O conceito de alienação ocupa lugar central na tradição filosófica ocidental, assumindo, porém, contornos e significados distintos conforme o horizonte histórico e teórico de cada pensador. No campo da sociologia, Karl Marx é a figura que confere ao termo sua formulação crítica mais contundente e revolucionária, ao vinculá-lo não apenas à esfera da consciência ou da religião, mas à materialidade concreta das relações sociais de produção. Esta concepção inaugura uma ruptura epistemológica fundamental com as abordagens idealistas de Hegel e mesmo com o materialismo antropológico de Feuerbach, conferindo à alienação um sentido estrutural, enraizado nas condições objetivas do modo de produção capitalista.
A presente análise tem como objetivo central apresentar uma leitura sociológica e didática do conceito de alienação em Marx, tendo como principal referência os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, com apoio teórico na dissertação de Pablo Soares da Silva (2019), que realiza um minucioso percurso pelas influências filosóficas que moldaram a elaboração juvenil de Marx. Nesse caminho, destacam-se os debates com Hegel e Feuerbach, cujas formulações serão também aqui revisitadas, não apenas como pano de fundo, mas como marcos dialéticos indispensáveis à compreensão da originalidade do pensamento marxiano.
De início, é preciso sublinhar que Marx não parte de abstrações metafísicas para pensar o ser humano, mas das relações concretas de sua existência, especialmente no âmbito do trabalho. É precisamente nesse espaço vital — o da produção e reprodução da vida — que a alienação adquire sua forma mais radical, expressando-se como uma cisão entre o trabalhador e sua atividade, entre o sujeito e o produto de seu próprio esforço. Esse processo, que desumaniza e reifica o ser social, é analisado por Marx como fenômeno histórico, e não natural, cuja superação exige transformações estruturais profundas na ordem socioeconômica vigente.
Na análise marxiana, a alienação não se resume à perda de sentido ou de identidade individual. Trata-se, antes, de um mecanismo de dominação sistêmica, que impede a plena realização das potencialidades humanas. A alienação do trabalhador em relação ao produto do trabalho, ao processo produtivo, à sua própria essência e aos demais seres humanos constitui, segundo Marx, um dos pilares da lógica capitalista. Por isso, sua crítica se inscreve em um projeto mais amplo: o da emancipação humana através da supressão do trabalho alienado e da abolição da propriedade privada dos meios de produção.
A alienação, portanto, não é, para Marx, uma falha acidental do sistema, mas uma necessidade funcional do capital. Ela é inseparável da divisão entre trabalho e capital, entre propriedade e proletariado, entre produção e consumo. Assim, o presente texto parte dessa concepção estrutural para discutir o papel do trabalho alienado nas sociedades capitalistas, com especial atenção às suas formas contemporâneas, à luz da tradição crítica da teoria social.
O percurso que se seguirá está dividido em quatro partes principais. Primeiro, será analisada a genealogia filosófica do conceito de alienação, especialmente em Hegel e Feuerbach, buscando identificar os elementos aproveitados e superados por Marx. Em seguida, será detalhada a crítica marxiana a esses dois autores, evidenciando os limites de suas abordagens e as contribuições para a construção do materialismo histórico. Posteriormente, a teoria da alienação nos Manuscritos Econômico-Filosóficos será exposta em profundidade, examinando suas múltiplas dimensões. Por fim, será apresentada uma discussão sobre a atualidade do conceito de alienação à luz dos fenômenos sociais contemporâneos, com destaque para a precarização do trabalho, a fetichização das relações sociais e a reconfiguração do sujeito na era digital.
Esse itinerário pretende, portanto, contribuir para a compreensão crítica das formas de dominação modernas e do potencial emancipatório contido na crítica marxiana da alienação — não apenas como conceito teórico, mas como ferramenta para a transformação das relações sociais em direção a uma sociabilidade mais justa e humanizada.
