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Mozart e Raul Seixas frente a frente: uma aproximação a Norbert Elias*

Mozart e Raul Seixas frente a frente: uma aproximação a Norbert Elias*
  
Por Lucas Marcelo Tomaz de Souza**
 
Mozart e Raul Seixas
Falar da “genialidade” do trabalho musical de Wolfgang Amadeus Mozart é como incursionar pelo senso comum. Tentar demonstrar a importância do austríaco para a história da música, a mesma coisa. Seu nome, atualmente, habita o panteão dos mais prestigiados e influentes artistas do nosso tempo. Mas, essa altíssima consagração, de certa forma, parece obscurecer fatos nada irrelevantes de sua trajetória. Mozart morreu jovem, enterrado em uma vala comum, endividado, esquecido e desprezado pelo público vienense. Afirmações do tipo: “ele estava à frente de seu tempo”, em nada aprofundam a compreensão dos fatos e apenas reafirmam uma imagem de “genialidade” que hoje envolve o nome de Mozart.
 
Mas, essa consagração póstuma, na verdade, não ofuscou o olhar atento do sociólogo alemão Norbert Elias, que se debruçou sobre a trajetória do músico austríaco. Sua investigação sobre  Mozart descortina uma série de características da sociedade europeia na virada do século XVII para o século XVIII. Na medida em que Elias se aprofunda em instâncias de teor mais biográfico, vão tornando-se claras as tensões de uma sociedade marcada por um processo de transição importante na história: a passagem de uma sociedade de corte para uma majoritariamente burguesa. Naquela virada de século, resquícios dessas duas ainda conviviam, e Wolfgang Amadeus Mozart aparece como ilustração de uma série de tensões da época.
 
Mozart foi um artista da corte, musicalmente educado nela, mas revoltado com a sua posição nessa estrutura social. Enquanto músico na sociedade aristocrática, ele gozava do mesmo status de qualquer membro da criadagem; do pasteleiro à lavadeira, Mozart não passava de mais um empregado da corte. Nesse ambiente, sua arte tinha um caráter meramente utilitário. Era produzida sob a encomenda de um mecenas, geralmente para animar um jantar, um aniversário ou uma recepção qualquer. E essa situação em nada se adequava às pretensões pessoais de Mozart, mais do que ninguém crente e consciente do seu talento e virtuosismo artístico. Sua insatisfação pessoal tinha como combustível um anseio por prestígio e a vontade de ser um artista “livre”. E sua saída da corte de Salzburgo, abandonando a segurança material conquistada às sombras do príncipe, demonstra a confiança que tinha em seu talento. Mozart acreditava ser um “gênio” quando a concepção romântica de “gênio” ainda não havia se constituído.
 
Norbert Elias destaca ao leitor as saídas possíveis para Mozart nessa sua “revolução individual”, tornando clara a própria condição do artista na sociedade aristocrática. Ou Mozart mudava de corte, aproveitando as disputas por prestígio que existiam entre elas no final do século XVII, ou se arriscava em um mercado artístico, na capital Viena, ainda bastante embrionário. Tendo em vista o tamanho das pretensões de Mozart, a segunda e mais ousada opção lhe pareceu mais adequada. Abandonar a corte era, para ele, a possibilidade de tornar-se um artista “livre”, vivendo exclusivamente das negociações com sua arte em um mercado que ainda engatinhava. Em resumo, Mozart sonhava com uma independência em um local onde as possibilidades mal emergiam.
 
Fazendo uma leitura um tanto quanto anacrônica dessa empreitada de Mozart, parece evidente que ele estava fadado ao fracasso. A literatura e a filosofia já gozavam de condições bem mais estruturadas que a música, com pequenas empresas gráficas, impressão, distribuição e venda de livros. Mas o mercado musical ainda dava seus primeiros passos rumo às características que mais tarde lhe dariam forma. E o resultado desse enfrentamento Norbert Elias nos dá logo nas páginas iniciais de seu livro: a morte trágica daquele artista que se julgava “gênio”, Wolfgang Amadeus Mozart.
 
A escolha por Mozart, na verdade, tem outras importâncias estratégicas dentro do empreendimento sociológico de Norbert Elias. Ao mostrar o peso estrutural da sociedade sobre aquele indivíduo considerado, atualmente, um prodigioso, sua intenção é também deixar evidente as forças das “figurações” sociais no modelamento das trajetórias individuais. Condicionantes objetivos que nem mesmo o “genial” Mozart conseguiu subverter.
 
