou difícil acompanhar até aqui? Então que tal simplificarmos um pouco a idéia do Mauss e a levarmos a uma situação cotidiana?
Imagine a situação de uma troca de presentes. Se você vai a um aniversário sabe que deve dar um presente. E se o aniversariante é alguém que no seu aniversário lhe deu um presente caro, raro ou muito desejado, então as coisas podem realmente se complicar, não é mesmo? O que comprar de presente que tenha o mesmo valor, ou superior, ao recebido anteriormente? É assim que pensamos. Analise a linguagem que usamos: quem recebe, diz “obrigado”, o que indica a obrigação em que se fica por se ter recebido algo, a obrigação em se retribuir aquilo que se recebeu. Mas manda a etiqueta que se retribua com algo de valor equivalente ou superior do que se recebeu, não é mesmo? Ao mesmo tempo, quem dá deve responder “por nada”, pois assim liberta o outro da obrigação, mesmo que ela permaneça de fato, escondida em nossa mente, para que ao se retribuir o recebido aquele que retribui possa fazê-lo também de modo espontâneo, não “por mera obrigação”. É justamente nesse jogo que se estabelecem solidariedades entre as pessoas que tendem a durar.
O problema é que quem dá deve dar livremente. Por isso há na troca de presentes entre as pessoas ao mesmo tempo obrigação e liberdade, interesse e desinteresse, aliança e competição (de presentes, por exemplo: quantas vezes não vimos isso se repetir em nosso cotidiano, em nossos natais, tanto como quantas vezes não vemos isso nas ações de políticos que disputam “quem faz mais pelo povo”?). Desse modo, a regra social que nos leva a dar, receber e retribuir constitui um pacto entre as pessoas, pacto que atende às exigências da obrigação e da espontaneidade. Espontaneidade porque o dar deve ser feito de modo espontâneo, ainda que essa seja uma obrigação própria da vida social.
Um paradoxo? Vejamos: essa obrigação não é exercida do exterior do indivíduo, como que imposta pela sociedade ou por alguém, pois sempre se pode ser desleixado o suficiente para se esquecer de comprar aquele presentinho de aniversário da sogra. São os próprios indivíduos que, ao darem, mantém o ciclo infinito da troca e de sua regra, recriando-a e atualizando-a incessantemente no seio da sociedade. De tal modo que a troca cria uma dívida constante (às vezes, crescente) entre os indivíduos, mas a espontaneidade da doação e da retribuição se deve exatamente para que a dívida não seja vista como dívida e para que o ciclo da troca sempre tenha um novo começo, como se fosse uma invenção original e livre.
Então existe uma regra social que nos impulsiona a dar, receber algo ofertado e retribuir algo recebido, para que estabeleçamos laços sociais. Mas essa regra social não pode ser vista como é: uma regra. De tal modo que, mesmo se a entendermos como regra, ainda assim, ela dependerá de nossa decisão em cumpri-la. Por que se assim não for o caráter de liberdade, de originalidade, de incondicionalidade e de espontaneidade se perde e nós sabemos bem que não há nenhuma graça e nenhum mérito em se dar um presente pela mera obrigação, certo?
A exigência social do “dar, receber e retribuir”, que acontece numa simples troca de presentes, acontece em todas, ou quase todas, as situações de troca numa sociedade. Por isso é que podemos afirmar que as sociedades se fundamentam numa exigência (ou numa obrigação, como queiram) de dar, receber e retribuir, mas de se fazer isso com espontaneidade, liberdade e incondicionalmente.
Em outros termos, diríamos que as sociedades são fundadas justamente por essa exigência em se estabelecer laços sociais. O que expressa uma aposta humana na confiança, na aliança e na continuidade desses laços. E eu estou falando em aposta, pois de algum modo nós estamos submetidos às normas sociais – como à exigência em se estabelecer laços sociais ou o “dar, receber e retribuir” –, porque as temos apoiado cotidianamente. E nesse jogo, nesse drama social, se estabelecem solidariedades que tendem a durar e que evitam os conflitos. Mas essa obrigação deixa de ser exercida do exterior do indivíduo, como que imposta pela sociedade, já que entre o indivíduo e a sociedade não há mais um hiato, mas uma relação de tradução recíproca.