1. As raízes filosóficas do conceito de alienação: Hegel e Feuerbach
Antes de adentrar propriamente na teoria da alienação desenvolvida por Karl Marx, é imprescindível compreender suas bases filosóficas e os interlocutores com os quais ele dialoga criticamente. Os nomes centrais nesse processo são Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Ludwig Feuerbach. Ambos foram fundamentais para a formação intelectual do jovem Marx, embora suas concepções tenham sido posteriormente ultrapassadas e transformadas no interior da crítica marxiana. A análise dessas influências é importante não apenas para entender a gênese do conceito de alienação em Marx, mas também para evidenciar o salto qualitativo operado por ele rumo a uma teoria materialista e histórica das formas sociais.
1.1 Hegel: a alienação como momento do espírito
Na filosofia de Hegel, o conceito de alienação (Entfremdung) aparece no contexto da realização do Espírito (Geist), isto é, do processo pelo qual a consciência se desenvolve historicamente em direção ao autoconhecimento e à liberdade. A alienação, nesse sentido, não é um erro ou um mal a ser evitado, mas um momento necessário do desdobramento dialético da realidade. O Espírito precisa alienar-se, exteriorizar-se em formas objetivas (como o Estado, a cultura, a arte, a religião), para depois se reconhecer nessas formas e alcançar sua reconciliação com o mundo.
Na Fenomenologia do Espírito (1807), Hegel apresenta a famosa dialética do senhor e do escravo como uma metáfora da formação da autoconsciência humana. Nessa relação, o escravo — ao trabalhar e transformar a natureza — desenvolve uma forma de consciência mais avançada que a do senhor, pois se reconhece nos produtos de seu trabalho. Ainda que subjugado, é o escravo quem efetivamente objetiva-se no mundo, construindo a ponte entre o espírito individual e a totalidade. Nesse sentido, a alienação é a mediação necessária entre o Eu abstrato e a realidade concreta, entre a subjetividade e a objetividade (Inwood, 1997).
Contudo, essa concepção tem um traço nitidamente idealista. A realidade é compreendida como expressão da Ideia, e o movimento da história é, em última instância, a autoconsciência do Espírito absoluto. O problema da alienação é resolvido na esfera da consciência, do pensamento, por meio da reconciliação do sujeito com as instituições sociais — especialmente com o Estado moderno, visto por Hegel como a realização racional da liberdade.
Essa perspectiva, embora profunda e inovadora, será duramente criticada por Marx. Para ele, a reconciliação não se dá no plano da consciência, mas na transformação concreta das condições materiais de existência. A alienação não é uma etapa do desenvolvimento do Espírito, mas um sintoma da cisão entre o trabalho e a vida, entre o homem e sua humanidade.
1.2 Feuerbach: a alienação religiosa e o materialismo antropológico
A crítica de Feuerbach à filosofia hegeliana se dá por meio de uma inflexão materialista e antropológica. Em obras como A essência do Cristianismo (1841) e Princípios da Filosofia do Futuro (1843), Feuerbach sustenta que a religião é uma forma de alienação: os homens projetam em Deus suas próprias qualidades — amor, justiça, inteligência — e passam a venerar como divino aquilo que, na verdade, é humano. Deus, nesse sentido, seria o “espelho da essência humana”, um reflexo invertido das potencialidades do homem.
Essa inversão é o cerne da alienação religiosa. Ao transferir para um ser supremo tudo aquilo que o torna pleno, o homem esvazia a si mesmo. Segundo Feuerbach, o caminho da emancipação passa pela reintegração dessas qualidades ao ser humano, pela reapropriação da essência que lhe foi roubada pela teologia. Como ele afirma: “a religião é a alienação do homem de si mesmo; quanto mais o homem coloca em Deus, menos ele retém de si” (Feuerbach, 1988).
A crítica feuerbachiana, ao contrário da de Hegel, não propõe uma superação dialética da alienação. Ela indica a necessidade de inverter a lógica da religião, substituindo Deus pelo Homem, o idealismo pelo materialismo, a especulação pela sensibilidade. Para Feuerbach, a essência do ser humano está na sua corporeidade, na sua afetividade, na sua relação imediata com o mundo.