Além disso, Norbert Elias esclarece como a trajetória trilhada por Mozart – desde a educação familiar até suas ambições em idade de amadurecimento – dão a ele uma forma específica de releitura das estruturas sociais que o cercam. Mais do que uma mera peculiaridade biográfica, o itinerário de deixar evidente a forma como Mozart relia as “figurações” sociais de seu tempo tem papel decisivo nas pretensões metodológicas de Elias, ao redimensionar as observações mais teóricas expressas em seu livro Sociedade dos Indivíduos. São, exatamente, nas reinterpretações que Mozart faz da sociedade de corte e de sua posição nesta que se encontram as pontes mais substanciais entre uma análise individual e social, capaz de romper as dicotomias entre o indivíduo e a sociedade.
 
Mesmo se tratando de uma obra inacabada de Elias, que tinha como intuito inicial um longo trabalho de investigação comparativa entre as trajetórias de Mozart, Beethoven e Bach, intitulada o Artista Burguês na Sociedade de Cortes, as reflexões expressas no livro Mozart, a Sociologia de um Gênio abrem generosas perspectivas analíticas dentro da sociologia da cultura. Ao ressaltar a importância da dependência social e financeira de Mozart para a construção de seu trabalho artístico,  Elias mostra um caminho de análise sociológica que pode muito bem ser adaptado a outros casos. 
 
Longe de paralelismo simplistas – até pelas distâncias sociais e históricas –, as tensões vividas  por Mozart lançam luz a uma série de questões que hoje envolvem a imagem do cantor e compositor  Raul Seixas. A primeira delas é a dificuldade de desvincular sua trajetória artística da admiração que  hoje se criou em torno dele. 
 
É difícil não se impressionar com a mobilização pública que acontece todos os dias 21 de  agosto, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, na Praça Ramos De Azevedo. Ali, uma multidão vestindo camisetas estampando o rosto de Raul Seixas segue em direção à Praça Da Sé, cantando suas músicas e rendendo suas homenagens ao músico baiano, no dia do aniversário de sua morte. Concomitantemente, seu túmulo, no Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador, é coberto por flores trazidas por fãs de várias partes do Brasil. 
 
É, sem dúvida, um espéculo de admiração impressionante. Mas, a dimensão dessa “adoração”, por muitas vezes, acaba nublando um olhar mais atento para a própria trajetória de Raul Seixas.
 
Como é comum se fazer uma releitura meio à posteriori da trajetória de determinados artistas, certos acontecimento biográficos acabam ganhando contornos que, na realidade, atendem às demandas simbólicas do momento presente. No caso de Raul Seixas, é difícil não notar que a sua biografia, hoje, ganhou alguns superlativos provenientes desse clima de admiração que existe em torno de sua imagem. Além da eleição de alguns episódios mais conhecidos como digna expressão de sua trajetória, contados e recontados em inúmeras biografias que foram publicadas após a sua morte, é também recorrente uma espécie de “esquecimento” de alguns fatos que, com mais dificuldade, se ajustam no sentido eleito para a explicação e definição de quem foi, realmente, Raul Seixas.
 
A imagem do grande contraventor, daquele “Maluco Beleza” que estava, desde a infância, “predestinado” a subverter todas as regras e ditames sociais, se espalhou pelo lastro de suas canções e atitudes que, ao tornarem-se públicas, acabaram por solidificar essa ideia.
 
Não que isso seja de tudo mentira, mas algumas coisas devem ser levadas em conta. A primeira delas é que, no período mais fértil de sua vida artística – entre 1973 e 1976 – Raul Seixas trafegou pelo mainstream da indústria cultural brasileira. Além de ser um grande sucesso de público, empregado pela maior gravadora do país na época, a Philips/Phonogran, ele era um frequentador assíduo dos mais popularescos programas de televisão do país. Essa sua inclinação para um universo mais popular começou até um pouco antes. Entre 1969 e 1972, Raul Seixas trabalhou como produtor musical na gravadora CBS, que tinha, como principal contratado, o então campeão de vendas de discos no Brasil, Roberto Carlos. E como funcionário da gravadora, Raul Seixas produziu  e cuidou da imagem de muitos artistas que, atualmente, integram o conhecido – e “indesejado” –  segmento da “música brega”. Um período visto, hoje, quase como uma exceção em sua trajetória  artística, dada a pouca afinidade com que ele se ajusta a essa imagem de contraventor, sustentada por  Raul Seixas. No entanto, suas experiências enquanto produtor musical acabaram por deixar marcas  profundas em seu trabalho artístico. Seja na forma como manejou ritmos e interpretações próximas a  esse universo “cafona”, seja como transitou, com extrema naturalidade, pelos espaços dessa “música  brega”, Raul Seixas carregou consigo, além de seu já conhecido apreço pelo rock, uma forte semente  desse segmento musical tão popular.
 
