A TRAGÉDIA NO RIO E A REFORMA DA TERRA

Abaixo um texto de Marisa Choguill, o qual recebi por email de um amigo. Como achei o texto muito pertinente, resolvi disponibilizá-lo aqui, e por fim fiz alguns comentários pessoais as já ricas colocações da ilustre Dr Choguill. Convido-o a ler o texto e fazer suas ponderações no espaço para comentários.
A TRAGÉDIA NO RIO E A REFORMA DA TERRA
Marisa Choguill*

Tratar seriamente da tragédia dos deslizamentos de terra no Rio implica em tratar da necessidade de reforma da terra no Brasil como solução para o problema dos assentamentos urbanos em zonas de alto risco. Esta não foi a primeira vez que tal tragédia aconteceu, e não será a última se medidas urgentes e efetivas não forem tomadas.

Aqueles que habitam zonas de risco por falta de outra opção pela qual possam pagar são sempre vítimas de desastres, como aconteceu nos recentes desabamentos de terra no Rio. Os ocupantes dessas zonas sabem do perigo que correm, mas não têm outra escolha. Somente uma política redistributiva da renda, incluindo a reforma da terra, poderia mudar essa situação.

O Rio é famoso por suas enchentes e deslizamentos de terra (1). Sua topografia irregular está associada a zonas de risco, isto é, zonas inadequadas para habitação por se situarem em áreas sujeitas a deslizamentos de terra, enchentes e outros desastres naturais. Assentamentos em zonas inadequadas ocorrem também nas áreas rurais, ladeando rios e mangues, ou em escarpas. Um sistema de prevenção de desastres em zonas de risco, como o proposto pelo governo federal, seria uma medida meramente paliativa. Poderia salvar vidas, mas as moradias dos habitantes mais pobres continuariam a ser destruídas.

Se, como informa o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, existem “500 áreas de risco no país, com cerca de 5 milhões de pessoas morando nessas áreas, e outras 300 regiões sujeitas a inundações”(2), a escala do problema é enorme e exige uma solução radical, efetiva, não apenas uma medida paliativa.

Contudo, uma solução efetiva, neste caso, é necessariamente complexa; há muito a considerar se olharmos para outros aspectos do problema, como a estrutura da produção e da distribuição da renda no país, que resultam na expansão das metrópoles e no esvaziamento do campo.

Em outras palavras, não se trata apenas de fazer reforma urbana; é preciso considerar também a baixa renda da grande maioria dos atingidos por essa tragédia – razão principal pela qual ocupam (ou ocupavam) zonas de risco. A reforma urbana em si talvez pudesse ajudar a realocá-los, mas, não podendo atender a todas as necessidades de locação, não lhes garantiria emprego ou renda adequada.

E quanto à expansão das metrópoles, a ideia da descentralização urbana, vista como uma saída para se acalmar o crescimento desenfreado das grandes metrópoles e estimular a ocupação das cidades menores, não passa de utopia enquanto a terra não for redistribuída e os objetivos da produção nacional não forem repensados.

O que se precisa, de fato, é de uma política nacional de desenvolvimento abrangente, que seja a base de suporte de um planejamento integral com foco não apenas no output econômico das empresas, mas também na distribuição da renda, na distribuição da terra – urbana e rural – de forma adequada para que, gerando oportunidades, atenda aos interesses de todos, e não apenas aos de uma minoria.

Isso porque as cidades não são apenas locais de moradia e centros de atividades sociais e culturais. As cidades são essencialmente centros econômicos, postos de troca para a produção local e para as regiões produtivas que as cercam. São as atividades produtivas das cidades e do campo que viabilizam a adequada ordenação do território.

Sem reforma agrária, e sem um redirecionamento da produção nacional para o atendimento das necessidades básicas do povo, não haverá produção local suficiente para estimular as trocas econômicas nas vilas e cidades menores, e as estradas continuarão a ser meros corredores de transporte para as exportações e para os emigrantes rurais e urbanos em direção aos grandes centros.

No Brasil e na América Latina, desde o início da colonização européia, a ‘fazenda’ é o modelo social vigente e o ‘fazendeiro’ ainda é venerado como um ‘deus todo-poderoso’. Obviamente, as elites rurais, ‘proprietárias’ da terra, não querem mudanças.