Embora Marx reconheça a importância dessa crítica, considera que Feuerbach ainda se limita a uma abordagem abstrata da essência humana. Para ele, o problema da alienação não pode ser resolvido apenas no plano da consciência religiosa ou da inversão conceitual. É preciso compreender as condições materiais que produzem essa alienação, as estruturas econômicas e sociais que fazem com que o homem se afaste de sua própria humanidade.
1.3 Entre o idealismo e o materialismo: a superação marxiana
A originalidade de Marx consiste em sintetizar dialeticamente os elementos de Hegel e Feuerbach, operando uma dupla crítica: à idealização da realidade proposta pelo primeiro e à abstração antropológica do segundo. Como destaca Pablo Soares da Silva (2019), Marx reconhece o valor metodológico da dialética hegeliana, mas recusa seu viés idealista. Por outro lado, valoriza o materialismo de Feuerbach, mas critica sua ausência de historicidade e de mediação social.
É a partir dessa síntese crítica que Marx formula sua teoria da alienação como uma expressão das relações sociais concretas de produção. A alienação, para ele, é um fenômeno histórico determinado pela forma como os homens organizam sua vida produtiva. O trabalho, que deveria ser a atividade por excelência da realização humana, transforma-se sob o capitalismo em uma fonte de sofrimento, de expropriação e de estranhamento.
Como afirma Mészáros (2006), Marx transforma a alienação em um conceito histórico e social, rompendo com sua concepção abstrata e ontológica. O homem alienado é aquele que, em determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas, perde o controle sobre sua própria existência, sendo subordinado às leis do mercado, à lógica do capital, à divisão entre propriedade e trabalho.
Em síntese, Marx parte de Hegel e de Feuerbach, mas supera ambos. Sua crítica da alienação não é apenas uma crítica filosófica, mas uma crítica prática, orientada para a transformação revolucionária da sociedade. A alienação, nesse sentido, deixa de ser um problema da consciência ou da religião e passa a ser uma questão de estrutura, de classe, de modo de produção.
2. A crítica marxiana a Hegel e Feuerbach
A consolidação da teoria marxiana da alienação exigiu de Marx um movimento de apropriação crítica e superação das influências teóricas que marcaram sua formação. Nesse percurso, duas figuras se destacam como alvos fundamentais: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, cuja filosofia idealista forneceu os instrumentos metodológicos da dialética; e Ludwig Feuerbach, cujas críticas à religião e ao idealismo de Hegel marcaram decisivamente a fase juvenil de Marx, especialmente na transição entre a filosofia e a economia política. Contudo, o pensamento de Marx, longe de ser uma simples extensão dessas ideias, realiza uma ruptura qualitativa, reposicionando a alienação no interior das estruturas materiais e sociais da existência humana.
2.1 A crítica de Marx a Hegel: do idealismo à práxis
A crítica de Marx a Hegel aparece de maneira sistemática em textos como Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843) e, posteriormente, em A Sagrada Família (1845) e A Ideologia Alemã (1846). A base dessa crítica reside na denúncia do caráter idealista da filosofia hegeliana, que inverte a relação entre pensamento e realidade. Para Hegel, o mundo real é a exteriorização da Ideia, uma manifestação da razão em desenvolvimento. Marx, ao contrário, parte da premissa de que é a existência social concreta que determina a consciência, e não o inverso.
Como sintetiza Marx em A Ideologia Alemã, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 2007, p. 25). Essa afirmação representa uma guinada fundamental: rompe-se com a especulação abstrata e assume-se uma perspectiva materialista e histórica, na qual o ser humano é definido por suas práticas sociais, especialmente pelo trabalho e pelas relações de produção.