Enquanto vendia uma enormidade de discos e alcançava relativo reconhecimento de crítica, no início dos anos 70, Raul Seixas propagandeava uma série de inusitados projetos. Falava de alguns encontros com discos-voadores e com John Lennon, de uma suposta cidade onde colocaria em prática os princípios da “Sociedade Alternativa”, que ele e seu parceiro Paulo Coelho vinham então arquitetando, ao mesmo tempo em que chamava atenção para seus anseios de publicar um livro infantil, um tratado de metafísica, produzir um filme, uma peça de teatro ou mesmo se candidatar a deputado federal. Isso tudo, que nunca passou de discursos acalorados de Raul Seixas, é bastante conhecido atualmente e tratado como marca de um indivíduo rebelde e inconformado. Mas, no calor do momento, naquele início de década, além de ser visto como uma mera estratégia de divulgação, encontrou muitas barreiras em sua recepção pela crítica. Taxado de louco, insano e mentiroso, Raul Seixas, no início da carreira, sofreu para encontrar certa legitimidade para tudo aquilo que vinha falando e fazendo. Com o passar dos anos, sua afirmação no campo musical foi dando a essas “mentiras” um caráter até interessante, fazendo de Raul Seixas um artista extrovertido e singular, de uma rebeldia cativante e muito popular.
 
A chegada dos anos de 1980 marca o início de uma agonia física e artística do cantor. As primeiras ondas do punk rock internacional chegaram ao Brasil incentivando a formação de uma série de bandas e arrebatando uma legião de fãs. Raul Seixas, como um dos precursores do rock nacional, até poderia usufruir de uma “paternidade” do gênero, mas alguns fatores levaram sua carreira a entrar em uma completa decadência. Primeiramente, toda a ideologia do punk rock trazia um modus operandi de fazer musical radicalmente distinto daquele a qual Raul Seixas havia se consagrado, segundo, seus problemas físicos vinham aumentando bastante, agravados pelo abuso com álcool e drogas. O outrora midiático Raul Seixas tornara-se persona non grata entre as gravadoras e meios de comunicação. E, assim como Mozart, uma morte trágica, lenta e dolorida lhe aguardava em 1989. 
 
Apesar de ambos terem sofrido muito em seus anos finais de vida, pelo ostracismo de suas respectivas carreiras artísticas, o contexto das mortes de Raul Seixas e Mozart não se assemelha muito. Raul já havia alcançado o ápice e vivia um rigoroso período de decadência; Mozart, pelo contrário, nunca conseguiu o reconhecimento do público vienense, o qual tanto desejava. Imediatamente após a morte de Raul Seixas, uma legião de fãs corria atrás do carro do corpo de bombeiros, que levava o caixão com seu corpo. Mozart ainda teria de esperar alguns anos, após a sua morte, para ter seu nome realmente eternizado na história da música.
 
Mas, talvez, a grande diferença entre as trajetórias e as imagens de Raul Seixas e Mozart, se dê, exatamente, na forma como ambos expressaram uma insubordinação social. Se Mozart é pouco lembrado pela sua rebeldia em vida, ele, na verdade, levou às últimas consequências uma desobediência que culminou em uma morte trágica e dolorida. Já Raul Seixas, que atualmente sustenta a imagem de um eterno insurreto, soube como poucos se adequar ao mercado, dosando e vendendo sua rebeldia como forma de consagração.
 
Bibliografia
ELIAS, Nobert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
____________. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
PASSOS, Sylvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
* Sinopse da aula ministrada na Universidade do Porto, em 25 de Março de 2015. Publicado originalmente na Revista café com Sociologia.
**  Doutorando Em Sociologia pela Universidade de São Paulo/USP.
 
 
 
 
 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

1 Comment

  1. Parabéns Cristiano pelo texto !

    Por trazer a baila uma a subjetividade do “Raul” sua “desobediência” numa trajetória ancorada na filosofia !

    Obs. Tive o privilegio de conviver por alguns anos com os pais de Raul. Seu Raul…Dona Eugenia…como também Plínio!

    Laio do Valle
    Salvador/Bahia

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