A alternativa à aliança promovida pela troca é a guerra aberta, o conflito, a vingança. Daí que freqüentemente a troca, de presentes ou outra coisa qualquer – incluindo-se as trocas comerciais –, ritualiza o conflito, pois que com ela muitas vezes se lança um desafio que desemboca numa competição, como foi dito acima. Ao mesmo tempo gera-se um ganho generalizado, pois quem recebe, concretamente recebe mais do que dá (como determina a etiqueta: retribuir mais do que se recebe). Com a troca se aposta no ato incondicional de dar, pois na aliança se deve dar tudo ao amigo, o que não exclui a possibilidade de recair, a qualquer momento, na desconfiança; se aposta na doação incondicional que condiciona a retribuição, mas uma aposta que necessariamente não se efetivará sempre.
Esse caso simples da troca de presentes nos mostra, então, que a vida humana contém um quê de probabilidade, de incerteza, de indefinição. Nesse espaço ambíguo se constituem as relações que podem variar da competição/ conflito à aliança/ consenso – onde quem dá não tem realmente garantias de encontrar retribuição – especialmente se dá um presente para aquele cunhado mala que nunca lembra do seu aniversário. Portanto, sempre há a possibilidade de ruptura, de mudança (até mesmo de revolução). E também sempre há a possibilidade de desejarmos as coisas como são, e continuarmos apostando nossas fichas na vida como ela tem sido.
Desse modo percebemos que a necessidade material e os valores são constituintes simultâneos da ação humana. Percebemos que a vida humana é, “ao mesmo tempo” e não “uma coisa ou outra”, necessidade prática e expressão simbólica, conflito e consenso, ação interessada e desinteressada, obrigação e liberdade, escolha individual e coerção social. Na fragilidade da vida humana coletiva percebemos que não há como se fazer uma radical separação entre o sociológico e o psicológico já que o que constitui um plano (social) é passível de tradução no outro (individual).
Eis as duas lições primordiais da idéia de dádiva de Mauss: a vida social é constituída pela exigência de dar, receber e retribuir – exigências de sociabilidade que geram interdependência entre os seres humanos – e os seres humanos fazem escolhas, ainda que dentro de contextos previamente constituídos, mas que podem sempre ser alterados. A reciprocidade estudada por Mauss nos revela o tipo de ligação existente entre o indivíduo e a sociedade.
Daí chegamos à idéia de fato social total, que para Mauss expõe a complexidade do social em suas múltiplas dimensões. Nesse sentido, a economia, a psicologia e a sociologia distinguem-se não porque na “realidade” haja fatos exclusivamente econômicos, psicológicos e sociológicos, mas porque nossa sociedade assim os classifica. E Mauss vai mais longe ao propor que o econômico e o simbólico, assim como o político e o psicológico não são compartimentos estanques, porém estão imbricados, presentes em todos os fatos sociais, ou ainda, em toda a ação social, pois que para ele, “o que é verdadeiro, não é a oração ou o direito, e sim o melanésio de tal ou tal ilha”, ou seja, o indivíduo concreto existente.
5. Afinal, precisamos viver em sociedades?
Bem, se não houvesse sociedade, se não aprendêssemos com outras pessoas o que precisamos para nos orientar na vida, seríamos uma monstruosidade, um caso psiquiátrico perdido, um caos. Alguns animais já nascem andando e fazendo coisas necessárias à sua sobrevivência, mas o ser humano não, ele precisa aprender. Até mesmo boa parte de nossos sentimentos são “configurados” pela sociedade – não é em todo momento que rimos ou choramos, nem por qualquer coisa, mas não sabemos disso ao nascer. E por quê? Porque nascemos com um organismo “incompleto”, ainda em formação e sem sabermos falar, andar, nos comportar junto a outras pessoas. Devemos aprender isso na vida social.