No que diz respeito à alienação, Marx reconhece que Hegel identificou corretamente a existência de um processo de estranhamento nas relações humanas. Contudo, critica duramente o fato de Hegel tratar a alienação como um fenômeno puramente espiritual, resolvido no plano da autoconsciência do Espírito. Segundo Marx, essa abordagem “mistifica a realidade” ao encobrir os mecanismos materiais que alienam o trabalhador de sua produção, do processo produtivo, de sua essência e dos demais seres humanos.
Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx denuncia o Estado hegeliano como uma abstração que encobre a dominação real das classes. Em vez de representar a racionalidade realizada, como queria Hegel, o Estado moderno é, para Marx, a expressão concentrada dos interesses das classes dominantes, mantendo o trabalhador numa posição de subordinação econômica e política.
Como aponta Pablo Soares da Silva (2019), Marx inverte o ponto de partida hegeliano: enquanto Hegel parte do Estado para pensar a sociedade civil, Marx parte da sociedade civil, das relações materiais entre os homens, para pensar o Estado. Essa inversão marca a transição da dialética idealista para a dialética materialista e fundamenta a crítica da alienação como um fenômeno concreto e histórico, não como uma etapa do espírito.
2.2 A crítica de Marx a Feuerbach: da antropologia à prática social
No caso de Feuerbach, a crítica de Marx se dá em outro plano. Marx reconhece o avanço representado pelo materialismo feuerbachiano em relação ao idealismo especulativo de Hegel. Contudo, identifica nele uma limitação fundamental: a ausência de historicidade e de mediação social em sua concepção de homem.
Para Feuerbach, o ser humano é uma essência genérica, dotada de atributos universais como a sensibilidade, a afetividade e a racionalidade. Essa essência, ao ser projetada em um ente divino, torna-se alienada, dando origem à religião. A solução seria, então, reapropriar-se dessa essência, abolindo a religião e recolocando o homem no centro do mundo. No entanto, como observa Marx em suas Teses sobre Feuerbach (1845), o erro de Feuerbach está em conceber o ser humano de forma abstrata, fora de suas determinações sociais e históricas.
Na célebre sexta tese, Marx afirma que “a essência humana não é algo abstrato que reside no indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (Marx, 2010, p. 28). Com essa formulação, Marx rompe com o humanismo abstrato de Feuerbach e funda uma antropologia histórica e social. O ser humano só pode ser compreendido no interior de suas práticas concretas, especialmente do trabalho, e das estruturas sociais que o condicionam.
Além disso, Marx critica Feuerbach por não compreender a dimensão transformadora da práxis. Em sua terceira tese, Marx afirma que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (Marx, 2010, p. 27). Isso significa que a crítica da alienação não pode limitar-se à denúncia teórica das projeções religiosas ou à defesa de um retorno à essência. É preciso agir, intervir nas condições reais que produzem a alienação e transformá-las por meio da luta social e política.
Como observa Mészáros (2006), o mérito de Marx foi ter elevado a crítica da alienação a um novo patamar: do plano da consciência ao plano da produção, da abstração ao concreto, da especulação à transformação. A alienação, em Marx, não é uma patologia do pensamento, mas uma estrutura objetiva que resulta das contradições do modo de produção capitalista.
2.3 A superação dialética: crítica e fundação de uma nova ontologia
A crítica de Marx a Hegel e Feuerbach não é apenas destrutiva. Trata-se de um processo dialético, no qual os elementos úteis são preservados e transformados. De Hegel, Marx retém a concepção de totalidade e o método dialético, mas rejeita seu conteúdo idealista. De Feuerbach, incorpora o materialismo e a crítica à religião, mas supera a abstração antropológica com uma visão histórico-social do ser humano.
Esse processo culmina na elaboração de uma nova ontologia, centrada no trabalho como atividade fundante da existência humana. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx define o trabalho como a “relação vital” do homem com a natureza e com os outros homens. É no trabalho que o ser humano se objetiva, realiza sua essência, transforma o mundo e a si mesmo. Contudo, sob o capitalismo, essa atividade fundamental é pervertida, tornando-se fonte de sofrimento, submissão e estranhamento.