Mas a terra deve ser um bem-social, deve ser distribuída de acordo com as necessidades da sociedade, como acontece na grande maioria dos países hoje desenvolvidos e que, há séculos, realizaram sucessivas reformas agrárias distributivas. Por exemplo: França e Suécia realizaram reformas agrárias no século XVIII; Finlândia nos séculos XVIII, XIX e XX; EUA, Dinamarca, Canadá e Grécia no século XIX; Irlanda e Japão nos séculos XIX e XX; China no século XX.

Em uma sociedade democrática como é a nossa hoje, tal questão precisa e deve ser examinada com atenção. Talvez possamos pensar a ideologia da ‘propriedade rural’, do ‘fazendeiro’, em termos de uma estratégia de realocação, estimulando a descentralização urbana.

A tragédia no Rio está a despertar um debate fundamental que precisa ser ampliado. Essa ampliação do debate somente ocorrerá à medida que nossa democracia se torne mais participativa, ampliando-se, e à medida que temas fundamentais passem a ser submetidos à população para sua análise e posicionamento, o que talvez somente seja possível através da democratização da comunicação no país, mas este é assunto para outro artigo…

É preciso alargar o horizonte das demandas – não se trata de requerermos reforma urbana, apenas, mas reforma agrária também; ou seja, ampla reforma da terra. Há mérito em nos lembrarmos da necessidade e urgência da reforma urbana, entretanto, ao fazê-lo, apenas nos acercamos timidamente da ainda mais abrangente e explosiva questão, realmente crucial e que precisa ser abordada simultaneamente: a questão da reforma agrária.

*Marisa Choguill é arquiteta, PhD em planejamento urbano, consultora, professora e editora assistente da revista acadêmica Habitat International.

Breve comentário sobre o tema:
A autora trata de questões pertinentes e fundamentais, mas passa por cima (de forma muito superficial) de uma questão fundamental: a ordenação territorial da produção industrial.

É necessário o governo criar incentivos e/ou coerções, afim de, descentralizar a produção industrial e consequentemente a população.

Milton Santos, saudoso geográfo brasileiro, já denunciava que a liberdade alocativa das grandes indústrias poderia gerar problemas graves sobre a alocação populacional, especialmente de pessoas de baixo status social, como o concentração de pobres em áres impróprias para a moradia.

Poderiamos citar David Havey, sociólogo amaricano que trabalhou, em um de seus livros, com as consequências da liberdade alocativa das indústrias no território americano. Assim como aqui, o capitalismo cria um espaço muito típico: área central voltada para a indústria e o comércio e a periferia para as residências, e quanto mais pobre o indivíduo mais distante terá que residir (pelo menos legalmente). Como os custos com locomoção são grandes, preferem achar uma encosta (ou área sem valor comercial) qualquer para morar, desde que esse seja o mais perto possível do trabalho.
Em se tratando em Reforma Agrária, é igualmente necessário descentralizar a produção industrial, uma vez que quem produz necessita escoar a produção. Não adianta ofertar terras distantes dos possíveis compradores em potencial. Vivemos em uma sociedade consumista, o indivíduo não deseja apenas a subsistência… a horta do fundo do quintal… Pensar em subsitência é pensar no século passado. O produtor ruaral quer produzir e vender para desfrutar de confortos e praticidades. As cooperativas tem buscado o mesmo objetivo: produzir para vender, para consumir.
Volto a bater na mesma tecla: é necessário o governo criar incentivos e/ou coerções, afim de, descentralizar a produção industrial e consequentemente a população.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

2 Comments

  1. Muito interessante,sou Socióloga e professora de sociologia no estado, no ensino médio!Trabalhei seu texto com meus alunos com enfoques diferentes, no 1ºs o foco foi os fatos sociais, mostrando que as tragédias acontecem não porque Deus quer, mas pelo sim pelo que a sociedade dá a ele como ponto de sobrevivência, nos 2ºs as instituições sociais, mostrando como uma depende da outra e aqui elas não resolvem muito coisa,quanto aos 3ºs, trabalhei as teorias dos clássicos misturado ao fato acontecido!
    Muito bom mesmo!

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

Sair da versão mobile