É por isso que podemos mesmo afirmar que a necessidade da vida social para o ser humano possui um fundamento biológico. O ser humano possui uma abertura para o mundo que lhe possibilita ser quase qualquer coisa que escolher. Fazemos parte de uma espécie que possui uma enorme plasticidade, isto é, a capacidade para se moldar a condições bem diversas de vida. Seres humanos vivem tanto em desertos muito quentes quanto nas extremidades mais frias do planeta, tanto em cidades cheias de gente e barulho, quanto em densas florestas selvagens. Mas, por ter um organismo incompleto e por ter essa capacidade de aprender, essa plasticidade (ou sua abertura para o mundo), se não vivesse em grupo e aprendesse com o grupo, os seres humanos sucumbiriam aos desafios da natureza. Não podemos voar com os recursos que a natureza nos forneceu, mas inventamos outras formas de fazer isso, porque aprendemos.
No entanto, essa abertura precisa ser relativamente fechada por meio de padrões de conduta e formas de pensar que o ser humano aprende com outros seres humanos. Temos poucos instintos, porém temos instituições sociais. O ser humano, como espécie animal, possui alguns instintos básicos para sua sobrevivência – como no caso dos bebês que choram quando estão com fome. Mas diferentemente de outras espécies animais, seus instintos ajudam muito pouco. Ele não pode depender de uma programação genética que, a rigor, não possui. Devido a essa abertura para o mundo, devido a ter um organismo biológico extremamente generalista, isto é, capaz de adaptações numa escala muito ampla, o ser humano supre essa carência com a construção de instituições sociais que regem as mais diversas áreas de sua vida por meio de rituais, valores e normas sociais específicas: o casamento, o modo de preparar os alimentos e de comê-los, o Estado, a justiça, as formas de tomarmos banho – e sua frequência –, o modo como namoramos e nos divertimos etc. Esses rituais e normas sociais são o que denominamos de padrões sociais. E é por isso que podemos dizer que somos “bichos” sociais.
Cada um de nós desenvolve ideias, princípios, valores, objetivos, interesses, talentos, emoções e tendências para atuar no mundo que dependem da nossa biografia, isto é, de nossa história de vida. E é a interação que direciona essas qualidades individuais. Até para ser um indivíduo precisamos da vida social. Se observarmos outras sociedades, veremos que a ideia de indivíduo não existe para todas. O indivíduo concreto, empírico, de fato existe. Porém, o indivíduo enquanto construção moral e social, enquanto sujeito, relativamente autônomo e auto regulado não existe para todas as sociedades. Como nós o pensamos, ele é uma construção ocidental moderna. Nossas sociedades permitem diferenciações até ao nível individual, mas nem todas permitem. Se isso não ocorre do mesmo modo em qualquer lugar do planeta é porque algo em cada sociedade nos permite ser isso e não aquilo.
Por ora, esperamos que você tenha ficado curioso sobre o que a Sociologia pode nos dizer sobre o mundo em que nós vivemos e sobre as pessoas que vivem nele. Se isso aconteceu, certamente você gostará de continuar estudando Sociologia. Por enquanto o único objetivo deste texto foi o de apresentar algumas pistas que a Sociologia nos oferece para resolver o enigma da sociedade. Você pode seguir essa investigação. Topa o desafio?
Bibliografia
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MAUSS. Marcel. Estudos de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Como citar este texto:
SARANDY, Flávio. Temas de introdução à Sociologia. Blog Café com Sociologia, mai. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/temas-de-introducao-a-sociologia/
1 Professor na Universidade Federal Fluminense. E-mail: flaviosarandy@id.uff.br