A alienação, portanto, é a negação da humanidade do trabalhador, a ruptura entre sujeito e objeto, entre indivíduo e coletividade, entre existência e essência. Superá-la exige não apenas uma crítica teórica, mas uma revolução prática nas condições materiais que a produzem. Nesse sentido, a crítica marxiana da alienação é inseparável de seu projeto emancipador: a construção de uma sociedade onde o trabalho não seja mais uma atividade compulsória e expropriante, mas uma expressão livre da vida humana.
3. A teoria da alienação nos Manuscritos Econômico-Filosóficos
A obra Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, redigida por Marx durante seu exílio em Paris, marca um momento decisivo na consolidação de sua crítica à economia política e na elaboração de uma ontologia fundada na práxis e no trabalho. Nela, Marx retoma o conceito de alienação, que até então aparecia de forma dispersa em sua crítica à religião e à filosofia do Estado, e o articula diretamente às condições materiais da vida sob o capitalismo. Trata-se, portanto, de um texto fundamental para compreender a transição do jovem filósofo para o crítico radical da sociedade burguesa.
Como destaca Pablo Soares da Silva (2019), os Manuscritos não são apenas um exercício filosófico, mas já anunciam o método do materialismo histórico-dialético, ao tratar a alienação como resultado de condições sociais e históricas concretas. Marx parte da análise da economia política para demonstrar como, sob o capitalismo, o trabalhador é expropriado de si mesmo, transformado em simples instrumento do capital. Essa expropriação se manifesta em quatro formas principais de alienação: do produto do trabalho, do processo de trabalho, da essência humana e da relação com os outros seres humanos.
3.1 Alienação do produto do trabalho
A primeira forma de alienação identificada por Marx diz respeito ao produto do trabalho. No sistema capitalista, o trabalhador produz objetos que não lhe pertencem; ao contrário, quanto mais trabalha, mais fortalece o mundo das coisas que o domina. Como afirma Marx, “o objeto que o trabalho produz, seu produto, se enfrenta a ele como algo estranho, como um poder independente do produtor” (Marx, 2010, p. 72).
Esse processo inverte a relação natural entre o homem e sua criação. O que deveria ser expressão da atividade humana torna-se algo hostil, alheio, que o oprime. O produto do trabalho deixa de ser extensão do sujeito e converte-se em mercadoria, propriedade do capitalista. Assim, o trabalhador não se reconhece no que faz; seu trabalho deixa de ser um fim em si e torna-se meio de sobrevivência — um “trabalho morto” que se impõe sobre o “trabalho vivo”.
3.2 Alienação do processo de trabalho
A segunda forma de alienação refere-se ao processo de trabalho propriamente dito. O trabalho, que deveria ser uma atividade livre, criadora e autêntica, é transformado, sob o capitalismo, em um esforço forçado, mecânico e repetitivo. O trabalhador não tem controle sobre o que faz, como faz ou por que faz. Ele é um simples executor de tarefas determinadas por outros.
Marx descreve esse fenômeno como “trabalho forçado” ou “trabalho exterior”. Nas palavras do autor: “O trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser; no trabalho, ele não se afirma, mas se nega, não se sente feliz, mas infeliz, não desenvolve livremente suas energias físicas e espirituais, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito” (Marx, 2010, p. 74).
Essa alienação do processo significa que o trabalhador não se realiza enquanto age. Seu trabalho é desprovido de sentido, porque não está orientado por suas próprias finalidades, mas pelos interesses do capital. Ele trabalha não por prazer ou criatividade, mas por necessidade, para sobreviver. O tempo do trabalho é o tempo da negação de si, da expropriação da própria existência.
3.3 Alienação da essência humana (Gattungswesen)
A terceira forma de alienação, mais profunda, refere-se à própria essência do ser humano. Marx concebe o homem como um “ser genérico” (Gattungswesen), isto é, como um ser que se distingue dos demais por sua capacidade de produzir de forma consciente, planejada, orientada por finalidades. Essa capacidade de transformar a natureza de modo criativo é o que define sua humanidade.
