Desabafo de um baderneiro: preocupado e confuso

Por Cristiano Bodart (ironizando coisa séria)
Serei bem breve, questão de tempo, preso sem ao menos ter direito de saber qual ouquais os motivos. Processado sem saber o motivo do crime, tal qual umpersonagem kafkiano (personagemdo livro “O Processo” que é preso sem saber o porquê). Apenas sei que estárelacionado à ação criminosa de se fazer protesto em busca de um país melhor.
O encarceramento será menos problemático do que a dúvida do(s) motivo(s) de minhaprisão. Estou em situação semelhante a uma mulher que engravidou após terrelação sexual com um grande grupo de homens, só que no meu caso envolvemvários “crimes”.Aproveitareios momentos só, em uma cela qualquer, para mergulhar, em mim mesmo, na busca deuma resposta. Não será fácil, haja visto que os “crimes” cometidos por mim sãoinúmeros.
Resta-me saber por qual deles serei apreendido, agredido e humilhado. Por ora, farei uma lista das ilegalidades as quais cometi e ando cometendo essasemana. Assim, na cadeia ou dentro do camburão, terei elementos iniciais para descobrir qual ou quais os motivos justos de minha detenção. Caso você, leitor,tenha um dica, por favor, me conte. Me ajude a identificar o motivo pelo qual serei em breve preso. Vou procurar na memória, tentando reconstituir a ordemdos fatos para saber onde eu errei:Primeiro,permaneci ilegalmente sentado na avenida paulista em protesto ao aumento das passagens enquanto a polícia me retirava com chutes;Depois,ofereci ironicamente flores aos policiais que me lançavam bombas lacrimogênias;Usei máscaras para me proteger do gás lacrimogênio;Em seguida, fui pego portando a substância ilegal chamada vinagre que parece ser usada em bombas de destruição em massa;Filmei,sem permissão escrita, o protesto, até que um policial no exercício de sua função me bateu com seu porrete corrigindo-me.Confessei publicamente, via megafone, que sou contrário aos lucros das empresas que detêmc oncessão para explorar o transporte público.
Aqui fui traiçoeiro com o sistemaque impera;Gritei “sem violência”, desacatando com isso os policiais;Tentei ajudar os demais criminosos feridos pela polícia, inclusive um senhor de 74 anos possivelmente tão perigoso quanto eu;Escreviem meu corpo que sou contrário a violência;Portei ilegalmente cartaz com frases que faziam apologia a paz;Fiz apologia a um mundo mais justo;Gritei que a polícia não sabe qual o seu papel. Nesse ponto rompi com toda anormalidade desejável.[…]Vouparar por aqui, pois podem dobrar minha pena por publicar ações de segurançanacional que estão em segredo de justiça. Ou, quem sabe, me bater ainda maisforte, se é que isso é possível.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

4 Comments

  1. Queria ver a polícia agir com tanta "eficiência" no combate ao tráfico de drogas, que financia muitas campanhas políticas.

  2. Os policiais estão abusando do poder que detêm e isso não ocorreu apenas nessa manifestação . É uma pena que não compartilhem o respeito e ampliem a violência que deveriam erradicar. Que continuem os protestos, o povo não pode calar-se!

  3. Quero saber por que insistiram em ir até a Paulista.
    Ao que parece o acordo e o combinado com a direção do movimento era ficar no Centro.
    E outra coisa, parece que tinha uma coordenação ativa organizando a subida em grupos separados. Falem de como o confronto foi previsto e estratégias de combater a polícia combinadas, inclusive as táticas de dispersão e reagrupamento.

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