No entanto, sob o capitalismo, essa potência é mutilada. O homem já não se reconhece como ser genérico, pois seu trabalho — atividade que deveria exprimir sua essência — é alienado. O trabalhador se converte em mera engrenagem de um sistema que o impede de afirmar-se como sujeito livre e criador. Como afirma Pablo Soares da Silva (2019), a alienação da essência é o ponto culminante da crítica marxiana, pois revela que, ao alienar-se do produto e do processo, o homem aliena-se de si mesmo.
Essa alienação da essência implica a perda da individualidade e da universalidade humana. O trabalho, em vez de promover o desenvolvimento das capacidades humanas, as reprime, reduzindo o homem a uma função subordinada à acumulação de capital. O ser humano, nesse processo, deixa de ser fim em si e torna-se meio para fins alheios.
3.4 Alienação nas relações sociais
A quarta e última forma de alienação trata da relação entre os homens. Ao alienar-se de seu produto, de sua atividade e de sua essência, o trabalhador também se aliena dos outros seres humanos. As relações sociais, que deveriam ser fundadas na cooperação, na solidariedade e no reconhecimento mútuo, tornam-se relações de competição, exploração e indiferença.
Marx observa que, sob o regime da propriedade privada, o outro é visto não como um semelhante, mas como um obstáculo, um competidor ou um patrão. A relação social dominante é mediada pela mercadoria e pelo dinheiro, que se tornam os verdadeiros vínculos entre os homens. Como afirma o autor: “A relação imediata entre o trabalho e seus produtos é a relação entre o trabalhador e o capitalista” (Marx, 2010, p. 78).
A alienação, portanto, não é apenas um fenômeno psicológico ou individual, mas uma estrutura objetiva que afeta todas as esferas da vida social. A própria sociedade torna-se alienada: suas instituições, seus valores, suas normas passam a reproduzir a lógica da dominação capitalista, naturalizando a desigualdade e a exploração.
4. A atualidade do conceito de alienação
Apesar de ter sido formulado no século XIX, o conceito de alienação permanece como uma chave analítica potente para compreender as dinâmicas das sociedades contemporâneas. As transformações ocorridas nas formas de trabalho, na mediação tecnológica das relações sociais e na constituição da subjetividade não superaram a alienação descrita por Marx; ao contrário, em muitos aspectos, a aprofundaram e reconfiguraram. Se no capitalismo industrial o trabalhador era alienado de seu produto e de seu processo de trabalho, no capitalismo informacional, digital e globalizado, o indivíduo é alienado também de sua própria identidade, de seu tempo e de suas relações afetivas.
Como aponta Antunes (2018), o processo de reestruturação produtiva e a financeirização da economia deram origem a novas formas de exploração do trabalho, marcadas pela intensificação da precariedade, pelo esvaziamento da estabilidade e pela generalização da insegurança. O trabalho intermitente, a uberização e a plataformização da força de trabalho representam um retorno a formas ainda mais intensas de expropriação, nas quais o trabalhador não possui qualquer controle sobre seu tempo, seus ganhos ou seu futuro. O que Marx descrevia como alienação do processo produtivo atinge, nesse contexto, níveis ainda mais perversos: o trabalhador torna-se um “empreendedor de si mesmo”, autogerido, mas profundamente dependente das estruturas algorítmicas e dos interesses das grandes corporações digitais.
Essa nova configuração da alienação se estende também ao produto do trabalho. Na economia de dados, o valor não está mais vinculado à produção material direta, mas à extração de informações, preferências e comportamentos. O indivíduo deixa de ser apenas um trabalhador alienado e converte-se também em um consumidor alienado, cujos traços mais íntimos são coletados, processados e vendidos como mercadoria. Nesse sentido, a alienação atinge não apenas o que fazemos, mas o que somos — e o que os algoritmos preveem que seremos.
O filósofo Byung-Chul Han (2015) analisa esse fenômeno como um deslocamento do “paradigma disciplinar” para o “paradigma do desempenho”. Já não se trata de uma dominação direta e coercitiva, mas de uma autoexploração voluntária, em que o indivíduo assume a responsabilidade por seu fracasso, sua produtividade e sua felicidade. A alienação assume, então, uma forma subjetiva: somos compelidos a nos vender como marca, a produzir conteúdos, a render emocionalmente, a sermos permanentemente competitivos. O “eu” torna-se produto — e a alienação, identidade.
No campo da sociabilidade, as redes sociais digitais exemplificam uma nova forma de alienação interpessoal. A promessa de conexão e liberdade convive com a reprodução de relações reificadas, mediadas por likes, métricas e algoritmos. As relações humanas são mercantilizadas, estetizadas e padronizadas segundo a lógica do consumo e da visibilidade. Nesse cenário, o reconhecimento deixa de ser interpessoal e passa a ser condicionado pela aprovação pública, alimentando um ciclo de ansiedade, comparação e solidão — sintomas profundos da alienação moderna.
É preciso destacar, ainda, que essa alienação contemporânea não ocorre de forma homogênea. Como observa Ricardo Antunes (2020), ela se articula com as desigualdades de classe, gênero e raça, atingindo de forma mais brutal os setores historicamente marginalizados. O trabalho doméstico, o trabalho informal e o trabalho imigrante são expressões de uma alienação estrutural que, embora atualizada, preserva o núcleo da crítica marxiana: a expropriação do tempo, da dignidade e do reconhecimento.
Contudo, mesmo diante dessa intensificação da alienação, a proposta marxiana mantém-se atual também por seu horizonte de superação. Marx não concebe a alienação como um destino inevitável, mas como um fenômeno histórico, passível de transformação. A luta contra a alienação é, em última instância, a luta pela emancipação do trabalho, pela apropriação coletiva dos meios de produção, pela reconstrução das relações sociais com base na solidariedade, na cooperação e na liberdade.
A crítica da alienação permanece, portanto, um instrumento fundamental para denunciar as formas sutis e explícitas de dominação, mas também para alimentar a esperança e a práxis. Como dizia Marx em sua décima primeira tese sobre Feuerbach, não basta interpretar o mundo — é preciso transformá-lo.
Considerações finais
A análise aqui desenvolvida permitiu compreender o conceito de alienação como uma das contribuições mais poderosas e duradouras do pensamento de Karl Marx. Ao partir da crítica ao idealismo hegeliano e à abstração antropológica de Feuerbach, Marx constrói uma teoria materialista da alienação, centrada no trabalho e nas relações sociais de produção. Essa teoria revela como, sob o capitalismo, o ser humano é expropriado de sua atividade vital, transformado em engrenagem de uma máquina voltada para o lucro e separado de sua própria essência.
Com base nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e nos estudos interpretativos contemporâneos, como o de Pablo Soares da Silva (2019), foi possível identificar quatro formas fundamentais de alienação: do produto, do processo, da essência humana e dos outros. Essas formas não apenas explicam a condição do trabalhador no século XIX, mas lançam luz sobre os mecanismos profundos que ainda hoje operam a dominação social, agora sob novas formas tecnológicas, subjetivas e econômicas.
Por fim, a crítica marxiana da alienação permanece viva não apenas como diagnóstico, mas como horizonte de transformação. Ela nos convida a imaginar e a construir um mundo onde o trabalho não seja sofrimento, onde as relações não sejam mercadoria e onde o ser humano possa, enfim, reconciliar-se consigo mesmo, com os outros e com o mundo que constrói.
Referências bibliográficas
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ANTUNES, Ricardo. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo, 2020.
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HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: Marx e Engels: A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2010.
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SOARES DA SILVA, Pablo. O conceito de alienação em Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, 2019.